Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO B [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
32 min readMay 8, 2020

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Resultado: La Equidad (Feitiço do Fanatismo) vence o grupo com 38,3% dos votos e está classificado à segunda fase. Votação atualizada e final no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado.

Eles viram os primeiros jogos direto da concentração e já podem se dizer ACLIMATADOS ao ambiente do 1º Torneio de Contos de futebol — Mario Benedetti. Chegou a hora do valoroso Grupo B, que tem Bangu, Deportivo Capiatá, Los Andes, La Equidad e Albion disputando uma vaga na segunda fase, onde o Vaca Diez, vencedor do Grupo A, espera estirado no sofá e com os pés apoiados na mesinha de centro.

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

O Grupo B tem publicação sexta-feira, 8 de maio, e votação aberta até domingo, 10 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O Grupo C está marcado para terça-feira, 12 de maio. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Questão de Matemática

“Ah, como eu já tinha te falado, tava confiante, viu? É tudo uma questão de matemática: 51 por cento. Não acredita, é? Foda-se. Peraí, peraí… Quem é que tá gritando? Desculpe, não quis dizer isso. Deixa explicar… Dá pra pedir mais uma dessas? De cachaça, claro, não gosto dessas frescuras de vodca, saquê, gim, essas modernidades… Viadagem, isso sim. Caipirinha é caipirinha, porra! De cachaça, o resto é invenção. Tá, tá, sei que você tem orçamento para a reportagem e coisa e tal. Mas te garanto, te garanto, quando as coisas melhorarem, te pago mais do que uma rodada… Que isso, cara? Questão de gentileza. Hoje você financia, a próxima será minha. Camaradagem é isso. Tô só esperando um telefonema do meu agente confirmando o nome do time… Já te falei isso, é? Tá, tá, tô repetindo. Não tô bêbado não, que isso? Só um pouquinho empolgado. Fico emocionado quando lembro daquele pênalti. Puta que pariu, já tô chorando de novo, merda, merda, m…”

No dia do jogo. 0 a 0 arrastado, pouca chance de gol, nada de arriscar, parece que os times combinaram ir pros pênaltis. Vale vaga na final. Treinador da Seleção nas cabines, que ano que vem tem Copa do Mundo. Vivico, o artilheiro do campeonato e da temporada, não se conforma. Quer aparecer pro professor atento lá em cima. Corre pra todo lado, abre os braços, pede a bola, reclama, xinga. E nada. Nem um passe daqueles mamão com açúcar. Por que mamão e por que o acréscimo do açúcar? Vai saber. Chega de digressão, voltemos ao jogo. O tempo passa, os 90 minutos regulamentares terminam sem gol, a prorrogação vem e vai embora sem emoção, o juiz apita… Pênaltis. Bola na marca para a cobrança dos pênaltis que ninguém cometeu, como dizia o João. O Saldanha. O próprio.

“Pois é, seu repórter, pênalti pra mim sempre foi 50 por cento. Os outros 50 são do goleiro. Ele tem menos a perder, não tem a obrigação do batedor, o que vier é lucro. Sempre gostei de matemática, sabe? Sei, sei, já disse isso, tá bom… Mas essa caipirinha! Porção de fritas? Melhor não, pode atrapalhar a bebida, ha-ha-ha. Esta foi boa, hein! Tá bom, tá bom, manda a batatinha. Pênalti para mim tem uma lógica: quem chegar a 51 por cento primeiro leva. Ou o cobrador ou o goleiro. E eu nunca tinha perdido um. Era um olhar reto, mirando sem mirar, que eu não iria dar a pinta de onde chutar. Não falhava uma. O cara caía pra direita, a bola ia pra esquerda. Se caía pra esquerda, a bichinha ia na direita. Nem na cavadinha ele pegava. Aliás, o Djalminha e o Marcelinho se inspiraram no Vivico aqui. Até o Loco Abreu numa Copa do Mundo e naquela final do Carioca.”

Moedinha pro alto, escolha do lado do campo, sorteio… ‘Vivico vai fechar a série, define o técnico’. O professor, um dia inventariam um tal de mister. Cinco pra cá, cinco pra lá, uma cobrança desperdiçada por time, 3 a 3, 3 a 4, hora do Vivico, o empate no pé direito da fera observada pelo treinador da Seleção, que ano que vem tem Copa do Mundo. Com os 51 por cento na cabeça do artilheiro. O sorriso de sempre, a passada confiante, o tique das mãos passando no cabelo para trás, tudo como dantes. Sem quartel e sem Abrantes, que aqui é coisa séria, vale vaga na final. Bicho gordo, entrevista na TV, redes sociais bombando, imprensa farta, convocação no papo, quem sabe a proposta do exterior?

“Não tinha como errar. Peguei a bola com capricho, enxuguei na camisa, olhei bem pra ela, dei até um beijinho… Ah, seu repórter, a galera enlouquecia quando eu fazia meu ritual. Que nem a respirada da Hortência. Pô, só tô comparando, deixa eu continuar. Hummm, boa mesmo essa batatinha! Mandou bem na pedida. É, seu repórter, eu me perdi nos três Bs. Baralho, birita e buceta. E era tudo na mesma noite, sabe? Calma lá, não fica impaciente não. Só tô desabafando. Mas parei, sabe? Quer dizer… diminuí. Baralho tem um tempo que não jogo. A mulherada anda arredia, com buceta e tudo. Sobrou a birita, né? Mas só socialmente… socialmente… socialmente. Como agora com o amigo da imprensa… Aí veio a ligação do advogado. ‘Que porra de divórcio?’, eu quis saber. O sujeito jogou na minha cara: a Yeda não queria mais nada comigo, levou nossos dois filhos e o escambau. Cheguei em casa e o caminhão tinha acabado de sair com quase tudo dentro. Tá certo, andei pisando na bola, reconheço. Tava cada vez mais assediado, a mulherada dava em cima, muita festa, até pó era servido na bandeja. Não, droga não, droga não! Tinha cabaço de experimentar. Ficava nos Bs mesmo, ha-ha-ha. Mas precisava ela sair daquele jeito? E eu ali naquela sala pelada com cara de tacho encarando o porteiro com cara de ‘se fodeu, babaca’… Me fodi mesmo. A vida é foda, sabe? Foi uma facada e tanto. Fiquei malzão, cara, mal pra caralho. Agora tô melhorando um pouco. É só meu agente me ligar e dizer qual o time. Aí eu entro em forma rapidinho. Duas semanas malhando, correndo, fico à disposição, é só confiarem em mim. Já imagino até a manchete no jornal: ‘A volta por cima de Vivico’. Mas isso é com vocês da imprensa. Meu negócio é em campo e vai voltar a ser. Deixa o agente ligar. Mas primeiro tenho de arrumar esses dentes que estão caindo, não dá nem pra sorrir direito… Vê se não me põe banguela na foto, hein! Tá bom, tá bom, não tô fugindo do assunto. É que eu fico emocionado. Porra, puta que o pariu…”

