O que os médicos estão escondendo de você? — Parte 1

Nem sempre relações médico-paciente são francas, mas não há motivos para ver médicos como os vilões dessa história

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
10 min readAug 23, 2020

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Algum tempo atrás, me deparei com uma edição especial da Superinteressante intitulada 20 Segredos Que os Médicos Não Contam. Embora eu tenha encontrado essas matérias há poucos meses, elas são relativamente antigas, de 2016, o que não significa que estejam datadas. É bem o contrário: os problemas relatados poderiam muito bem ter acontecido semana passada, ou retrasada. De fato, são problemas que parecem intrínsecos à medicina do século XXI.

O que me chamou a atenção, todavia, não foram os segredos revelados pela Super, mas sim o quanto a matéria me pareceu sintomática de um problema muito maior: a incompreensão que pacientes têm de como funciona a medicina em si. Evidentemente, alguém pode alegar que isso deriva do comportamento dos próprios médicos — se, afinal, eles querem que a prática médica seja melhor compreendida, o primeiro passo seria maior transparência, e essa transparência poderia certamente começar nos consultórios. Em certa medida, essa é uma alegação correta, mas não leva em conta a complexidade da relação médico-paciente: e se o tempo da consulta for muito curto? E se o médico for mal remunerado? E se o médico não conseguir traduzir a informação de modo que o paciente compreenda?

No fim, a discussão sobre mudanças que poderiam ser implementadas na medicina precisa se embasar na discussão que os economistas já dominam há décadas: pessoas respondem a incentivos. Quais incentivos são dados ao médico para ser transparente? Para informar melhor ao paciente? Para ocultar certas informações do paciente? Para prescrever certos tratamentos?

Cabe, no entanto, ressaltar que também o jornalismo é regido por incentivos, e os repórteres são preponderantemente incentivados a cativar a atenção de seus leitores. Nenhum dos artigos dessa série teve pretensão de oferecer a palavra final sobre problemas na profissão médica, e o que faço aqui não é uma crítica à Superinteressante — assim como os médicos, ela está seguindo às regras do jogo.

O debate sobre os problemas da medicina — e seus incentivos — é, porém, rico e extenso, e o que me proporei a fazer é analisá-lo — ainda que superficialmente — nesta semana e na próxima. Como acadêmica do 2º período de medicina, entendo muito melhor sobre a visão de um paciente do que sobre a visão de um médico, mas ousarei dar meus dois centavos com base no que vi, vivi, e estudei até agora. Vamos, sem mais delongas, aos 10 primeiros segredos que seus médicos estão guardando:

Número 1: 30% dos gastos médicos são desnecessários — e 20% das cirurgias também

O primeiro segredo revelado pela Super já mostra escancaradamente o problema dos incentivos mal desenhados: se procedimentos complexos possuem melhor remuneração, a preferência dos médicos por eles pode vir até mesmo de forma inconsciente.

Mais sutilmente é inserida a menção à “evolução da medicina”, que aumenta a disponibilidade de tratamentos. Nesse tema, é interessante mencionar o papel do viés de novidade: a preferência por tratamentos mais recentes, que, por serem mais “modernos”, parecem mais eficientes — e isso pode vir até mesmo dos próprios pacientes.

E há, também, a percepção (não mencionada no artigo original) do paciente de que toda condição deve ser tratada. Há muitos tratamentos que oferecem pouco benefício, mas há também muitos pacientes que consideram “incompetente” o médico que não prescreve nenhum medicamento — quem não conhece um parente que toma antibióticos para resfriados? Este especificamente é um problema que me parece ser facilmente resolvível com um melhor diálogo entre médico e paciente, o que, todavia, pode não ser algo trivial em todas as situações.

Número 2: A indústria farmacêutica esconde os estudos que não dão certo — e manipula os que dão

Praticar uma medicina baseada em evidências é um Desafio — com D maiúsculo. Os últimos anos têm visto um crescente movimento em busca por replicação de estudos prévios e por questionamento de tratamentos que se tornaram lugar-comum, mas esse é um processo lento. E, quanto mais buscamos avançar, mais vemos o quanto nosso conhecimento possui falhas — um anti-Efeito Dunning-Kruger.

Os relatos que a Superinteressante deu para exemplificar as falhas da indústria farmacêutica são de casos especialmente fraudulentos. E embora a medicina — como qualquer área — tenha algumas maçãs podres, dizer que a indústria farmacêutica “esconde os estudos que não dão certo” é uma simplificação excessiva, que coloca a indústria farmacêutica como única culpada por um problema complexo.

Na realidade, estudos “que não dão certo” são frequentemente “escondidos” em várias áreas, o que se conhece como viés de publicação: estudos com resultados bombásticos, ou ao menos positivos, têm mais chances de serem publicados e de, consequentemente, beneficiarem a carreira do pesquisador. Isso é um problema que decorre de várias falhas nos sistemas de incentivos do meio acadêmico, e os culpados são universidades, revistas, pesquisadores, e, certamente, também indústrias financiadoras de pesquisas — tal qual a farmacêutica.

