A(paris)ções #2: Cara de Um, Focinho do Outro
Decifrando o Raio Afrancesador que atinge as ruas de Belô desde os seus primeiros anos de vida
Eu tenho uma amiga que se chama Fernanda. A Fê é minha companheira oficial de perrengues em viagens, e por isso, foi uma das primeiras pessoas a ficar sabendo que eu havia sido aprovada no intercâmbio. Uma coincidência do destino, é que meses antes de eu sequer pensar na possibilidade de dar um alô para os parisienses, a Fê me mandou vários áudios às quatro da manhã, dizendo:
— Mari, eu tô num bar aqui na Savassi e só tem gente francesa!
Apesar do horário inoportuno, fiquei feliz em saber que a Fê me via como algum tipo de Embaixadora de Afazeres Franco-Brasileiros, apesar de ser um título um pouco exagerado. Meu maior afazer franco-brasileiro foi criar uma playlist em francês no Spotify, playlist essa que já conta com inacreditáveis seis seguidores (aproveitando a oportunidade para fazer um merchan, ela se chama omelette du fromage, por Mariana Prates).
Uma grande questão que eu e Fernanda levantamos no dia seguinte, é por que diabos teria tantos filhos da França acumulados em tão poucos metros quadrados. Eu nem sabia que tinham franceses em Belo Horizonte. Quer dizer, é de se esperar que tenha (somos uma cidade do mundo, afinal), mas nunca pensei que teriam tantos. O suficiente para minha amiga notar, achar o fato interessante e se dar ao trabalho de me manter informada sobre às quatro da matina.
Eu não sei quantos franceses moram em Belo Horizonte, e infelizmente nem o Consulado Honorário do país (que fica lá no bairro Cruzeiro) nem a Delegacia de Imigração da Polícia Federal em Minas Gerais puderam me ajudar com essa informação — a Polícia informou que até possui os dados, mas não é possível filtrá-los do sistema. Por conta da pandemia do novo Coronavírus, o número de funcionários trabalhando está reduzido, e as demandas de agora devem ser adiadas. C’est dommage, mas tudo bem.
Apesar de o nosso lado jornalístico ficar abatido por não ter dados concretos sob os quais se debruçar, nosso lado pessoal sabe que a Fê é uma fonte muitíssimo confiável, e que se ela disse que naquele dia a Savassi estava cheia de franceses, é porque a Savassi estava cheia de franceses. Se ela dissesse que o Emmanuel Macron em pessoa estava naquele bar naquela madrugada, ninguém poderia contestar.
E o mais interessante sobre terem muitos franceses em Belo Horizonte, de acordo com nossa enviada especial, é que nossa cidade me parece mesmo uma espécie de Paris brasileirinha. Lembra do fenômeno do Raio Afrancesador que mencionei nas Primeiras A(paris)ções? Que no Brasil a gente tem a impressão que a França é um lugar muito chique, então nós damos toques franceses às coisas quando queremos dar a elas um ar de refinamento? Pois bem.
Por heranças eurocêntricas, podemos notar que a influência parisiense já atingia as ruas da capital mineira antes mesmo de ela se tornar a nossa BH.
Enquanto a Comissão de Construção da nova Cidade de Minas projetava o que viria a se tornar Belô, ao final do século 19, Paris estava em seu auge. A cidade passava por uma série de reformas urbanas lideradas pelo arquiteto Georges-Eugène Haussmann, o “artista da destruição”. As reformas substituíram as antigas ruelas estreitas, mal-projetadas e labirínticas da Idade Média por grandes boulevards, avenidas largas que conferiam à cidade um ar mais modernizado e imponente (além de estratégico, pois avenidas facilitam a contenção de pessoas em rebeliões, ao contrário de becos de difícil acesso).
Dessa forma, durante os anos 1894 e 1897, o engenheiro paraense Aarão Reis, Chefe da Comissão Construtora, desenhou a planta do que se tornaria a nova capital com certas inspirações nos feitos de Haussmann. Grandes boulevards foram abertos: Avenida Brasil, Afonso Pena, Getúlio Vargas, Bias Fortes… E a Avenida do Contorno, uma larga via circular que demarcaria os limites da cidade.
Vejamos aqui a planta geral de Cidade de Minas, datada de 1895:
E agora, a termo de comparação, vejamos também um mapa da capital francesa em 1892, de autoria do monsieur cartógrafo Alexandre Vuillemin:
Apesar das reformas modernistas, à época da construção de BH, Paris ainda era delimitada por muros — o Enceinte de Thiers, ou Recinto de Thiers. Foi o último muro da cidade, construído em 1844 com o objetivo de proteger a sede do governo de eventuais invasões estrangeiras, e cuja demolição começou 1919. A partir da década de setenta, o contorno das antigas muralhas deram lugar ao Boulevard Périphérique, Avenida Periférica, via circular de proposta parecida à de nossa carismática Avenida do Contorno — que ao contrário da colega europeia, a muito tempo já deixou de demarcar os limites de sua cidade.