Bola na marca, silêncio nas arquibancadas. Times abraçados no meio do campo, reservas abraçados no banco. Treinador da Seleção atento na sua cabine com ar refrigerado, copo d’água pela metade na mão. Milhares de celulares erguidos para pegar a imagem da cobrança que pode empatar a série. Goleiro balançando os braços, a advertência do juiz: ‘Nada de pular antes da hora’. Vivico respira fundo. 51 por cento, 51 por cento, 51 por cento, vale vaga na final, bicho gordo, imprensa, entrevistas, convocação, Copa do Mundo, proposta, exterior, mulherada pintando, um baralho aqui, uma birita ali, a buceta… A corrida para a bola.

“Desculpa o vexame, sempre choro quando lembro. Pode faltar baralho, pode falta buceta, pode até faltar esta caipirinha, seu repórter. Mas aquela bola tinha endereço certo. Filho da puta do goleiro! Filho da puta do advogado! E o pior é que ele tava comendo a Yeda na maior. 20 por cento em honorários e 100 por cento na cama da cliente. Tão morando juntos agora, sabe? E meus filhos lá com aqueles sacanas. Olha aí, já tô chorando de novo. Acabou a caipirinha. Dá pra sair mais uma? A próxima é por minha conta, prometo. 51 por cento, puta que pariu pra tudo isso!”

Dois Avôs

Tem tempo, o camisa dez pensou, erguendo a cabeça.

*

Na arquibancada, corre um tempo paralelo. Precisa ser assim. Um senhor e um menino olham aflitos para o campo. O senhor veste uma camisa de botões branca, transparente o bastante para que se veja a regata, também branca, por debaixo. O menino veste as cores do time que vai ao ataque, que precisa ir ao ataque. Veste as cores por ambos — são avô e neto, também dois tempos em paralelo. O neto pergunta quanto falta. O avô é do tempo do radinho, espera lhe dizerem ao ouvido para responder.

*

No campo, quando se ergue a cabeça abre-se uma eternidade. Ele não precisava ter estudado em bom colégio para saber. Embora uma aula de matemática com vetores e análise combinatória tenha ajudado a assentar umas ideias. Mas foi antes, muito antes de saber, que aprendera. Longe da cidade, quando vinham as férias na casa da avó, era possível preencher um dia com três. Um gato atravessava o piso frio da cozinha e quase desaparecia em vagar lento pela tábua escura da sala, sempre rente à parede, até chegar ao sofá marrom, onde se deitava em absoluto silêncio. Não se ligavam as luzes da sala, ou de qualquer peça, durante o dia. Acercando-se ao gato, tocando-lhe a frente, entre os olhos cerrados, percorrendo o corpo negro, detinha-se na barriga, e aí sentia calor e um certo tremor que virava som, também escuro. Era meio dia, quando se apercebia. Meio dia em que se passara um.

*

Quarenta e três, gritam no rádio. O avô reproduz, o neto assente, apertando os lábios. O neto também escutara o locutor em desespero, no entanto, aguardou por dois segundos que o avô lhe dissesse o mesmo, que a voz do velho transformava em outra coisa. O avô, contava, havia sido goleiro. Tinha a história de um pênalti de que falava com graça, mas a vida pregressa nos gramados não ia muito longe daí. Suas histórias eram de arquibancada. Subira em muros, muitas vezes, para ver os clássicos. Vira, naquele mesmo campo, o Pelé de luvas — luvas de arqueiro. Dizia nomes nunca antes escutados, e quase tudo que correspondesse ao jogo nomeava de uma forma distinta que misturava duas ou três línguas. O que o neto aguardava era ouvir o golo. Faltava um golo.

*

A chuteira fincada na barriga da bola, a cabeça erguida, o calor do jogo todo condensado na sua parte de chão. Alguém que fosse mais atento, alguém que o conhecesse profundamente, saberia que ali o camisa dez sorria. A bola era como uma caneta com que — não havia rastro de dúvida, era uma certeza feliz — ele poderia riscar a história que quisesse até entregar o final clichê (que todos queriam o final clichê). Mas, antes, ele faria do seu jeito. Qual jeito ele não sabia. Era exatamente aí que morava todo seu amor pelo futebol. Ele amava em retrospectiva. Ida e volta. Se no final o gol estava feito, a arquibancada descida em chamas, faltava a obra que começaria ali.

*

O que ele está fazendo, vô, voltando a bola pro volante? O neto retorna ao desespero do locutor. O avô está com o olhar perdido direcionado à casamata. Lembra de uma noite longínqua, de outros refletores, em que o agora treinador era ponta direita e achara um gol dando um balão para o alto. Voltar a bola para o volante não parecia tão ruim. Embora esse volante — e se dando conta o avô passou a fazer coro aos mais novos à sua volta -, esse volante era terrível, e estava cansado, e tinha renovado por mais três anos, e onde a direção estava com a cabeça, eu não vou viver pra ver essa naba sair do meu time. Mas, ao olhar para o neto, arranjava um sorriso. Uma vez — disse, apontando para o técnico — aquele ali deu um balão e nos levou pro outro lado do mundo.

