O que os médicos estão escondendo de você? — Parte 2

Nem sempre relações médico-paciente são francas, mas não há motivos para ver médicos como os vilões dessa história

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
10 min readAug 30, 2020

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Algum tempo atrás, me deparei com uma edição especial da Superinteressante intitulada 20 Segredos Que os Médicos Não Contam. Embora eu tenha encontrado essas matérias há poucos meses, elas são relativamente antigas, de 2016, o que não significa que estejam datadas. É bem o contrário: os problemas relatados poderiam muito bem ter acontecido semana passada, ou retrasada. De fato, são problemas que parecem intrínsecos à medicina do século XXI.

O que me chamou a atenção, todavia, não foram os segredos revelados pela Super, mas sim o quanto a matéria me pareceu sintomática de um problema muito maior: a incompreensão que pacientes têm de como funciona a medicina em si. Evidentemente, alguém pode alegar que isso deriva do comportamento dos próprios médicos — se, afinal, eles querem que a prática médica seja melhor compreendida, o primeiro passo seria maior transparência, e essa transparência poderia certamente começar nos consultórios. Em certa medida, essa é uma alegação correta, mas não leva em conta a complexidade da relação médico-paciente: e se o tempo da consulta for muito curto? E se o médico for mal remunerado? E se o médico não conseguir traduzir a informação de modo que o paciente compreenda?

No fim, a discussão sobre mudanças que poderiam ser implementadas na medicina precisa se embasar na discussão que os economistas já dominam há décadas: pessoas respondem a incentivos. Quais incentivos são dados ao médico para ser transparente? Para informar melhor ao paciente? Para ocultar certas informações do paciente? Para prescrever certos tratamentos?

Cabe, no entanto, ressaltar que também o jornalismo é regido por incentivos, e os repórteres são preponderantemente incentivados a cativar a atenção de seus leitores. Nenhum dos artigos dessa série teve pretensão de oferecer a palavra final sobre problemas na profissão médica, e o que faço aqui não é uma crítica à Superinteressante — assim como os médicos, ela está seguindo às regras do jogo.

O debate sobre os problemas da medicina — e seus incentivos — é, porém, rico e extenso, e o que me proporei a fazer é analisá-lo — ainda que superficialmente — nesta semana e na próxima. Como acadêmica do 2º período de medicina, entendo muito melhor sobre a visão de um paciente do que sobre a visão de um médico, mas ousarei dar meus dois centavos com base no que vi, vivi, e estudei até agora. Vamos, sem mais delongas, aos últimos 10 segredos que seus médicos estão guardando:

Número 11: Nem toda doença deve ser tratada

Não há o que contestar sobre a alegação desse artigo, de que diagnósticos podem ser excessivos e levar a tratamentos mais danosos que as doenças em si. É injusto, porém, colocar nas costas dos médicos a culpa por isso: o problema é muito complexo, e alguns dos agentes que mais buscam resolvê-los são justamente os médicos.

Eu não conseguiria explicar esse problema com mais eloquência que o Dr. Rohin Francis, do vídeo que anexei ao lado (infelizmente, em inglês). No entanto, de maneira sucinta: alguns tumores que são diagnosticados, embora cancerosos, possuem crescimento tão lento que seriam incapazes de matar ao paciente, mesmo se não tratados.

Isso, todavia, não tem solução fácil: como saber se o câncer detectado crescerá lenta ou rapidamente? Como adaptar as políticas públicas à realidade dos superdiagnósticos? E, especialmente: que médico ou paciente consegue tranquilamente decidir fazer nada ao detectar um câncer — mesmo que exista chance decente de ele vir a ser inofensivo?

Número 12: Ser operado na sexta, ou no fim de semana, é mais arriscado

Para fazer essa alegação, foi citado um estudo que coletou dados bastante robustos, então é razoável que seja, sim, mais arriscado ser operado em fins de semana. Contudo, o método de análise não permite que passemos à conclusão mais óbvia: de que o médico “sextou” antes da hora.

Apenas ensaios clínicos aleatorizados são capazes de inferir causalidade. Em bom português, é preciso um tipo muito específico (e trabalhoso) de estudo para saber as causas de um fenômeno na medicina. O estudo citado não fez distinções suficientes para concluir se os pacientes operados nos fins de semana já possuíam maiores riscos antes de selecionarem a data de sua cirurgia eletiva, por exemplo.

Há evidência suficiente para justificar uma busca por reforma. Médicos e pacientes devem trabalhar coletivamente para, dentro dos limites do possível, evitar os dias de maior estafa da equipe médica para procedimentos complexos. Não há, todavia, evidência suficiente para acusar médicos de desleixo, como a leitura pouco cuidadosa da manchete poderia levar alguém a fazer.

Número 13: A indústria farmacêutica gasta mais em marketing do que em pesquisa

Novamente, a questão dos incentivos surge. Todos sabem bem que companhias farmacêuticas, como quaisquer outras empresas, querem lucrar. E o próprio texto já explica implicitamente a razão de o marketing ser um gasto mais interessante que a pesquisa: desenvolver novos medicamentos é muito difícil.

