Metacrônica #2

Ou “parece ironia… querer fazer intercâmbio no século da pandemia”

Mariana Prates
QUARANTENADA
4 min readMay 19, 2020

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Após o Coronavírus, cenas como esta se tornaram comuns. Foto: arquivo pessoal.

Escuta aqui, quando eu mencionei lá na Primeira Metacrônica (ou seja, a crônica sobre a crônica) que a incerteza do Tempo é um dos deuses mais bonitos, eu não esperava que o Tempo fosse me presentear com uma pandemia.

Lembro como se fosse hoje as menções iniciais ao novo Coronavírus, Covid-19, em janeiro de 2020. Uma doença até então misteriosa que causava sintomas comuns a outras gripes, mas que se alastrava rapidamente e podia ser mortal. Os jornais comentavam o surto em Wuhan, na China, cidade onde — imagine — o irmão de um amigo fazia intercâmbio. Foi o primeiro de nós a experienciar a quarentena, ainda em solo chinês.

Ao final de janeiro, um mês após a primeira morte em decorrência da doença na China, mais de trinta mil casos e oitocentas mortes haviam sido confirmadas no país. O surto foi tanto que, no início de fevereiro, o Governo Federal decidiu por meio de uma operação da Força Aérea Brasileira, repatriar nossos compatriotas presos na Ásia — inclusive o irmão desse colega em questão, que fez até ponta nas filmagens do Fantástico.

Quatro meses depois, aqui estamos, o segundo país do mundo em casos de Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo relatório diário da Organização Mundial da Saúde. Neste dia em que lhes escrevo, 03 de junho de 2020*, mais de 31 mil pessoas já faleceram de Coronavírus no Brasil. Para entender a dimensão deste número, fiz algumas pesquisas: 31 mil é o número aproximado de habitantes da cidade de Pompéu, região Central de Minas Gerais, onde meus avós moraram quando eu era criança. É também a quantidade de alunos de graduação da UFMG. Sempre que confiro as estatísticas, faço uso de comparações para tornar as informações mais palpáveis e evitar que as vítimas se tornem apenas números em um relatório.

Painel do Coronavírus do Brasil, em 03/06/2020, três meses após o início de isolamento social em Belo Horizonte. (Fonte: covid.saude.gov.br/)

Apesar da ironia em se escrever um relato sobre as maravilhas do imprevisível semanas antes da primeira (e única, espero) pandemia do século 21, preciso dizer que é um exemplo claro do quanto nós estamos à mercê do destino. Ninguém imaginava que um vírus iria surgir em pleno 2020 e travar o mundo inteiro em menos de três meses. Não é uma surpresa bonita, como eu esperava, mas continua sendo inacreditável.

Até início de março, quando surgi com a ideia para essas crônicas, o cotidiano fazia parte de um mundo completamente diferente. Eu estava alternando o período na faculdade com buscas frenéticas sobre como é a vida e os estudos em Paris. Meus amigos combinavam de se encontrar todo fim de semana, mas por algum motivo, estávamos todos sempre atarefados demais e os encontros nunca saiam. Meu irmão anunciou que iria trancar a graduação em Engenharia Elétrica e passar seis meses em São Paulo, desenvolvendo projetos pessoais em marketing digital. Uma decisão que muitas pessoas acharam perigosa, tendo em vista que ele já deveria ter se formado a uns três anos atrás. Mas ninguém sabia que o mundo estava no começo do fim, de forma que Felipe manteve seu posicionamento teimoso e embarcou para Sampa três dias antes de a Federal soltar o comunicado de suspensão das aulas por tempo indeterminado.

Da mesma forma, a Diretoria de Relações Internacionais da UFMG suspendeu as mobilidades internacionais e o envio de documentos para as universidades estrangeiras até segunda ordem, o que fez as buscas frenéticas perderem o sentido. A Prefeitura de Belo Horizonte decretou quarentena, e meus amigos sempre tão atarefados, não podem se encontrar mesmo não tendo mais tarefas para fazer. E Felipe ficou preso lá em São Paulo, coitado. Mande notícias, Ipe. Não se esqueça de nós.

Bom, isso modifica um bocado os meus processos. A ideia inicial destas crônicas era buscar referências sobre a França em Belo Horizonte, e depois, quem sabe, buscar alguma sobre BH lá na França também. Só que a única viagem possível agora é do quarto para a cozinha, o que torna toda a jornada da apuração bastante limitada. É um pouco frustrante, mas apesar de tudo, não vejo motivos para reclamar. Do jeito que as coisas andam no noticiário, o adiamento de um sonho não é um sofrimento tão insuportável quanto poderia parecer.

Até porque, quando a vida lhe dá limões, você faz caipirinha. Partindo do mesmo pressuposto de que tudo pode se tornar uma crônica, uma (nem tão pequena) mudança como essa não impede minha jornada. A imprevisibilidade do gênero permite isso. Ainda bem! Se isto daqui fosse um noticiário, já poderia aprontar um desespero porque a pauta caiu.

Pois é isto, amigos. Eu nem sei mais se vou para Paris. O que não significa que eu não possa descobrir Paris. Dá para desbravar um mundo inteiro de dentro de casa, e a melhor parte: eu nem vou precisar comer escargot.

Vivendo e se adaptando, é assim que deve ser.

* Data de atualização da crônica, postada originalmente em 19 de maio de 2020.

Fontes:

Estatísticas Covid-19
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Painel da OMS sobre o Novo Coronavírus, Organização Mundial da Saúde (de atualização diária). Acesso em 03/06/2020.
- Painel Coronavírus Brasil, Ministério da Saúde do Governo Federal. Acesso em 03/05/2020.

Operação Regresso à Pátria Amada Brasil
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Página da oficial da Operação, Força Aérea Brasileira. Acesso em 02/06/2020.
- Operação Regresso: missão que fará repatriação de brasileiros já está na China, Agência Brasil (09/02/2020). Acesso em 02/06/2020.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

devaneios de uma escritora em crise de (pouca) idade