*

Na casa da avó, depois do almoço, às vezes aparecia o avô, sem barulho. Separados há anos, mantido o respeito, ele cuidava para não atrapalhar a hora da refeição, mas não deixava de passar para ver o neto, que não vinha sempre da capital. Dali uns minutos, quando mais à vontade, o avô buscava a gaita no carro — que era também uma espécie de casa — e se punha a conversar com o instrumento, que o respondia ao toque relaxado de seus dedos. Era assim que o avô falava com o menino, com a família.

*

O neto sabia que o avô lhe contava aquelas coisas para lhe confortar, mas 43 eram 43, e a essa altura já eram 44. Ele queria o mundo hoje, ou na próxima semana, não em um passado distante. O avô tinha um táxi, era treinado na arte de acertar os ânimos para uma corrida tranquila. Percebendo que glórias passadas não serviam para acalmar o neto, o avô lhe passa o radinho e faz uma promessa.

*

Ele não sabia por que voltara a bola para o volante. Simplesmente gostava daquele tipo, sabia que a pelota lhe retornaria na próxima passada, cuidou de se aproximar do amigo para receber ainda dentro do seu prólogo particular, agora reconfigurado. Já não carimbaria a bola com as travas, deixou-a correr um pouco, viu a mão do centroavante, a cabeça do lateral esquerdo, reparou que o marcador mais próximo troteava para trás em uma diagonal completamente perdida, rumo ao seu próprio companheiro de time, por acaso o melhor dos marcadores do lado de lá. Quase deu pena.

*

A arquibancada não precisa de outra coisa senão uma bola deitada na grama correndo em direção ao inimigo, o inimigo correndo contra própria a meta, e todos os seus indo, em coreografia, no encalço deles — a extensão do domínio da luta ao sem limites. De repente, o estádio inteiro encarnado nos onze, e os onze vivendo como que uma alucinação coletiva sem freio. Netos, avós, sobrinhas, filhas e sogros, todos engatam ao pé do meia que vai à frente, do meia em cuja cabeça começa a tocar uma gaita frenética, única aceleração permitida nas tardes que de resto se arrastavam nas lonjuras dos campos de soja. Com a alegria da gaita, segue com olhos felinos postos ao ataque, derruba dois oponentes somente com o ímpeto de seguir, dribla o acidente, troca de perna, desenha uma perpendicular apenas para distrair o zagueiro que marcaria a subida do lateral esquerdo. Nesse ponto, também o avô já vê tudo em retrospectiva, também ele sorri ao que está para acontecer com o neto, que lhe aperta a mão e vê, para nunca mais esquecer, o canhoto caminhar sobre o verde incandescente quase sem o tocar e lançar o petardo que transformará os sons da gaita, do rádio e das cornetas em um ronronar surdo que durará duas ou três gerações.

Do Teu Lado

Mania é ato de repetição contínua. Trejeitos, ações. A de Celeste era por lugares. Mas não aqueles que se encontram através dos códigos de CEP ou que podem ser lidos em placas penduradas nas esquinas de vias públicas. Não era apenas uma mania, mas algumas. Elas tinham em comum o fator localização.

O grande corpo que balançava de um lado para outro sempre sentava sempre no mesmo assento do ônibus. Do lado oposto da porta de saída e bem perto da janela. No escritório, as baias não tinham lugar marcado, por isso era o primeiro a chegar no trabalho e ocupar o espaço mais próximo do corredor de acesso a copa. Em casa, uma parte do sofá era mais funda e suja do que o restante do móvel. Havia duas cadeiras na cozinha, mas apenas uma tinha sinal de uso. Comprava ingressos para o cinema com uma semana de antecedência apenas pelo receio que alguém ocupasse a poltrona L9. A sala de cinema também era a mesma, independentemente do filme que estivesse em cartaz.

Em um dos seus espaços favoritos no mundo, essa zona individual de conforto era mais difícil de demarcar. A falta de uma poltrona ou qualquer outro tipo formalidade tornava aquele lugar em um mar subjetivo e concreto. Celeste contava sete degraus acima, oito passos à direita e ali a imensa bunda se aquietava.

Próximo a bandeira de escanteio, do lado oposto das cabines de imprensa, paralelo à organizada, longe das sociais. O ângulo perfeito para jogos à noite pela brisa que vinha de fora do estádio. Jogos vespertinos incomodavam mais. Sol na face até metade do primeiro, mas nada que o demovesse do seu lugar tão estimado.

O sujeito de modo tão peculiares não tinha na comunicação o seu forte. O cara da pipoca, que há anos via Celeste no mesmo espaço e em todos os jogos, sabia que os cinco minutos após o início do primeiro tempo era o momento ideal para abordar o cliente.

- E aí, Arara, vendendo muito hoje?
- Porra nenhuma. Jogo de cumprir tabela é uma merda. Tá vendo não? Estádio vazio. Também quem vem pra um jogo quarta-feira, oito da noite, com metade do time que entrou reserva e outra parte vinda do juniores? Só os doidos como tu.
- Mas domingo isso aqui vai tá cheio.
- Se vai. Nove anos que o time não classifica pra fase de mata-mata.
- Mas esse ano o tá diferente. Faz tempo que eu não vejo assim.
- Tu acha que dá pra ser campeão.
- Sei lá. Bora ver.

Se dependesse de Celeste, consumidor compulsivo de ansiolíticos, os ingressos para as oitavas de final já estariam comprados, mas a diretoria preferiu segurar para começar as vendas no dia seguinte.

Vacilos e percalços marcariam o espaço de tempo entre o meio da semana e o domingo. O labor consumiu sua mente. Estava difícil encontrar concentração com tantos eventos ocorrendo ao mesmo tempo. Fechamento de mês, chefe novo e uma decisão inédita no final de semana. Quando lembrou da partida, os bilhetes já tinham acabado pela internet. Só no dia e na boca do caixa. Foi o primeiro puta que pariu de muitos que ainda viriam.

Percebeu que as coisas não estavam normais quando entrou no elevador e viu o vizinho vestindo a mesma camisa que ele. Nunca passou pela mais vaga ideia que o rapaz de cabelo engomado, bermudas e sapato social tivesse apreço pelas mesmas cores.

- Esse ano o título é nosso.

O xingamento ficou apenas nos pensamentos e não se oralizou. Temia essa confiança exacerbada de quem não parecia sofrer junto com a torcida do seu time.

