Como o sabre de luz de Os Últimos Jedi amplia o tema do filme

Leandro de Barros
Quadro a Quadro
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10 min readJul 25, 2018

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Dois plebeus trapalhões têm a missão de ajudar a rebelião de um guerreiro de comportamento dúbio e de uma princesa forte e decidida, cujo reino foi destruído. Para isso, eles precisam viajar por paisagens misteriosas e evitar a captura do exército inimigo.

No fim do filme, uma batalha emocionante tem lugar entre um general e seu antigo rival.

Estou falando de A Fortaleza Escondida, filme de 1958 dirigido por Akira Kurosawa, mas essa descrição poderia ser usada para introduzir Star Wars: Uma Nova Esperança, o primeiro filme da série criada por George Lucas, lançado nos cinemas quase 20 anos depois.

Que os filmes japoneses de samurai, especialmente aqueles conduzidos por Kurosawa, foram uma influência para a concepção de Star Wars, não é segredo para ninguém.

Desde o visual dos personagens (repare como a armadura do Darth Vader é parecida com as armaduras samurais antigas, por exemplo) até a própria existência dos Jedi (cujo nome vem do termo jidai-geki, utilizado para descrever os filmes de época no Japão) são exemplos dessa influência samurai em Star Wars.

Mas a importância dos antigos filmes de samurai na criação de Star Wars não se resume à referências estéticas ou estruturas narrativas: os longas japoneses emprestam também muito das suas características temáticas à franquia.

Um grande exemplo disso é o uso do sabre de luz de Luke Skywalker em Star Wars — O Último Jedi. Nesse artigo, discutiremos mais profundamente como isso acontece e o que a arma pode nos dizer sobre o longa e seus personagens. Então continue lendo!

Quando um objeto é maior do que si mesmo

Nos filmes, um objeto nem sempre é um objeto. Ou melhor: nem sempre o objeto representa apenas a si mesmo.

Em muitas ocasiões, quando a equipe responsável pela obra faz seu trabalho, um objeto fica carregado de significados que amplificam o valor do filme.

Papo chato? Não precisa ser. Praticamente todos os filmes fazem (ou pelo menos tentam) esse tipo de coisa. Quer um exemplo fácil e gostosinho? Vamos lá.

Em Doutor Estranho, o filme abre com várias referências às mãos de Stephen Strange. Ele é um dos melhores cirurgiões do mundo (se não o melhor) e precisa das suas mãos em perfeito estado para executar sua profissão.

Basicamente, toda a estrutura do personagem, toda a sua noção de “eu” está construída em cima do fato de que ele é o melhor cirurgião do mundo. E, para ser um cirurgião, ele depende das suas mãos.

Stephen = cirurgião; cirurgião = mãos; logo, Stephen = mãos

Isso cria um significado fortíssimo em cima do objeto “mãos” no filme: elas são o personagem. Sem elas, Stephen Strange não é Stephen Strange, ele é outra coisa.

Portanto, quando o personagem sofre um acidente de carro no começo do filme e danifica suas mãos permanentemente, nós sentimos a dor dele e ficamos emocionalmente investidos no seu arco temático (de redefinir sua própria identidade, ideal para uma história de origem).

Legal, né? Mas nesse caso, o significado para mãos funciona apenas com Doutor Estranho. O filme se esforça para criar esse signo e utilizá-lo dentro da sua história. Mais ou menos como no caso das cores de La La Land.

Porém, existem certos objetos que já foram tão utilizados em metáforas e histórias, que sua mera presença já sugere alguns significados. Uma maçã, por exemplo.

Como crescemos numa sociedade com grande influência cristã, uma maçã em um filme pode sugerir pecado, puxando seu significado da história de Adão e Eva.

(Aqui aproveito para abrir parênteses e reforçar que esses objetos PODEM carregar seus significados. Não é algo obrigatório, não significa que toda maçã que você ver em filmes será uma representação do pecado — mas caso o cineasta queira fazer essa representação, ele provavelmente usará a fruta).

O mesmo acontece com a katana, espada típica dos samurais japoneses.

Segundo o livro The Japanese Period Film: A Critical Analysis, os filmes japoneses de época eram feitos como uma forma de criticar a sociedade contemporânea no Japão.

O que era feito: usava-se símbolos “modernos” nas histórias para indicar ao público que o filme era uma crítica à sociedade contemporânea.

