A(paris)ções #2: Cara de Um, Focinho do Outro

Decifrando o Raio Afrancesador que atinge as ruas de Belô desde os seus primeiros anos de vida

Mariana Prates
QUARANTENADA
9 min readMay 19, 2020

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Céu da Praça da Liberdade (carinhosamente apelidada de Liba) em tempos de primavera. Foto: arquivo pessoal.

Eu tenho uma amiga que se chama Fernanda. A Fê é minha companheira oficial de perrengues em viagens, e por isso, foi uma das primeiras pessoas a ficar sabendo que eu havia sido aprovada no intercâmbio. Uma coincidência do destino, é que meses antes de eu sequer pensar na possibilidade de dar um alô para os parisienses, a Fê me mandou vários áudios às quatro da manhã, dizendo:

— Mari, eu tô num bar aqui na Savassi e só tem gente francesa!

Apesar do horário inoportuno, fiquei feliz em saber que a Fê me via como algum tipo de Embaixadora de Afazeres Franco-Brasileiros, apesar de ser um título um pouco exagerado. Meu maior afazer franco-brasileiro foi criar uma playlist em francês no Spotify, playlist essa que já conta com inacreditáveis seis seguidores (aproveitando a oportunidade para fazer um merchan, ela se chama omelette du fromage, por Mariana Prates).

“Mistérios da Madrugada”, 31 de janeiro de 2019. Foto: arquivo pessoal /Whatsapp

Uma grande questão que eu e Fernanda levantamos no dia seguinte, é por que diabos teria tantos filhos da França acumulados em tão poucos metros quadrados. Eu nem sabia que tinham franceses em Belo Horizonte. Quer dizer, é de se esperar que tenha (somos uma cidade do mundo, afinal), mas nunca pensei que teriam tantos. O suficiente para minha amiga notar, achar o fato interessante e se dar ao trabalho de me manter informada sobre às quatro da matina.

Eu não sei quantos franceses moram em Belo Horizonte, e infelizmente nem o Consulado Honorário do país (que fica lá no bairro Cruzeiro) nem a Delegacia de Imigração da Polícia Federal em Minas Gerais puderam me ajudar com essa informação — a Polícia informou que até possui os dados, mas não é possível filtrá-los do sistema. Por conta da pandemia do novo Coronavírus, o número de funcionários trabalhando está reduzido, e as demandas de agora devem ser adiadas. C’est dommage, mas tudo bem.

Captura de tela do email com a Polícia Federal. Foto: reprodução/Gmail.

Apesar de o nosso lado jornalístico ficar abatido por não ter dados concretos sob os quais se debruçar, nosso lado pessoal sabe que a Fê é uma fonte muitíssimo confiável, e que se ela disse que naquele dia a Savassi estava cheia de franceses, é porque a Savassi estava cheia de franceses. Se ela dissesse que o Emmanuel Macron em pessoa estava naquele bar naquela madrugada, ninguém poderia contestar.

E o mais interessante sobre terem muitos franceses em Belo Horizonte, de acordo com nossa enviada especial, é que nossa cidade me parece mesmo uma espécie de Paris brasileirinha. Lembra do fenômeno do Raio Afrancesador que mencionei nas Primeiras A(paris)ções? Que no Brasil a gente tem a impressão que a França é um lugar muito chique, então nós damos toques franceses às coisas quando queremos dar a elas um ar de refinamento? Pois bem.

Por heranças eurocêntricas, podemos notar que a influência parisiense já atingia as ruas da capital mineira antes mesmo de ela se tornar a nossa BH.

Enquanto a Comissão de Construção da nova Cidade de Minas projetava o que viria a se tornar Belô, ao final do século 19, Paris estava em seu auge. A cidade passava por uma série de reformas urbanas lideradas pelo arquiteto Georges-Eugène Haussmann, o “artista da destruição”. As reformas substituíram as antigas ruelas estreitas, mal-projetadas e labirínticas da Idade Média por grandes boulevards, avenidas largas que conferiam à cidade um ar mais modernizado e imponente (além de estratégico, pois avenidas facilitam a contenção de pessoas em rebeliões, ao contrário de becos de difícil acesso).

Dessa forma, durante os anos 1894 e 1897, o engenheiro paraense Aarão Reis, Chefe da Comissão Construtora, desenhou a planta do que se tornaria a nova capital com certas inspirações nos feitos de Haussmann. Grandes boulevards foram abertos: Avenida Brasil, Afonso Pena, Getúlio Vargas, Bias Fortes… E a Avenida do Contorno, uma larga via circular que demarcaria os limites da cidade.