- Tá indo pro jogo também?
- Nada. Muita gente. Não dá pra mim. Vou ver com uns amigos num pub. Traz lá essa vitória pra gente.

Esperou o vizinho se afastar das suas pálpebras para mandá-lo de encontro ao xingamento mentalizado.

A recordação de tanta gente em frente ao campo em um domingo de sol o remeteu a época em que era arrastado pela mão por sua mãe. Levava a foto dela no bolso a todos jogos como uma prova do amor herdado. Duas horas antes da bola rolar os ingressos tinham sumidos das bilheterias e se teletransportados para as mãos dos cambistas. Com 20% de ágil, pegou a sua entrada e rumou para o lugar que considerava seu por direito.

Mesmo ritual com os degraus e sua caminhada em direção a linha de fundo. Depois de alguns pedidos de licença e joelhadas nas costas alheias, chegou ao lugar de sempre, dessa vez ocupado.

O boné virado para trás estampava o escudo do clube. O meliante que tinha roubado o local sagrado pouco se importou com o corpanzil que estava cravado atrás dele e continuou a tamborilar a tela do celular.

André sentiu pontadas nas costas. Eram os dedos de Celeste. Não conseguia entender o som que saiam daquela boca emoldurada por um cavanhaque castanho. Teve que tirar os fones do ouvido para escutar as últimas palavras da frase.

- … pro lado?
- Como?
- Tem como você afastar um pouco para o lado?
- Ah, claro.

O estádio estava cheio, mas não havia necessidade de uma pessoa que, com certeza, pesava mais de cem quilos e tinha uma largura significante querer sentar justamente ali. Era o inevitável o toque das pernas.

Poderia ter puxado uma discussão, se recusado a sair daquele canto e mandado o gordinho tomar no cu. Engoliu o que em outro momento da vida seria entendido como um desaforo, mas não queria confusão naquela tarde.

Estava distante daquele círculo de concreto a mais de uma dúzia de anos. No final da adolescência foi levado pela família para outra região do país e de lá só tinha notícias do time pela internet. Jogos só em videotape ou TV à cabo, mesmo assim foram raras as vezes que viu o manto sagrado desfilar dentro do quadrado eletrônico. Voltar para aquilo que foi o seu aconchego durante a infância e início de juventude tinha um significado especial. Tinha feito a promessa de que nunca mais perderia uma partida do seu time jogando em casa.

Pensava que nada iria irritá-lo, mas o tremelique de pernas do vizinho de arquibancada não o deixava nem sequer prestar atenção nas informações da jornada esportiva do rádio.

- Nervoso.
- Como é?
- Vai ser nervoso o jogo hoje, né?
- Ah, vai sim. Você não imagina como eu to aqui.

Só não imaginava como via com os seus próprios olhos o quase Parkinson de Celeste. Talvez fosse contagioso, mas a intranquilidade também fez morada no corpo de André. Começou com a entrada do time em campo. Bandeira tremulando, fogos, papel picado caindo do céu ao mesmo tempo que gotas despencavam dos olhos repatriados.

- É bonita demais essa torcida.
- Nem fala.
- Tá chorando?
- Nada, caiu um pedaço de papel no meu olho.

Trocaram mais meia dúzia de comentários até perto do final do primeiro tempo.

A bola chutada despretensiosamente da intermediária toca a pequena área, passa pelos braços do goleiro e morre na rede. André não entendeu como seu rosto foi parar no pescoço de celeste. Sabia que seria impossível seus braços envolverem todas as costas daquele que o apertava. As lágrimas se misturaram o suor da adiposa pele.

O rapaz de nariz ossudo e boné mal lavado permeou os pensamentos de Celeste em uma trinca de dias. Novamente a concentração pegava o bonde em uma estação muito distante. Culpa de mais uma fase avançada no campeonato. Culpa da falta de coragem de ligar para o terapeuta e voltar com as sessões para amenizar a ansiedade. Culpa do desconhecido. Desconhecido que atendia pelo nome de André.

Tudo estava bem até ele aparecer. Logo no seu lugar de estimação em um dos seus espaços favoritos do mundo. Desgraçado. Por que não vai embora dos pensamentos? Até em sonhos o miserável resolveu aparecer, e, como no dia do primeiro jogo do mata-mata, nem pediu licença. Chegou e tomou conta de tudo.

O empate fora de casa no jogo da volta garantiu a classificação para a próxima fase. Mais uma partida eliminatória. Não bastasse a angústia que sempre acompanha os certames decisivos, tinha mais um aperto no peito e motivos para descompassos respiratórios pela dúvida. Será que André ocuparia o seu lugar novamente?

Nada. Local vazio. Estádio cheio. Uma inquietação de olhar para os lados e nada ver.

- Sabia que ia te encontrar aqui no mesmo lugar.

As púpilas de Celeste cristalizaram ao ver quem esperava, mesmo sem nada ter marcado previamente. Um sorriso sincero bem no meio do cavanhaque.

- Pensei que você não vinha.
- Tá louco? O time embalado desse jeito, não perco por mais nada. Afasta aí. Acho que deu sorte a gente ver o jogo junto. Esse aqui agora é meu lugar de estimação.

A afirmação gerou naquele grane homem um sentimento confuso de profundo ciúme e algum acalanto. Dali em diante teria companhia para cornetar o zagueiro que não sabia sair jogando, elogiar o garoto destaque da base que não sente o peso do profissional, e o mais importante: abraçar com gosto seu vizinho de arquibancada na hora do gol.

O concreto entupido de gente obrigava mais uma vez o roçado das pernas. Novamente a tremedeira, agora por outros motivos bem diferentes da impaciência anterior. Estava concentrado no jogo, mas por vezes tirou os olhos do gramado e os fixou na silhueta do perfil de André. O obtuso nariz ainda era o que mais se destacava, porém pode reparar em outros detalhes. Cicatriz na testa pouco abaixo do boné. O assessório de cabeça escondia um ralo cabelo. Piercing na orelha. André era um parque de distrações.