Um exemplo: era comum no Período Tokugawa que as mulheres casadas pintassem seus dentes de preto e raspassem as sobrancelhas. Nos longas, isso não acontecia, para aproximar as personagens casadas das mulheres da sociedade japonesa contemporânea.

Com os samurai, acontecia algo parecido: eles se tornaram símbolos que carregavam ideais e conteúdos que serviam para um comentário aos japoneses “modernos”.

E, assim como o Doutor Estranho era definido pelas suas mãos, os samurai são definidos pelas suas espadas (pelo menos cinematograficamente, claro). As katanas, em filmes, são a representação visual dos ideais carregados pelos personagens que as empunham.

Esse é, de certa forma, “o caminho da espada”.

O que tudo isso tem a ver com Os Últimos Jedi?

Como vimos lá no começo, os Jedi são altamente inspirados pelos samurais dos filmes japoneses. Eles também carregam códigos de honra e conceitos filosóficos para os longas da série e são definidos visualmente pelos seus sabres de luz.

Um cara com robe / Um jedi

Em Os Últimos Jedi, o diretor Rian Johnson usa esse peso dos sabres de luz para amplificar o conceito central do filme, a ideia de ultrapassar os dogmas das gerações passadas para criar seu próprio caminho.

“Nós somos aquilo que eles superam, esse é o verdadeiro fardo de todos os mestres”

Para ampliar essa ideia dentro do longa, o diretor cria uma espécie de “arco” para o sabre de luz de Luke. Vamos ver como isso acontece:

Em O Despertar da Força, o sabre de Luke funciona como um símbolo do personagem em tela, mesmo que ele não apareça no longa (excetuando-se os segundinhos no fim).

O sabre é o “Mestre Jedi”, o “lado bom da Força”, todo o conceito tradicional que temos do que é um Jedi, do que é a Força e, especialmente, do que foi Star Wars até aqui.

Por isso, Johnson não perde tempo em Os Últimos Jedi com a primeira aparição do sabre no filme:

Além de escrever na Internet, eu também dou aula de Photoshop. Sou fera, até trabalho fazendo artes pros meus tios!

Quando Luke joga fora seu tradicional sabre de luz (e Rey vai resgatá-lo), Johnson indica o caminho que os dois personagens farão com o tema do filme: de um lado, Luke está fugindo dos Jedi, da Força e de tudo que aquilo representa, enquanto Rey busca esses mesmos elementos para si.

Conforme Rey aprende sobre a Força e os Jedi, ela tenta usar o sabre de luz em um treinamento físico. A forma como a cena é gravada é muito interessante: incialmente, Rey não está muito confiante com o sabre, mas a cada movimento ela vai se empoderado da arma, cada vez mais, cada vez mais (a música acompanha esse ritmo crescente) até que…

Como a gente tinha acabado de ver ela treinar perfeitamente com o seu bastão, podemos comparar o “erro” com o sabre de luz e perceber como Rey não “encaixa” com a arma.

Não é apenas uma questão de falta de habilidade, ela tem uma destreza óbvia em combate. É quase como se o sabre de luz não pertencesse a ela, não tivesse sido incorporado pela personagem.

Depois disso, o sabre de luz volta a aparecer nas memórias de Luke e Kylo Ren, quando mestre e aprendiz se separaram. Aqui, novamente, a arma carrega significados importantes para o arco temático de ambos.

Para Luke, o sabre (que é o símbolo dos Jedi, lembremos) é também o símbolo do seu pior momento, quando ele sucumbe aos seus medos, ao que ele descreve como “arrogância dos Jedi” e faz com que Ben se torne Kylo Ren.

Repare como o olhar dele para o sabre e o enquadramento da cena “grudam” o sentimento de culpa que vem a seguir aos símbolos dos Jedi:

1- Obstinação com tristeza; 2- “Caindo em si”; 3- Corte para um close no sabre de luz, ancorando os significados no objeto
4- Tristeza, arrependimento e culpa; 5- Novo close, com um travelling ancorando tudo no sabre e no Ben Solo

Para o vilão, esse momento foi quando ele se sentiu traído pelo tio, pelo herói, e esse sentimento se apega aos elementos Jedi, empurrando Kylo Ren para o Lado Sombrio da Força.

Já para Luke, o que fica caracterizado é o seu fracasso e o dano causado ao pupilo e todos os afetados pelo acontecido.