Desta forma, a maneira mais eficiente de trazer lucros será, provavelmente, aumentar a venda dos remédios já disponíveis, e não colocar novos remédios no mercado. Certamente, não é a coisa mais “bonita” do mundo, mas, uma vez mais, estão seguindo as regras do jogo. Essa é uma realidade que crítica nenhuma será capaz de mudar enquanto desenvolver drogas inéditas — e seguras! — for mais difícil que elaborar uma campanha publicitária.

Número 14: Alguns médicos recebem propina

A própria Superinteressante já começa seu artigo com a defesa óbvia de que há corruptos em qualquer profissão, e que, é claro, com os médicos não seria diferente.

De modo algum ousarei negar que existam “maçãs podres” na árvore da medicina. Importante é que isso não seja generalizado: há indivíduos corruptos dentro da medicina, e, como sempre, os incentivos têm seu papel ao permitir que profissionais ajam de má fé sem grandes punições.

A corrupção na medicina se manifesta naqueles que aderem a práticas questionáveis para receber comissões. A maioria dos médicos, contudo, é composta por pessoas idôneas, e como diria Carl Sagan:

Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias.

Não é, portanto, possível inferir que médicos estão todos em conluio com planos de saúde e companhias farmacêuticas — não sem analisar cuidadosamente as evidências.

É assustador pensar que alguém responsável por nossa saúde possa ter más intenções. Penso, porém, que o medo que pode ser instigado pela afirmação de que “Alguns médicos recebem propinas” é desproporcional à realidade. O artigo não cita fontes, logo, não podemos ter certeza de quão frequente é a corrupção. Nesse contexto, prefiro julgar com cautela: não temos as evidências extraordinárias necessárias para justificar perda de confiança em toda a classe médica.

Número 15: Alguns medicamentos muito usados podem induzir diabetes — e até câncer

Os exemplos citados pela Superinteressante não foram os melhores possíveis — os estudos citados não trazem evidência sólida o bastante para afirmar que os remédios causam diabetes ou câncer — , porém há medicamentos comuns que trazem consigo grandes riscos. Isso nunca foi uma novidade, e não deveria ser um segredo.

Seria anti-ético que um médico mentisse sobre os riscos de um tratamento caso perguntado. Entretanto, me parece comum que a parte negativa dos medicamentos seja omitida das consultas, e a razão para isso deve passar mais por dificuldades de comunicação que por malícia.

Muito da prática médica consiste em fazer análises de risco e benefício. Tais análises só podem ser bem conduzidas por alguém que esteja bem informado acerca de estudos recentes, opções de tratamento, efeitos colaterais conhecidos, entre outros fatores que podem ser difíceis de comunicar a um leigo.

Ideal seria que todo profissional incluísse seu paciente na decisão durante essa análise. Contudo, a tarefa de realizar uma comunicação informativa e franca é pouco trivial, e é possível que muitos médicos tenham se formado com essa lacuna.

Problemas originários na formação tardam a ser resolvidos, mas os pacientes podem assumir postura mais participativa para facilitar a criação dessa ponte entre técnico e leigo. Sabendo que dos médicos partem boas intenções, é importante fazer perguntas: quais as contra-indicações desse remédio? Já foi estudado se ele traz algum perigo a longo prazo? Quais são os efeitos colaterais? E assim por diante.

No longo prazo, é claro, preencher essa lacuna deve ser uma prioridade. Em um mundo onde a informação é tão acessível, é de suma importância que aqueles que possuem acesso ao conhecimento cientificamente embasado saibam comunicá-lo — especialmente profissionais da saúde, que são responsáveis por aplicar esse conhecimento ao bem estar humano.

Número 16: Os médicos detestavam o Mais Médicos. Agora, querem entrar

Esse foi um item que achei particularmente leviano. Citaram as críticas feitas pelos médicos brasileiros ao programa, e, sejamos honestos, colocaram o interesse deles em participar como uma hipocrisia. No entanto, sejamos novamente honestos: desde quando reclamar das condições do próprio trabalho se tornou algo incomum?

Sim, os médicos brasileiros têm críticas ao Mais Médicos, e sim, eles entraram no programa mesmo assim, porque os benefícios acabaram superando os custos para esses indivíduos — isso se considerarmos que os indivíduos que teceram críticas foram exatamente os mesmos que acabaram contratados!

Não nego a possibilidade de hipocrisia nessa história, e não nego que haja médicos com atitudes corporativistas, porém a análise do comportamento de um grupo pode ser bastante enganosa. É estranho ver médicos aderindo a um programa que foi fortemente criticado por médicos, mas isso não possui nenhum significado oculto a priori, especialmente se levarmos em conta a heterogeneidade dos indivíduos que compõem a classe médica.

Número 17: As gigantes farmacêuticas sabem quais remédios você toma

Vou ser sincera: eu não faço a menor ideia de como está a situação relatada hoje em dia. Por mais que 2016 não esteja tão distante, a preocupação com a segurança de dados cresceu muito nos últimos anos, e nessa semana mesmo tivemos a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Portanto, o mau uso de dados pessoais de pacientes por companhias farmacêuticas — algo que nunca foi visto com bons olhos — deve render alguns processos nos dias de hoje. Dentro da própria LGPD, a velha prática de oferecer descontos a pacientes cadastrados em sites de laboratórios exige maior cautela: a companhia terá que deixar bem claro quais dados estão sendo armazenados e para quê.