Zero a Zero. Jogo da volta não foi fácil. Classificação nos pênaltis. Primeira partida da semifinal com a vantagem de fazer o segundo embate dentro de casa. Para Celeste não estava sendo tão vantajoso assim. Duas semanas sem encontrar seu parceiro de bancada. Não entendia nada sobre saudade até aqueles dias. Ansiedade como única companheira.

Jogo noturno, estádio ainda vazio e ele chegou mais cedo. André tinha entrado assim que os portões tinham sido abertos. Nada de boné. Roupa social. Deveria ter vindo direto do trabalho, pensou assim que o viu no lugar de sempre. Os refletores o encadeavam. Algo celeste na visão de Celeste.

- Abriu o campo?
- Cara você não tem ideia como estou nervoso. Não fava para esperar em casa. A gente não podia ter perdido o primeiro jogo.
- Calma, dá pra ganhar
- Não estou com essa confiança toda. Não fizemos três gols em um mesmo jogo durante o campeonato inteiro.
- Relaxa. Vem cá. Me dá um abraço.

Sentiu André tremer. Sorriu.

Três minutos para o fim dos acréscimos. Dois a zero no placar e falta na intermediária. Ninguém sentado nas arquibancadas. Goleiro na área. Celeste segurou a mão suada de André que devolveu o gesto com um olhar apreensivo. O zagueiro que não sabia sair jogando testou do alto para o chão. Bola e três adversários emaranhados dentro do gol. Apito final. Braços abertos e o companheiro neles. Molhado e de língua. O beijo sincero no lugar sagrado. Mãos dadas. Até a final.

Feitiço do Fanatismo

A morte despertou a vida que não pulsara em Hernán González. A estadia de quatro meses no presídio marcou o jovem que apenas tentava sustentar a mãe enferma. Não se recuperou e nem aprendeu no cárcere. O sistema punitivista oferece apenas ódio. A saída dos muros o presenteou com uma ficha manchada e uma mãe morta. O corpo aguardava, há duas ou três semanas, no banheiro ainda mais sujo do que lembrava. O cheiro de carne podre não incomoda vizinhança sem saneamento. Dona Herculana haveria de prolongar a passagem entre os vivos besuntada sobre a poça de sangue e seus excrementos póstumos. O herdeiro foi o único a prover uma boa morada. O enterro de uma mãe assistido apenas pelo filho.

Fonte da antiga subsistência e motivo da prisão, o contrabando de cigarros não mais seduzia Hernán. A negação parte da dor nas têmporas que culpa a nicotina pela maldita lembrança da putrefação do cadáver ensanguentado na entrada do chuveiro. Não bastasse a memória, o chão de cimento se tornou sagrado e profano, com a marca do contorno do corpo da mãe que ainda brilhava em tom rubro com a ausência de luz no cômodo.

A marca de ex-detento apartava qualquer chance de emprego. Hernán González passou o primeiro mês a misturar leite com água para não secar o estômago. A oportunidade partiu da única testemunha de sua desgraça. O senhor que passava os dias sentado em frente ao cemitério, com a cuia de mate cheia, necessitava de um ajudante nas funções funerárias. Único candidato com interesse pela vaga, o filho de Herculana seria escolhido entre todos, pois ainda exalava odor de necrose — característica ideal para a função.

Destino inevitável dos seres vivos, a morte se tornou ofício e materializou-se em sentimento. A abertura de covas e o tamponar dos orifícios dos inanimados, seis dias por semana, oito horas por dia, rendiam setecentos pesos por mês. Contas atrasadas começaram a ser pagas. O alimento, em pequenas porções, rareava por geladeira e armários. A fome saciada e o dinheiro não compensavam a solidão. O último capítulo da vida da mãe era desencovado todos os dias, na mesma proporção que recebia caixões carregados por familiares de falecidos. Sentia vontade de morrer por não ter oferecido uma cerimônia digna. A mesma solidão que subtraía o gosto pela vida impossibilitava o suicídio: preferia o horror de se arrastar morto a não ter quem carregasse o seu caixão.

Acostumou-se com as lágrimas alheias. A indiferença ecoava dentro de um ser que não sentia compaixão pelo sofrimento dos outros. O rumo de suas afetações mudou diante do óbito de Pablo “Hechicera” Asturias. Aos cinquenta anos, o ex-jogador e maior ídolo da história recente do Apóstoles faleceu de infarto. Apesar de não acumular grandes conquistas com a camisa nacional, Hechi jogou os dezesseis anos da carreira no único time local de San Emílio. Capitão e principal personagem do esquadrão desde a juventude, o meio-campista ditou a moda da barbicha entre os homens. O número 14 da sua camisa se tornou a tatuagem oficial do vilarejo. Com a bola nos pés, enfeitiçava marcadores com a magia de seus passes e dribles. O vigor físico não autorizava que perdesse disputas — aéreas ou pelo chão. A adrenalina, presente em seu corpo mesmo após a aposentadoria, consentiu com a interceptação do sangue que chegaria até seus átrios.

O acontecimento repercutiu como grande tragédia para a pequena cidade. Hernán González teve a anunciação antes mesmo de saber da mais nova notícia. O silêncio da companhia diária dos mortos foi interrompido por cânticos firmes e amargurados. A multidão de apostolences levou o azul e rubro para ocupar a grisalha necrópole. Os túmulos tremiam e os anfitriões se preparavam para receber o mais querido hóspede. Antes mesmo do sepultamento, metade da cidade lastimava no cemitério, enquanto a outra metade acompanhava o corpo em peregrinação pelas ruas do município.

O ajudante de coveiro começara a ter contato com algum sentimento, mesmo que ainda não identificado, pela primeira vez desde a morte de sua mãe. Admirava as crianças a escalar árvores para girar o manto rubro-celeste. Como controlado por um ventríloquo, Hernán passou a entoar gritos de ordem e juras de paixão desconhecidas. Nenhum apostolence imaginaria que o agente funerário havia sido aliciado nas últimas horas pelo único amor que dominava a cidade. Enquanto aguardava o corpo para realizar o sepultamento, bebeu e chorou abraçado com desconhecidos.