Após a luta entre Rey e Luke (onde ela usa o próprio sabre do Mestre Jedi para derrotá-lo), a heroína diz que ainda é possível resgatar Kylo Ren e oferece o sabre para que o próprio Luke faça isso. Ainda em conflito com tudo que aconteceu e com seu fracasso, Luke rejeita a oportunidade e Rey assume essa função para si.

Nesse momento, a trama entre os dois personagens envolvendo o sabre volta a se dividir: de um lado, Rey fica com a simbologia “Jedi” da questão: ela vai tentar salvar Kylo Ren porque ainda está na dinâmica binária Bem x Mal (se ele não for “Sith”, então é Jedi, sem variações no meio do caminho).

Do outro lado, Luke passa a trabalhar com o sabre única e exclusivamente dentro do seu próprio arco temático, de aceitar o fracasso como parte da vida e lidar com as consequências dele. Mas falaremos disso já, já.

Quando Rey parte para a nave de Snoke a princípio tudo corre como no seu plano: Kylo usa o sabre de Luke para matar Snoke e, juntos, os dois enfrentam a Guarda Praetoriana. Ali, ainda é “Bem x Mal”.

Porém, quando a luta termina, Kylo não vem para o Lado Luminoso da Força. Pelo contrário, ele tenta se juntar a Rey para, juntos, dominarem a Galáxia.

É nesse momento que o arco ao redor do sabre de luz chega ao seu clímax: o momento de definir quem são os Jedi.

Depois de usar o sabre de Luke na batalha, Kylo Ren não é a personificação típica do Lado Sombrio da Força: pelo contrário, ele é a parte “arrogante” que o próprio Luke viu em si mesmo, a parte que acredita ser digno de comandar os outros.

Já para Rey, o sabre de luz é a “resposta” para tudo, a parte que acredita que os Jedi realmente podem resolver qualquer problema, salvar qualquer pessoa.

Os dois se anulam e destroem o sabre de luz justamente porque ainda ignoram a resposta para essa disputa, que só vem na luta entre Skywalker e Kylo Ren.

Luke só é capaz de projetar a sua imagem e voltar a ser um Jedi (ou melhor, redefinir o que é ser um Jedi) depois de receber a última lição do seu Mestre Yoda: de que o fracasso, grande professor é.

É nesse momento que Luke aprende a lição final do seu desenvolvimento: não tem Lado Sombrio ou Lado Luminoso, só existe a Força.

É interessante notar como Luke, após ver Rey ir embora, tenta destruir os símbolos Jedi mais próximos (árvore, textos sagrados, etc), achando que, assim, destruiria os Jedi e apagaria os seus próprios erros.

Mas, na hora H, ele não consegue agir. Fica paralisado. Quando o raio de Yoda acerta a árvore, Luke se desespera, ainda tentando se agarrar aos símbolos que carregou por tanto tempo.

Os símbolos que não tinham os erros que ele cometeu.

É apenas ao aceitar os seus dois lados, os seus fracassos e sucessos, e entender que as coisas não estão no horizonte (nem no futuro e nem no passado), mas “aqui, agora”, que Luke é capaz de usar seu sabre de luz e fazer o papel que esperam que ele cumpra, o de Mestre Jedi.

O Mestre Jedi, enfim de volta

A jornada do sabre de luz em Os Últimos Jedi é um belo exemplo sobre como objetos podem carregar significados no Cinema (e como um filme pode se beneficiar disso para amplificar a ressonância temática da sua mensagem).

O sabre começa como o símbolo máximo dos Jedi e, aos poucos, recebe novos significados de cada personagem que o “liga” em combate.

A cada cena, a cada momento, Rey, Luke e Kylo Ren adicionam suas verdades no objeto. Quando essas perspectivas se chocam, inevitavelmente o sabre de luz se quebra e dá espaço para o surgimento de algo novo.

No fim do filme, Rey pergunta como montar uma rebelião após tudo que aconteceu. A câmera foca no sabre quebrado e Leia responde que “Temos tudo que precisamos”, indicando que o capítulo final da trilogia finalmente completará a jornada da heroína em construir seu próprio caminho.

Agora que o sabre de luz se foi, com tudo que ele representava, há espaço para o novo. E podemos ter certeza que, no Episódio IX, um “novo sabre” será forjado e simbolizará a resposta de Rey para o seu conflito com a Força.

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