A(paris)ções: A Cara da Riqueza
Primeiras coincidências francesas pelas ruas de Belô
Desde que fui selecionada para passar uns diazinhos em Paris, comecei a ficar atenta nas referências francófonas que temos perdidas por Belo Horizonte. Não que eu saia por aí procurando (não sempre), mas às vezes elas pipocam na nossa frente, e nós que já estávamos atentos começamos a perceber certos tipos de padrão.
Duas semanas atrás, caminhando pelas ruas para algo tão simples quanto comprar pão, eu me deparei com uma papelaria de nome inusitado: Du Papier. Significa, literalmente, Do Papel. Isso me fez refletir sobre uma característica muito importante da personalidade brasileira, a que nós, brasileiros, temos no nosso imaginário a França como um lugar muito requintado e atraente, o que nos faz querer a todo momento dar um toque francês a coisas que não necessariamente tem a ver com aquele país.
Decidi chamar este curioso fenômeno de Raio Afrancesador.
Aqui em BH a gente faz muito uso desse fenômeno. No bairro ao lado nós temos outro estabelecimento cujo nome a gente pena para pronunciar direito, o Flamboyant. Flamboyant (“flambuaiã”) pode ter vários significados, mas literalmente se traduz para flamejante. A primeira vez em que minha mãe citou esse nome em uma conversa, eu imaginei que seria qualquer tipo de estabelecimento, menos o que realmente é — um açougue. Não consigo imaginar alguém nomeando um açougue de Flamejante, mas após o Raio Afrancesador fazer o seu trabalho, Flamboyant se torna um nome muito mais interessante.
Outra referência vem da época em que eu fazia estágio em redação publicitária. Um belo dia a Agência recebeu clientes solicitando um nome para seu negócio, uma loja de perfumes importados. Levando em conta o aspecto elegante do produto comercializado, os redatores buscaram trazer um nome de finesse, que representasse a elegância do empreendimento. Propuseram, então, a palavra francesa Hermité (“ermitê”), que fez o maior sucesso. O mais interessante é que ela não existe de verdade! Ao menos nunca a encontrei em dicionário nenhum. Apesar disso, a sonoridade francófona (mesmo que inventada) dá um toque super diferenciado, e a Hermité tem tido ótimas vendas desde então, pelo que chega até mim.
Mas que fique bem claro que eu não estou criticando, não. Assim como todas as outras pessoas, sou fielmente adepta da crença de que certos termos estrangeiros têm o poder de dar um toque requintado. Feito uma palavra francesa que eu adoro, hebdomadaire. Tudo sobre ela é incrível: o jeito de escrever, como se pronuncia (“êbdômadér”), a junção estranhíssima das consoantes B e D no meio da palavra. Me soa super refinada. Se eu fundasse uma loja de artigos de luxo, com certeza iria querer nomeá-la de hebdomadaire, apesar do significado real da palavra, que é hebdomadário: sinônimo de semanal.
Uma curiosidade é que minha palavra preferida foi, inclusive, a inspiração para o nome do Charlie Hebdo, revista satírica francesa que ficou conhecida no Brasil em 2015, após ser vítima de um atentado terrorista. “Hebdo” é a diminuição de hebdomadaire, portanto, a tradução literal do título da publicação seria Charlie Semanal. Não resta dúvidas sobre sua a periodicidade nas bancas parisienses — chamadas por lá de maison de la presse.
Apesar de semanal não ser uma palavra muito atraente no que diz respeito a nomear coisas (a não ser, talvez, publicações), continuo achando sua colega francesa extremamente requintada.
A questão é que o significado real das palavras não importa. O Raio Afrancesador não faz uso do sentido original das palavras, e sim do sentido que a gente dá para elas aqui no Brasil. Se os filmes noir e as histórias dos reis antigos que se banhavam em luxo criaram em mim um imaginário de que tudo que vem da França é elegante, eu posso conhecer um milhão de franceses para me dizer não, que ao fim do dia, continuarei querendo chamar meu empreendimento de luxo de Hebdomadaire. E não é minha culpa, sabe. É culpa de todos as histórias ambientadas numa Paris chic e classicista que chegam até nós, histórias que mostram o quão linda e desprovida de defeitos é a vida dessas pessoas que vivem tomando cabernet sauvignon e comendo croissants aos pés da torre Eiffel, ao som de um típico accordéon francês. Mesmo que para os próprios franceses, esse imaginário não faça absolutamente nenhum tipo de sentido.
Porque ser francês pra eles é comum, mas pra nós, é chiquérrimo. Apesar de que, no fim das contas, eles sejam apenas pessoas normais. Gente como a gente, por incrível que pareça!
Mas acontece que alguns hábitos são difíceis de largar.
Fontes:
Charlie Hebdo
Site oficial da publicação. Acesso em 18/05/2020.
Un million d’exemplaires prévus mercredi prochain (“Um milhão de exemplares estimados para a próxima segunda”), Ouest France, 08/01/2015. Acesso em 18/05/2020.