Fato é que, embora o viés de publicação seja um problema real, a medicina tem buscado resolvê-lo, e acusar toda a pesquisa farmacêutica de fraude (exceto, é claro, nos casos em que realmente houve má fé) não é um bom caminho para isso.

Número 3: Médicos — e médicas — correm muito mais risco de suicídio

A impressão que tive ao ler sobre isso numa série que deveria contar os segredos da medicina foi de que devo estar em uma bolha. De fato, o que se aprende num curso universitário é diferente do que se tem por certo no senso comum, mas desde o início do curso, desde as primeiras discussões que tivemos, o assunto da saúde mental de médicos e estudantes de medicina sempre fez parte da pauta. Para mim ao menos, o suicídio de médicos passa longe de ser um segredo.

O artigo da Super cita o risco aumentado de suicídio entre médicos e levanta para ele explicações que concernem o mal estar psíquico entre médicos, algo certamente relevante, porém é importante relatar também o risco aumentado de sucesso em tentativas de suicídio. A própria fonte do artigo, disponível no Journal of the American Medical Association, lembra que é possível que as mortes por suicídio estejam aumentadas entre médicos porque estes, diferentemente da população em geral, têm acesso facilitado a métodos mais letais — como medicamentos de alta toxicidade.

É certo, contudo, que médicos estão sujeitos a pressões extenuantes, e é extremamente positivo que isso esteja vindo à tona com maior frequência. A depressão entre médicos não pode ser um segredo sujo, pois isso apenas dificulta que os necessitados ousem buscar tratamento.

Número 4: Ficar internado em hospital pode ser um risco

Iatrogenia é o nome dado a um “efeito clínico nefasto resultante de um tratamento médico prescrito para uma doença”, um fenômeno bem mais complexo que a mera definição de dicionário.

Embora o texto da revista tenha mencionado apenas o exemplo das infecções hospitalares, o problema da iatrogenia é ainda mais grave que isso. Como mera estudante, não tenho como dizer quais são as soluções, mas há dados suficientes para concluir que existem, sim, tratamentos hospitalares que podem causar danos.

Porém quão significativos são esses danos? E eles são piores que as doenças que levaram o paciente a adoecer em primeiro lugar? Afinal, teria sido melhor deixá-lo à própria sorte? Essas são perguntas de respostas pouco triviais, que até clínicos experientes lutam para responder com precisão.

Seria injusto, no entanto, dizer que a iatrogenia é um segredo dos médicos: ela é justamente um dos problemas que mais se luta para combater na medicina moderna, ou não haveria constantes atualizações em protocolos hospitalares.

Número 5: Os médicos lavam pouco as mãos

Essa é uma informação que deve estar desatualizada em tempos de Coronavírus. Na verdade, lembro de conversar com uma aluna de internato (os últimos períodos do curso de medicina, em que o aluno “estagia” em hospitais) que mencionou o quanto a pandemia tinha mudado a percepção dela e de seus colegas quanto a medidas sanitárias: aquilo que antes parecia uma “chatice” começou a ser visto com a importância devida.

Pessoalmente, o que espero é apenas que isso se mantenha após o fim da pandemia, e, pelo que ouço sobre tentativas de equipes médicas de implantar melhores protocolos de higiene hospitalar, tenho motivos para esperança. Ao menos a conscientização parece já estar ocorrendo.

Número 6: Boa parte dos médicos admite esconder coisas — e alguns já mentiram aos pacientes

Não são poucos os médicos que já vi comentando que buscam praticar uma “medicina defensiva”, ou seja: uma que minimize as chances de processos, o motivo principal pelo qual médicos admitem esconder coisas de seus pacientes. E esse não é um problema de resolução fácil.

Se, por um lado, médicos precisam assumir responsabilidade por seus erros, é difícil afirmar qual seria a maneira correta de implementar isso na prática. Quão clara é a legislação sobre direitos e deveres de médicos? Quão bem informados estão os juízes que determinam se um evento adverso ocorreu por erro médico ou por má sorte? E será que os medos de processos são embasados? Será que a “medicina defensiva” é eficaz? Ou será que a cura para a “judicialização da saúde” não seria justamente uma comunicação mais franca?

Uma coisa é certa: se queremos que os médicos sejam mais honestos com seus pacientes, o primeiro passo é consertar o sistema de incentivos dando-lhes maior segurança jurídica, e buscando estudar — e ensinar! — o que realmente funciona para evitar alegações judiciais, porque um médico que teme seu paciente não terá incentivo algum para a sinceridade.

Número 7: Ressuscitação cardiopulmonar (RCP) é bem pouco eficaz

Sinceramente? Não entendi por que esse seria considerado um segredo médico. Experiências anedóticas não podem ser generalizadas, mas lembro-me de quando meu avô teve uma parada cardíaca e foi ressuscitado: os médicos deixaram claro para a família que sua chance de sobrevivência era baixa, e, de fato, ele não resistiu.