No início da quadra do cemitério, o congestionamento de pessoas nas ruas trancou o caminhão que levava o caixão. A população, por instinto, tirou Hechicera do automóvel e o transportou até a lápide, de forma que o ídolo passasse pela mão de cada um de seus fieis. A última jogada do astro do futebol local foi ser carregado pela multidão, como um artista. Depois de passar, durante duas horas, por milhares de mãos da plateia, o ataúde chegou até Hernán. O recém-doutrinado chorou lacrimou sangue ao perceber a importância do momento.

Até a última pá de terra, o evento foi interrompido algumas vezes: oito pessoas tentaram se atirar no buraco, a fim de passar a eternidade no colo de Hechicera. Após lacrar o sepulcro, a celebração continuou por duas semanas. A festança imunizou a população de qualquer chaga ou acidente que poderia afetar San Emílio. Ninguém morreu na cidade enquanto proferiam as sagradas músicas apostolences.

Dois anos após a morte do ídolo, moradores visitavam, todas as manhãs, a lápide para pegar as bênçãos. O fim do turno de Hernán González era o único período sem movimento no trabalho. Assim como os mais antigos devotos, adquiriu o hábito de conversar com o mausoléu. Tinha intimidade e privacidade com o amigo mais desejado do povoado. No início do dia, torcedores depositavam desejos e pedidos; durante o fim da tarde, Hernán agradecia por ter retomado o rumo da existência. Prometeu recompensar Hechicera, com a certeza que a oferenda seria aceita.

Decidiu conhecer, ainda melhor, o grande astro. As arquibancadas teriam muito a dizer sobre o falecido. Hernán não teria coragem de cantar e comemorar sozinho. Então, esquematizou o plano. Comprou os ingressos, por apenas dez pesos, para o embate entre Apóstoles e Taquerín. Não tirou o compromisso da cabeça até o fim da tarde. Após a liberação e saída do chefe, permaneceu por mais meia hora nas instalações do cemitério. Finalizou os trabalhos. Trocou de roupa. Pegou o transporte até o palco do evento. A libertação completa se deu na entrada do Estádio José Miguel Carrera. O fanatismo se tornaria a mais vitoriosa superstição.

Quarta-feira e domingo se tornaram os principais dias para Hernán. O trabalho de coveiro e a rotina dos jogos permaneceram até o fim de seus dias. A armadura das batalhas foi a camisa 14 falsificada que algum fã entregara aos pés da lápide de Hechicera, e a mesma velha mochila preta que levava do trabalho até o estádio. Durante as fervorosas partidas, refletia sobre a atmosfera bélica e fantástica envolvida no clima patagônico que o rodeava, enquanto seus dedos eram tatuados pela grade. Sacudia ao lado de outros das mesmas cores como se fosse peneirado pelo balançar do alambrado. A rede retinha apenas o corpo ensandecido a buscar a liberdade. A maleabilidade da alma permitia que a paixão fosse escoada até o limite das linhas de cal — e ali ficasse, ajoelhada, em forma de súplica.

Precisava de apenas dois pares distintos de patas para se fixar aos fios de seda, tecidos para aqueles que encontram o sentido dos dias na barra brava. A solitária vida não existia entre desconhecidos tratados como irmãos. Beijos e abraços consentidos, programados em roteiro sem direção de cena. Os atores se manifestavam de maneira espontânea e cumpriam papéis orientados apenas pela emoção. O improviso sempre foi a principal arma nos arredores, dentro e fora de campo. As veias arfavam no ritmo dos cânticos.

O modesto Apóstoles vibrou nos seis melhores anos de sua centenária história. Desde o início do interesse pelo futebol, Hernán viveu apenas glórias. O invencível torcedor teria um aproveitamento que superaria qualquer possibilidade lógica. Apostolences não imaginavam que o maior amuleto da instituição seria a parceria entre um torcedor e a sua mochila preta, sempre pregada às costas. O progresso trazido pelo dinheiro das incontáveis premiações foi o motivo da derrocada.

Jogadores revelados pelo clube passaram a ser vendidos ao Velho Continente. A velocidade do nascimento das promessas se tornou menor que a ganância dos dirigentes. A modernização do Estádio José Miguel Carrera foi programada de maneira veloz. Hernán e seus desconhecidos companheiros não puderam mais torcer pendurados no alambrado. O som grave dos tambores e os bandeirões que tocavam as estrelas foram proibidos. Os setores da torcida foram divididos entre chão, para os que pulam, e cadeiras, para os que não sabem torcer.

Reprimidos e sem valor, perto do dinheiro estrangeiro que abastecia os bolsos gordos dos cartolas, os devotos do Apóstoles foram esquecidos. A invencibilidade não é o motivo do amor de quem estava ao seu lado nos piores momentos. A macondização do clube foi concluída quando o passaporte para os jogos passou a custar 100 pesos no setor mais barato. Mesmo assim, Hernán González deixava de comer para não abandonar o time. Estava presente em todos os jogos, com a mesma mochila preta, assim como havia prometido.

A vitória que ficara marcada como a última da história centenária do Club Atletic Apóstoles foi em um 4 de março. Nem a goleada de 4 a 0 agradou Hernán, o torcedor mais incomodado pela exigência de permanecer sentado e calado, como em uma exibição de cinema mudo. No fim do jogo, puxou os gritos que antes eram a identidade do clube. A polícia agiu de forma rápida. Reprimiu, com espuma na boca, milhares de torcedores. Os tiros de arma de fogo ensurdeceram e emudeceram simpatizantes das baterias de percussão. O gás lacrimogênio agiu como prenúncio do enxofre que habitaria para sempre a Preston Arena Inc — antigo Estádio José Miguel Carrera.

Acompanhada da música pop estrangeira que tocava no sistema de som do estádio, a carnificina deixou 1.300 mortos — segundo os noticiários. O número de torcedores que não voltaram para casa após o ocorrido é incontável e desconhecido. Uma das vítimas vestia um uniforme falsificado banhado a sangue, com o número 14 cravado na parte traseira. Em sua desgastada mochila preta, carregava um crânio humano. Para não expor mais problemas, a corporação decidiu enterrar a ingrata surpresa junto com o insubordinado que iniciou a agitação. Enquanto a curva de ascensão dos últimos seis anos do clube de San Emílio despencava até a falência, a eternidade presenteou Hernán González com a companhia dos restos mortais de seu maior ídolo, Pablo “Hechicera” Asturias.

