A(paris)ções #3: Na Esquina do Paraíso

E pensar que todo esse tempo, eu morava a poucos metros de Paris

Mariana Prates
QUARANTENADA
6 min readMay 22, 2020

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Uma das esquinas da Rua Campos Elíseos, na região Oeste de Belo Horizonte. Foto: arquivo pessoal

Redigir um texto dá muito trabalho. Você termina a última frase, faz uma leitura à procura de algum erro que escapou, alguma frase sem sentido, e não costuma encontrar absolutamente nada. Está perfeito! Semanas depois volta até ele e faz a mesma leitura atenta atrás de correções. Geralmente, a reação é a mesma: “Que horror!”.

Não é que esteja horrível, realmente. Só não está lapidado. Feito uma pedra bruta e enlameada encontrada em uma das muitas jazidas abertas nos pobres morros cortados do meu país Minas Gerais, esperando o momento certo para cair nas mãos de um ourives habilidoso e se transformar em uma pedra preciosa.

(Tenho a impressão de que esse paralelo entre a escrita e o ourives não é meu, que já o ouvi em algum lugar. Fiz uma rápida pesquisa e parece que era uma metáfora dos parnasianos. Nunca fui grande fã do Parnasianismo, com seus poemas de palavras difíceis e métricas perfeitas, então deixo claro que nossas afinidades terminam por aqui, Bilac).

Fazendo jus à incansável jornada de terminar um escrito, ontem eu estava de volta às Primeiras A(paris)ções pela trilhonésima vez. Está bom, mas falta alguma coisa! Só não sei o quê. Em meio ao desespero, meu pai, curioso, questionou o que eu estava fazendo com tanta concentração. Expliquei que estava revisando uma das crônicas do meu novo blog, sobre coincidências francesas em meu cotidiano de ex-pré-intercambista. Como quando nos deparamos com referências francesas no cotidiano de BH, sabe? Ele sabia. “Tipo a Campos Elíseos?”

Oxe! Papai não pôde acreditar que eu havia deixado passar algo tão óbvio. Nem eu acredito, o que me faz sentir como uma mãe que se esquece de buscar os filhos na escola. Totalmente irresponsável.

“Agora cê bota aí que fui eu que lembrei”, disse ele.

Apesar de esquecida, sou uma pessoa de palavra: perdão Campos Elíseos, mas foi meu pai quem lembrou.

A Campos Elíseos é um ponto de referência do comércio no bairro Barroca, região Oeste de Belo Horizonte. Não precisa fazer a checagem dos fatos, que eu lhe asseguro ser uma ótima fonte: passo por ela todos os dias em que preciso ir subir para o Centro da cidade.

O nome da rua sempre me intrigou. Queria saber de onde vinha, mas não o bastante para me dar ao trabalho de buscar uma resposta concreta para a dúvida, até que aos meus quinze anos, meus pais foram visitar a capital parisiense. Marinheiros de primeira viagem, nos ligavam todos os dias para contar as novidades, até que um dia soltaram a informação mais sensacional que haviam descoberto pelas ruas estrangeiras: tem uma Campos Elíseos em Paris!

Atente-se à escolha de palavras: tem uma Campos Elíseos em Paris. Não sou acadêmica da análise do discurso, mas entendo que, falando dessa forma, parece que foi Paris quem copiou Belo Horizonte. Como se alguém viesse passar alguns dias pelo Barroca, se deparasse com a placa azul da Prefeitura de BH exibindo o nome da rua e pensasse: boa ideia.

Uma das esquinas da Avenida Campos Elíseos, mais conhecida como Champs Élysées, em Paris (Foto: Albertus Teolog /Unsplash)

Veja bem, o nome não é exclusivamente francês. Se formos pensar bem, seria mais justo dizer que é grego. Para os antigos helenos, os Campos Elíseos eram o Paraíso, comparável ao Céu cristão — pessoas felizes para sempre, raios de Sol, flores e frutas frescas que crescem na grama verde, rios que correm mel… Somente as almas verdadeiramente boas, puras e merecedoras poderiam repousar em seus campos floridos por toda a eternidade: heróis, sacerdotes, semideuses e… poetas? Poetas! Serei obrigada a dar o braço a torcer, parnasianos.