Esse talvez seja um segredo que os diretores de séries de TV médicas guardam, pois nelas os pacientes realmente costumam retornar de paradas cardiorrespiratórias sem maiores problemas. Na vida real, porém, não conheço quem pense que esses são eventos triviais.

O que não significa que medidas de primeiros socorros não devam ser aplicadas! Segundo a American Heart Association, 45% das pessoas que recebem RCP fora do ambiente hospitalar sobrevivem (cifra mais otimista que os 18% propagados pela Superinteressante), e a RCP pode duplicar ou triplicar as chances de sobrevivência do paciente.

Número 8: Os planos de saúde devem fortunas ao governo

Mais uma vez, o problema não me parece ser oriundo da classe médica, o que não diminui sua relevância.

Me parece estranho que os planos sejam obrigados a ressarcir o SUS por procedimentos que pacientes realizam em hospitais públicos — ora, esses hospitais não deveriam fornecer serviços a toda a população?

De qualquer forma, o artigo da Super não explica claramente a dinâmica em que essas dívidas são estabelecidas, e, ciente de minha ignorância sobre a situação, não vou afirmar que a dívida é injusta aos planos. Sendo a lei clara quanto à sua obrigação de ressarcir os cofres públicos, é essencial que eles o façam.

Número 9: Muitos médicos têm conflitos de interesse

Não existe resposta fácil ao problema dos conflitos de interesse. O mais eficiente, imagino, seria que fossem públicos e nominais os dados do que médicos recebem da indústria farmacêutica: Fulano foi pago pela X para palestrar em um congresso e recebeu amostras grátis da Y, enquanto Ciclano recebeu uma viagem para divulgar um medicamento da Z. Por outro lado, isso poderia violar à privacidade tanto de médicos quanto de pacientes, além do que dificilmente funcionaria se fosse uma decisão tomada de cima para baixo.

Há, também, a questão de que são justamente esses interesses da indústria que financiam o constante desenvolvimento de novos medicamentos e tecnologias — alguns danosos ou menos eficientes do que se alega, de fato, mas o que seria de nós sem o progresso da farmácia?

A verdade é que dificilmente o problema dos conflitos de interesse será resolvido tão cedo: por ser muito complexo, soluções impostas tenderiam a piorar ainda mais a situação, e as soluções espontâneas frequentemente têm progresso mais lento. Por isso, acredito que a melhor opção seja investir na educação dos pacientes, para que eles saibam tomar decisões informadas sobre sua própria saúde. É importante que todo paciente se sinta confortável para fazer perguntas ao seu médico, e questionar se há reais benefícios para o tratamento proposto.

Número 10: Saúde gratuita custa caro

Falar de saúde pública é pedir para começar uma briga, mas o artigo trouxe mais fatos que discussão. Sim, o SUS é extremamente abrangente. Sim, isso custa caro. Isso não necessariamente precisa ser um problema, mas, em um país pobre, como o Brasil, coisas caras acabam se tornando problemáticas.

Fato é que, enquanto formos pobres, dificilmente o SUS funcionará eficientemente: continuaremos vendo filas gigantescas em hospitais, carência de materiais, e todos aqueles problemas bem conhecidos pelos brasileiros, por mais que a saúde pública brasileira funcione bem, sim, em alguns aspectos — veja as campanhas de vacinação, por exemplo.

As soluções seriam tornar o Brasil um país rico, ou modificar o funcionamento do SUS. Com as políticas certas, é possível que o Brasil venha a enriquecer um dia, e reformar nosso sistema de saúde não significa desamparar àqueles que necessitam dele. Para citar um de meus teóricos favoritos:

“Não há razão para que, numa sociedade que atingiu um nível geral de riqueza como o da nossa, a primeira forma de segurança não seja garantida a todos sem que isso ponha em risco a liberdade geral. […] Não há dúvida de que, no tocante a alimentação, roupas e habitação, é possível garantir a todos um mínimo suficiente para conservar a saúde e a capacidade de trabalho. […]
Tampouco se justifica que o estado deixe de auxiliar os indivíduos provendo a eventualidades comuns […] Nas doenças e acidentes, por exemplo […], é bastante justificável que o estado auxilie na organização de um esquema abrangente de previdência social. Os que desejam conservar o sistema de concorrência e os que pretendem substituí-lo por algo diferente poderão discordar quanto aos detalhes de tal esquema. […] Em princípio, porém, não há incompatibilidade entre o estado oferecer maior segurança auxiliando na organização do sistema de previdência social e a preservação da liberdade individual” — Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão

Saúde gratuita custa caro, mas é perfeitamente possível que os recursos que temos disponíveis sejam alocados naqueles que verdadeiramente precisam deles.

Obrigada por ler este texto! É provável que ele venha a ser o mais controverso que já escrevi, então eu adoraria saber a sua opinião. Você conhecia esses segredos médicos? E o que você acha dos problemas apontados: são realmente problemas? Têm solução?

Se tiver gostado, não esqueça de dar seus aplausos (de 1 a 50), e de compartilhar com seus amigos. Divulgarei a segunda parte semana que vem, então não deixe de me acompanhar nas redes sociais para ficar sabendo. Até logo!

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