E Morte e a Morte de um Juiz

Até hoje permanece certa confusão quando se lembra da morte de Shell, o grande árbitro das peladas da Folha Seca Gelobol Clube. As versões da família e dos peladeiros se contradizem sobre local, horário, causa mortis e principalmente sobre o cortejo fúnebre — até mesmo se houve ou não tal cortejo. Sua sobrinha garante que morreu dormindo, de madrugada, e que ela não teve nada a ver com a história — há apenas alguma certeza que ela não teve relação com a morte, porque no dia fatídico encontrava-se presa. Já a filha, essa sim vivendo no mesmo ambiente que ele, garante que o juiz saiu de casa por volta das seis da manhã, como era natural aos domingos dos últimos 12 anos, dizendo que faria sua última partida como árbitro, que a partir da semana seguinte se aposentaria. Ela estranhou o tom emotivo de seu comentário, e disse que ao perguntar “como assim última partida?!”, ele virou as costas e nunca mais foi visto — e nem mesmo chegou ao gramado para se despedir. Seu paradeiro seria um mistério ainda a desvendar. E que seu marido, foragido da justiça, também não tinha nenhuma relação com o sumiço do pai, ela garantia.

Pesquisas incansáveis sobre seu sumiço nos trouxeram alguns relatos sobre sua presença em alguns pontos da cidade do Rio de Janeiro no domingo 14 de março de 2020. A verdade, garantem alguns peladeiros, segue adiante.

O árbitro chegou, como de costume, ao campo do Sindicato dos Conferentes de Carga, região próxima à Rodoviária Novo Rio, pouco antes da oito da manhã. Reclamando que o ônibus demorou mais que de costume, que ainda assim tinha chegado a tempo, que era inadmissível a pelada atrasar mais uma semana e que não havia tomado café da manhã — até aí nenhuma novidade. De pronto o peladeiro argentino Federico oferece uma banana para ele, que aceita de prontidão. Alguns creditam a morte à banana que poderia estar envenenada, porque havia uma rixa entre o jogador e o árbitro por uns excessos de cartões. Mas outros peladeiros usufruíram do mesmo cacho e permaneceram vivos — na verdade já a partir do dia seguinte todos entraram em quarentena por conta da pandemia do coronavírus, e pouco se sabe se de fato todos estão vivos. Mas isto é outra história, que não nos vêm ao caso.

Tudo seguia normal, partida se iniciando com o atraso usual. De um lado, pelo Time Laranja, o arqueiro Chicão tinha à sua frente os zagueiros Lucas, Zé Lucas e Federico (“soy atacante, carajo!”). Wi Fi fazia a lateral e a ponta direita simultaneamente. Shaolin fazia a cabeça de área acompanhado mais à frente de Foquinha e Zic na meiúca; no ataque Capuchinho e Maioria.

Do outro lado do gramado, no Time Branco o lateral Cissè barrou o goleiro Báia e assumiu as traves. Na zaga Cris e Geo tendo Manelzinho à frente na cabeça de área. Felipex na lateral direita, batendo em tudo, menos na bola, e PM na lateral esquerda (logo substituído por Café). Tinoco, o xerife no meio de campo jogava ao lado do experiente Cheval e de Lula Livre. À frente, Bê e Senhor Wilson na banheira — quer dizer, no ataque.

Ainda no primeiro tempo Maioria marcou uma vez (“um balaço velhinho, você viu?”), Wi Fi o segundo (comemorou dançando Salsa) e Saci complementou o placar (“gol à lá Nilton Santos” quis se comparar) pro Laranja. Do outro lado, Senhor Wilson fez três (“sou artilheiro dessa porra!”) — tudo anotado na súmula pelo Guerreiro, a postos do lado de fora do alambrado, auxiliando Shell que já não via muita coisa dentro de campo, quiçá tinha condições de anotar quem fez gol, tomou cartão etc. — a cada gol ou cartão, Guerreiro grita, “quem?”, sempre desatendo ao certame.

Mas vamos ao que importa, que a história é do nosso querido juiz. No intervalo Shell molha seu boné e coloca na cabeça — “é fundamental se refrescar, se não não aguento, a idade está chegando. Hoje tenho inclusive um comunicado a todos vocês, muito importante”. Uns perguntam do que se trata, mas logo deixam de lado, porque toda semana tinha uma história pra contar, seja da filha que foi presa, da sobrinha que roubou seu celular, da camisa do Internacional que ganhou quando foi a Porto Alegre numa viagem pelo Comitê Olímpico Brasileiro, ou dos depósitos que fazia pro presidente do COB — e vive morrendo de medo da polícia bater na sua porta por causa disso –, ou então da chuteira que ganhou do Cabelada (“todo juiz é ladrão, Cabelada não!”) num Samba do Trabalhador, no Clube Renascença. As histórias eram, além de longas, repetidas.

O calor não estava dos piores na data fatídica, mas logo que entrou em campo pro segundo tempo reclamou de uma tontura. Metade gritou, “vamos sem juiz mesmo, não vai mudar nada, já não enxerga mesmo” e a outra metade “melhor sem ele, só atrapalha”. Mas ele insiste, diz que não pode deixar a pelada na mão e dá o apito inicial da segunda etapa. Mas a partida não se inicia, talvez pelo esforço ao assoprar o apito, caiu pra trás e apagou. Preocupados, os jogadores prontamente o colocaram ao lado da linha lateral, para que se desse um novo início à partida. Presidente, que tinha chegado há pouco (“o 473 hoje demorou uma eternidade, não aguento mais esse busão”) assumiu o apito. Mas minutos depois, percebendo que parecia ser mais sério do que um desmaio matinal, Cris dando um bico pra lateral grita pros reservas o cobrirem com o pavilhão da Folha Seca, pro corpo não ficar à mostra.

Corpo coberto, o jogo finalmente segue seu rumo. Zic amplia o placar pro Laranja com uma bicanca. Chicão, a cada defesa, ficava gritando “é eu! É eu! É eu!”, até que Senhor Wilson marcou seu quarto gol no jogo e gritou “‘é eu’ é o caralho!”. Pra desempatar, ninguém menos que Manelzinho — contra — deu a vitória pro time Laranja. “Jogar no time do Manelzinho é derrota certa”, lamentavam Cissè e Geo.