Irônico, porém, é que esse tenha sido considerado um segredo dos médicos, visto que a própria matéria da Super termina com a citação de Henrique Batista, então secretário geral do Conselho Federal de Medicina, que afirmou que:

O paciente tem autonomia. Mas nós não aprovamos esse comportamento

Número 18: Médicos cometem 12 milhões de erros por ano — só nos EUA

Vou novamente citar ao Dr. Rohin Francis para comentar à matéria, e o vídeo novamente está ao lado.

Erros médicos são reais e problemáticos, mas a cifra real é controversa, e depende muito do que se define como um erro na hora de desenhar métodos de pesquisa. O próprio estudo citado reconhece essa limitação e declara-se como uma estimativa.

É chamativo afirmar que médicos cometem “12 milhões de erros por ano”, mas a realidade depende de várias nuances: o que é um erro? Quais erros causam mal aos pacientes? Quais erros causam mal severo aos pacientes? Quais erros poderiam ter sido evitados?

Isso, é claro, não significa que o erro médico não exista. Existe, e deve ser combatido. Protocolos são frequentemente revistos com essa finalidade, e certamente ainda há muito o que se melhorar. Não tenho todas as respostas, porém reitero a importância de buscar evidência da melhor qualidade possível para embasar reformas. O número “12 milhões” desperta a atenção, mas não é o único ângulo sob o qual se pode analisar a problemática dos erros médicos.

Número 19: A medicina não sabe como muitos remédios funcionam — e alguns simplesmente não funcionam

Nada do que a Super falou no artigo acima era mentira na época em que ele foi publicado, em 2016. Hoje, ele merece uma importante atualização, mas, a rigor, me pareceu trazer afirmações inócuas.

A “importante atualização” é quanto aos antidepressivos: é extremamente provável que eles funcionem melhor que placebo. O debate quanto à sua eficácia é antigo, porém uma revisão sistemática (o melhor tipo de estudo que se pode conduzir na medicina) de 2018 declarou que esses medicamentos são, sim, eficientes.

Isso esclarecido, o restante do artigo se restringe a afirmar que não compreendemos perfeitamente os mecanismos de atuação de todos os remédios. Conhecemos seus riscos e seus benefícios, mas não temos certeza de como eles agem no corpo. E o que penso é… Isso importa? Se sabemos o suficiente sobre um medicamento para determinar sua segurança e efetividade, conseguimos aplicá-lo na melhora da qualidade de vida de um paciente. Com efeito, se podemos aceitar que nem sempre um avanço no estudo da fisiologia implicará num avanço na prática clínica, não me parece problemático aceitar que avanços na prática clínica ocorram, às vezes, independentemente de avanços no estudo da fisiologia.

Número 20: O sistema médico como um todo precisa mudar — e existe um caminho

Minha política ao longo das análises que fiz nesta semana e na última foi de me esforçar para não criticar à Superinteressante por seguir às regras de seu jogo — no caso, o mercado editorial. Este último item escancara o quanto tais regras estão sendo seguidas: é interessante terminar uma edição especial com uma frase de efeito, mesmo que a reforma do sistema médico não seja exatamente um segredo médico.

Há muitos erros nos incentivos que são dados tanto aos profissionais quanto aos pacientes nesse sistema, e não sou arrogante o bastante para afirmar que tenho prontas todas as soluções em minha mente. Para os médicos que deram entrevista à Super, a melhora da profissão passaria por uma formação mais focada em habilidades de comunicação, pela valorização do médico, pelo fortalecimento da confiança do paciente nele, e pelo foco em saúde preventiva. Eu não poderia estar mais de acordo.

Como fiz questão de ressaltar no início deste texto, ainda estou no 2º período do curso, ainda tenho muito a aprender. Tenho mais perguntas que respostas. A mais relevante tem sido o como, como podemos trabalhar por uma medicina mais bem embasada em evidências, mais humana, e mais custo-efetiva? Se tenho, porém, uma certeza, é a de que o diálogo e a comunicação são parte essencial de qualquer tipo de reforma.

Apesar de certo sensacionalismo aqui e acolá, apreciei a leitura dos textos da Super, e acredito no impacto que eles possam ter causado na promoção do diálogo. E espero, também, que meu comentário possa ter contribuído em trazer nuances a essa discussão.

Obrigada por ler este texto! É provável que ele venha a ser o mais controverso que já escrevi, então eu adoraria saber a sua opinião. Você conhecia esses segredos médicos? E o que você acha dos problemas apontados: são realmente problemas? Têm solução? O que você faria para melhorar a situação da medicina?

Se tiver gostado, não esqueça de dar seus aplausos (de 1 a 50), e de compartilhar com seus amigos. Continuarei produzindo conteúdo relacionado a saúde, então não deixe de me acompanhar nas redes sociais para ficar sabendo dos novos posts. Até logo!

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