Enquanto nos Campos originais os visitantes eram dos mais ilustres, os franceses já receberam heróis e vilões. Em seus primórdios, no século 17, a avenida era a extensão de um complexo de jardins que pertenciam à realeza. Em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, ela foi palco de desfiles nazistas durante a Ocupação da França pela Alemanha de Hitler. Sete décadas depois, felizmente, a avenida recepcionou eventos mais felizes: as comemorações da vitória francesa na Copa do Mundo Masculina de Futebol em 2014. Atualmente ela possui um dos metros quadrados mais caros da cidade, o que atrai tanto turistas curiosos quanto investimentos de marcas bilionárias, como Louis Vuitton, Apple e Lacoste.

A Champs Elysées comemoração pelo título da Copa do Mundo de 2014. Foto: Mahkeo /Unsplash

Já a sua xará belo-horizontina é mais intimista. Nela encontra-se tudo que você pode imaginar: padaria, mercadinho, restaurante prato-feito, bar de espetinho, vendedor de móveis, farmácia, loja de moda-praia, apesar de Minas não ter mar… Enquanto em Paris os produtores locais perderam espaço para as multinacionais, aqui o que nós mais temos são empreendimentos da própria comunidade. Até uma escolinha de xadrez!

Isso faz com que nossos visitantes sejam mais pacatos; em sua maioria moradores a caminho da padaria, pedestres com cachorros, trabalhadores do comércio e uma boa quantidade de velhinhos. Importante dizer que o Gutierrez, bairro vizinho da Campos Elíseos, é o oitavo da capital mineira em número de residentes idosos. É um desafio não encontrar algum por aqui.

E mantendo-se fiel às origens helênicas, os Campos de Belô também têm seus heróis: neste caso não semideuses, mas mortais que enfrentam a dura jornada de percorrê-la de cabo a rabo. A rua tem apenas 950 metros de comprimento, míseros treze quarteirões. Parece pouco… Mas não se engane. Ilustrando o martírio, cito um dia no qual uma colega de faculdade me ofereceu uma carona. Minha prima Gabi estava comigo, e perguntei à caroneira se poderíamos voltar as duas. A motorista concordou e disse que passaria na Campos Elíseos. Pode ser? Falei que sim, tranquilo. Bom que fazemos uma pequena caminhada, não é mesmo?

Determinado momento da carona, o carro para. Chegamos! Olho em volta e percebo que não estamos na Campos Elíseos. Falo isso em voz alta, ao que a caroneira responde: “é que eu passo na rua, mas ao pé da rua, entende?”. Um mal entendido que teria passado batido, não fosse o fato de terem construído a bendita em um morro interminável com direito a placas proibindo a passagem de caminhões.

Aquele trecho foi menos uma caminhada mais um trekking montanhês. Nos fez subir oitenta metros de elevação (o que equivale a um prédio de vinte e seis andares) na sensação térmica de uma estufa em um dezembro de verão, e como desgraça pouca é bobagem, com mochilas lotadas de um dia inteiro na universidade. Nunca mais quis ouvir falar da tal caroneira.

Onde eu e Gabi nos tornamos atletas. Foto: arquivo pessoal.

Nos meses seguintes à volta de meus pais, lá em 2013, a Campos Elíseos virou nossa Champs Élysées. Sempre que passávamos por ela (ou seja, todos os dias), alguém precisava dizer: olha só, estamos em Paris!

Não tenho visitado nossa Pequena Paris a um bom tempo, por questão da quarentena. Faria qualquer coisa para dar uma passada por seus quarteirões nesse momento, depois de três meses dentro de casa. Cumprimentar as atendentes de caixa do mercadinho. Correr atrás do ônibus para o Centro, que sempre chega antes do horário previsto no aplicativo da prefeitura… Até mesmo repetir trekking montanhês, já que agora estamos no inverno. Parece que o isolamento social nos deixa saudosistas.

Flagra do pôr-do-Sol no ponto mais alto da Campos Elíseos, em um dos poucos momentos que precisamos sair em meio à quarentena. Foto: arquivo pessoal.

Fontes:

Campos Elíseos (brasileira):
- Bairros da Região Oeste, João Batista Souza. Acesso em 19/05/20.
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Google Maps. Acesso em 21/05/20.

Campos Elíseos (francesa):
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Les Champs-Élysées, histoire d’une avenue pas comme les autres (“Champs Élysées, história de uma avenida diferente das outras”, Un Jour de Plus à Paris). Acesso em 21/05/20.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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