Partida terminada, o que fazer com Shell na beira do gramado? O técnico LuciDez tomou a frente e disse que deveria levar pro IML. Como de costume, ninguém deu ouvidos às instruções do treinador e colocaram no porta-malas de um dos carros e foram pro Gelobol no Bar do Xoxó na Tijuca. “Mas vai ficar no porta-malas? Vai feder!”, gritou o Presidente, já lambendo uma Brahma meio quente. Ajeitaram o juiz na cadeira, bem acomodado, inclusive com um copo cheio de Antarctica — “ele não gosta de Brahma”, lembrou Valverde, que sempre paga a parte do Shell no ratatá. Baixinho vem servir a quarta rodada, olha pro Shell e comenta: “esse daí sempre dá um cochilo né?”. Cerveja quente pra cá, outra congelando pra lá, a mesma ladainha semanal, “por que sentamos aqui se a cerveja ou vem quente ou congelada?”; “por que não vamos direto pro Madrid?”. Levantam, viram a esquina, caminham exatos 36 metros e sentam-se todos no Bar Madrid.

Deco recebe a turma com sua simpatia (oposta à do Felipex, seu sócio), todos dão aquele alô básico, mas Shell responde com um arroto. Estranhando, Deco olha de resguela, faz uma cara de insatisfeito, e comenta ao fundo com Felipex: “bem que disse que esse juiz não gosta de você”. Mas releva, sabe que já está bêbado, e fica tudo por isso mesmo. Bêbados, na verdade, estão ficando todos. E animados. “Hoje tem Samba do Peixe, eu já estou indo pra Folha Seca”, lembrou Maioria. E como seu voto equivale a 50% mais 1, juntam-se uns táxis pra Rua do Ouvidor, onde rolaria o samba. Saci, Zic e Manelzinho racham um táxi com Shell — que segue no banco do carona rumo ao Samba do Peixe. Na hora de pagar, Zic reclama que Shell nem se dignou a fingir que dividiria a corrida. Pra piorar, o taxista dá um grito: “ei, tá me estranhando?”, tirando a mão do Shell de sua perna enquanto Manelzinho e Saci o ajudam a sair do carro. Ao sair do carro, ainda escutam um resmungo, “velho tarado!”.

Na chegada ao Samba, Marechal olha pro trio — Shell entre Saci e Manelzinho — e sentencia: “esse daí tá no bico do urubu, hein!”. Shell senta-se numa mesa do lado de dentro da Toca do Baiacu, ao lado de Loredano, Marquinho e Kuru, que articula um festival de chouriço no Morro do Conceição. Mas Shell fica pouco tempo sentado, porque em minutos Chico Alves, Pratinha, Gallotti e Toninho começam a cantar “O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc, e de pronto Moutinho e Molica pegam Shell pelo braço e o carregam pro meio do samba. Após a música Shell ia se sentando quando Capuchinho o segura e o leva pra dentro da Folha Seca. Wi Fi grita que ele tava bebendo desde cedo e ainda não tinha ido ao banheiro. “Bêbado desse jeito vai mijar na calça, quem leva ele no banheiro? E tem que ajudar a subir escada que ele já não aguenta mais”. Federico perguntou e sobrou pra ele mesmo, acusado de que sua banana poderia ter dado esse revertério no juiz. Ao descerem, Miguel, que a tudo assistia quieto, emendou: “Tá meio manguaçado ele hein!?”. Talvez o único ainda sóbrio na área, entre a expectativa de vender algum livro no meio da bagunça e limpar o banheiro da livraria que o próprio Shell deixou em más condições de uso, Miguel resolve subir e fazer o trabalho sujo — literalmente.

A noite vai chegando, samba termina com Chico Alves cantando Caninana, Marquinho já expulsa os últimos remanescentes da Toca do Baiacu, a porta da livraria já está entreaberta com os últimos gatos pingados e Zic pergunta: “Vamos pra onde?”. Ainda sem rumo, Shell enrolado no pavilhão da Folha Seca, entre Saci e Manelzinho novamente — os dois disputando quem o levaria pra casa –, ao chegar na Av. Rio Branco viram à direita e quando veem já estão no Largo do São Francisco da Prainha, nos pés da escada da Casa Porto. “Vidal, tem batida de maracujá aí?”, pergunta um bebum. Quem responde é Kuru, que já estava na segunda garrafa de Gengibre, especialidade da casa: “tem mas acabou!”. O restinho que sobrara ficou pro Shell, “ele merece por aguentar vocês todos esses anos”, Marianna gritou de dentro do balcão, disputando lugar com a Néia, sem jeito de expulsar a cliente que estava se achando a cozinheira da casa. “Tomé, tira a Marianna daqui”, Néia suplicava. A confusão já não era pouca, e Norton entra com uma bicicleta a tiracolo e nu na Casa Porto, gritando: “tá tendo bicicletada, todo mundo nu! Vamos mergulhar na Baia de Guanabara”. Vidal, que não sabe ganhar dinheiro — mas adora uma pilhéria — disse que quem mergulhasse não pagava a conta. Caio Barbosa é o primeiro a tirar a roupa, ainda na Casa Porto. A correria foi intensa, dizem que o Shell pulou pela sacada de tanta pressa. Roupas ficando pelo caminho, uma multidão pula na água.

Uns e outros começam a voltar pra terra firme, se abraçam, uns se beijam, a noite cai. De repente umas nuvens surgem e cinco raios se sucedem no céu, um barulho retumbante, sustos, gritos, uma onda gigante surge. “Eita caralho!”, gritou Saci.

Shell decide atirar-se no meio de uma das ondas envolto no pavilhão da Folha Seca. Quem viu disse que a cena foi linda. E há relatos que pronunciou algumas palavras derradeiras antes do mergulho, poderia ser algo sobre sua filha ou sobrinha, ou até mesmo sobre sua aposentadoria nos gramados. Mas foi impossível saber de fato o que falou.

Resultado final do Grupo B

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