Vejamos aqui a planta geral de Cidade de Minas, datada de 1895:

Planta da construção de Belo Horizonte (até então chamada de Cidade de Minas), 1895. Autor: Comissão Construtora da nova capital

E agora, a termo de comparação, vejamos também um mapa da capital francesa em 1892, de autoria do monsieur cartógrafo Alexandre Vuillemin:

Mapa de Bolso de Paris de 1892 (Autor: Alexandre Aimé Vuillemin)

Apesar das reformas modernistas, à época da construção de BH, Paris ainda era delimitada por muros — o Enceinte de Thiers, ou Recinto de Thiers. Foi o último muro da cidade, construído em 1844 com o objetivo de proteger a sede do governo de eventuais invasões estrangeiras, e cuja demolição começou 1919. A partir da década de setenta, o contorno das antigas muralhas deram lugar ao Boulevard Périphérique, Avenida Periférica, via circular de proposta parecida à de nossa carismática Avenida do Contorno — que ao contrário da colega europeia, a muito tempo já deixou de demarcar os limites de sua cidade.

Parte externa do Muro de Thiers na década de 1910, com detalhes da muralha e do fosso (Foto: Agence Rol)

Mas não param por aí as inspirações françaises do senhor Reis. Mal eu sabia que meu lugar preferido na cidade, a Praça da Liberdade, teve seu desenho inspirado, imagine… nos jardins do Palácio de Versailles! A única diferença é que, no nosso caso, são os jardins do Palácio da Liberdade.

Vamos apreciar esta fotografia da Praça em seus primórdios, no início do século 20:

Vista da “Liba” na década de 1900 (Foto: Fotos Antigas de Belo Horizonte /Facebook)

A Praça é continuação dos jardins do Palácio da Liberdade, que até 1950 servia como moradia e local de trabalho para o governador de Minas Gerais. Se você reparar, o desenho dela é cheia de curvas e simetrias que lembram os jardins de Louis XIV, com toda a arquitetura e paisagismo clássico que o “quintal” de uma autoridade política deve ter. É o tipo de jardim que foi feito para ser visto e admirado por horas a fio, e não percebido pelo canto do olho em uma caminhada apressada na ida para o trabalho.

Desde a sua inauguração, em 1898, a Praça já passou por uma série de reformas que fizeram de seus jardins um cartão-postal cem por cento belo-horizontino. No entanto, ainda podemos perceber semelhanças com os jardins do Rei Sol:

Vista aérea da Praça da Liberdade à esquerda, Jardins do Palácio de Versailles à direita (Foto: reprodução /Lengmen Jun e Google Maps)

O próprio nome — da Liberdade — já soa como uma referência. Minas Gerais tem uma longa tradição de símbolos relacionados à liberdade (ainda que tardia!), em homenagem à Inconfidência de 1789, por ora chamada de Conjuração Mineira. A revolta contra a Coroa Portuguesa tinha intenções de criar uma república independente na até então Capitania de Minas Gerais, que teria como lema libertas quæ sera tamen, latim para liberdade ainda que tardia. A frase foi retirada da obra Bucólica de Virgílio, considerado um dos maiores poetas clássicos do Império Romano. O movimento foi barrado pela Coroa antes de alcançar seu objetivo principal, e os mineiros continuaram sob domínio europeu até a independência do Brasil em 1822. Mas o libertas sobreviveu, permanecendo firme e forte até os dias atuais.

Nesse sentido, toda Minas Gerais está em comunhão com a República Francesa, cujo lema é liberté, égalité, fraternitéliberdade, igualdade, fraternidade; nascido na Revolução de… 1789! Muitos pensam que Tiradentes e seus companheiros se inspiraram na Revolução Francesa para cunhar a frase que hoje estampa a bandeira do estado, mas apesar de ambas as revoltas terem começado no mesmo ano, os agentes da Inconfidência Mineira foram presos em abril. Já a Tomada da Bastilha, um dos eventos inaugurais da Revolução, apenas em julho.

Não há uma data confirmada para a adoção do libertas quæ sera tamen como lema da Inconfidência. Mas de certo foi antes da prisão dos membros, ou seja, antes de abril de 1797. Por outro lado, o lema francês apareceu pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem, documento lançado pelos revolucionários que definia os direitos do indivíduo e do coletivo, em agosto de 1797. Ou seja: o liberté veio depois do libertas. E você aí achando que o mineiro não há de lançar tendências internacionais.

Brincadeiras à parte, a coincidência tem um nome: Iluminismo. Ambos os movimentos foram influenciados pela corrente filosófica do século 18, que pressupunha a centralidade do uso da razão e do pensamento crítico e defendia ideais como Estado laico, progresso da ciência, direitos individuais — e, claro, a liberdade.

Heranças de uma coincidência iluminista: à esquerda, bandeira de Minas Gerais com o lema dos inconfidentes, “liberdade ainda que tardia”. À direita, selo oficial da República Francesa, com o lema dos revolucionários, “liberdade, igualdade, fraternidade” (Foto: sites oficiais do Estado de Minas Gerais e do Governo francês)

Apesar de que essa liberdade tinha limites, em ambos os movimentos. Na coletânea Grandes Personagens da Nossa História, o historiador Sérgio Buarque de Holanda afirma que os inconfidentes chegam a debater o fim da escravidão, “mas deixam a questão em suspenso, já que alguns não acham o momento oportuno”. Como não havia consenso quanto à libertação dos povos escravizados, a pauta não foi uma das principais no movimento separatista.

Quanto à Revolução Francesa, ela levou à abolição da mão de obra escravizada em suas colônias no ano de 1794 (apesar de que a escravidão foi novamente implementada em 1802, com Napoleão Bonaparte no poder), mas o status continuou o mesmo: de colônias. A independência de países como o Haiti veio mais tarde, por revoltas e lutas dos próprios povos oprimidos.

Até hoje a França possui departamentos e territórios ultramarinos, uma herança dos tempos de dominação forçada. Os atuais territórios estão na África (Reunião e Maiote), na Oceania (Polinésia Francesa, Nova Caledônia, e Wallis e Futuna), na América (São Pedro e Miquelão, São Martinho, São Bartolomeu, Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa), e até na Antártica. Alguns desses territórios foram transformados em departamentos (similar ao nosso conceito de estado) do país, mas a disparidade entre a ex-metrópole e as ex-colônias continua presente. Nossa vizinha Guiana Francesa, por exemplo, faz parte da União Europeia e tem como moeda circulante o euro, mas em comparação com a França metropolitana, possui maior taxa de criminalidade, menor média salarial, menos repasses para investimentos e pior infraestrutura de bens e serviços.

Mapa de departamentos e territórios ultramarinos da França, herança de um passado colonial, que permanecem nos dias atuais. Foto: Wikicommons.

Quanto às referências por Belô, elas não ficaram só lá nos primórdios da cidade. Hoje em dia ainda é possível esbarrar com o Raio Afrancesador por toda a BH: os filmes “cult” do Cinema Belas Artes, o maior divulgador de comédias francesas que já ouvi dizer. Os pratos “à francesa” do restaurante universitário, apesar de eu jamais ter descoberto o que uma comida à francesa quer dizer. E de vez em quando a gente até esbarra em alguns deles pela rua, como ocorreu com a Fernanda naquela sexta-feira qualquer, o que faz a gente se perguntar como é que essas pessoas de tão longe vieram parar por aqui.

O que me leva a uma dúvida curiosa: será que a gente também esbarra por alguma coisinha belo horizontina lá pelos lados de Paris? Algum tipo de Raio Abrasileirador. Seria uma honra — e algo me diz que essa é uma pergunta que ainda temos de averiguar.

Fontes:

História arquitetônica de Belo Horizonte:
-
A Capital (Governo de Minas Gerais). Acesso em 15/04/20.
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A Formação do Espaço Urbano da Cidade de Belo Horizonte: Um Estudo de Caso À Luz de Comparações com as Cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (Daniela Passos). Acesso em 15/04/20.
- Iael Donato, bacharelanda em Arquitetura e Urbanismo da UFMG

Fortificações de Paris:
-
Les fortifications de Paris (“As fortificações de Paris”, Paris Unplugged). Acesso em 14/04/20.
-
Le glacis fortifié de Paris et l’aménagement de l’Île-de-France (“O talude fortificado de Paris e o desenvolvimento da Île-de-France” , L’Institut Paris Région). Acesso em 14/04/20.

Inconfidência Mineira e Revolução Francesa:
- Anna Carolina Viana, mestranda do Departamento de História da UFMG
- Patrícia da Rocha, bacharelanda do Departamento de Filosofia da UFMG
-
Site oficial da República Francesa. Acesso em 19/05/20.
- Grandes Personagens de Nossa História vol. 1, autores diversos (1969).
-
Chronologie : les dates clés de l’Histoire de l’esclavage pratiqué par la France (“Cronologia: datas-chave da História da escravidão praticada pela França”), Elodie Descamps. Jeune Afrique (09/05/2017). Acesso em 09/06/2020.
-
French Guiana: The part of South America facing a total shutdown (“Guiana Francesa: A Parte da América do Sul que enfrenta paralização total”), BBC News (10/04/17). Acesso em 09/06/2020.

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Mariana Prates
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