Mas não param por aí as inspirações françaises do senhor Reis. Mal eu sabia que meu lugar preferido na cidade, a Praça da Liberdade, teve seu desenho inspirado, imagine… nos jardins do Palácio de Versailles! A única diferença é que, no nosso caso, são os jardins do Palácio da Liberdade.
Vamos apreciar esta fotografia da Praça em seus primórdios, no início do século 20:
A Praça é continuação dos jardins do Palácio da Liberdade, que até 1950 servia como moradia e local de trabalho para o governador de Minas Gerais. Se você reparar, o desenho dela é cheia de curvas e simetrias que lembram os jardins de Louis XIV, com toda a arquitetura e paisagismo clássico que o “quintal” de uma autoridade política deve ter. É o tipo de jardim que foi feito para ser visto e admirado por horas a fio, e não percebido pelo canto do olho em uma caminhada apressada na ida para o trabalho.
Desde a sua inauguração, em 1898, a Praça já passou por uma série de reformas que fizeram de seus jardins um cartão-postal cem por cento belo-horizontino. No entanto, ainda podemos perceber semelhanças com os jardins do Rei Sol:
O próprio nome — da Liberdade — já soa como uma referência. Minas Gerais tem uma longa tradição de símbolos relacionados à liberdade (ainda que tardia!), em homenagem à Inconfidência de 1789, por ora chamada de Conjuração Mineira. A revolta contra a Coroa Portuguesa tinha intenções de criar uma república independente na até então Capitania de Minas Gerais, que teria como lema libertas quæ sera tamen, latim para liberdade ainda que tardia. A frase foi retirada da obra Bucólica de Virgílio, considerado um dos maiores poetas clássicos do Império Romano. O movimento foi barrado pela Coroa antes de alcançar seu objetivo principal, e os mineiros continuaram sob domínio europeu até a independência do Brasil em 1822. Mas o libertas sobreviveu, permanecendo firme e forte até os dias atuais.
Nesse sentido, toda Minas Gerais está em comunhão com a República Francesa, cujo lema é liberté, égalité, fraternité — liberdade, igualdade, fraternidade; nascido na Revolução de… 1789! Muitos pensam que Tiradentes e seus companheiros se inspiraram na Revolução Francesa para cunhar a frase que hoje estampa a bandeira do estado, mas apesar de ambas as revoltas terem começado no mesmo ano, os agentes da Inconfidência Mineira foram presos em abril. Já a Tomada da Bastilha, um dos eventos inaugurais da Revolução, apenas em julho.
Não há uma data confirmada para a adoção do libertas quæ sera tamen como lema da Inconfidência. Mas de certo foi antes da prisão dos membros, ou seja, antes de abril de 1797. Por outro lado, o lema francês apareceu pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem, documento lançado pelos revolucionários que definia os direitos do indivíduo e do coletivo, em agosto de 1797. Ou seja: o liberté veio depois do libertas. E você aí achando que o mineiro não há de lançar tendências internacionais.
Brincadeiras à parte, a coincidência tem um nome: Iluminismo. Ambos os movimentos foram influenciados pela corrente filosófica do século 18, que pressupunha a centralidade do uso da razão e do pensamento crítico e defendia ideais como Estado laico, progresso da ciência, direitos individuais — e, claro, a liberdade.
Apesar de que essa liberdade tinha limites, em ambos os movimentos. Na coletânea Grandes Personagens da Nossa História, o historiador Sérgio Buarque de Holanda afirma que os inconfidentes chegam a debater o fim da escravidão, “mas deixam a questão em suspenso, já que alguns não acham o momento oportuno”. Como não havia consenso quanto à libertação dos povos escravizados, a pauta não foi uma das principais no movimento separatista.
Quanto à Revolução Francesa, ela levou à abolição da mão de obra escravizada em suas colônias no ano de 1794 (apesar de que a escravidão foi novamente implementada em 1802, com Napoleão Bonaparte no poder), mas o status continuou o mesmo: de colônias. A independência de países como o Haiti veio mais tarde, por revoltas e lutas dos próprios povos oprimidos.
Até hoje a França possui departamentos e territórios ultramarinos, uma herança dos tempos de dominação forçada. Os atuais territórios estão na África (Reunião e Maiote), na Oceania (Polinésia Francesa, Nova Caledônia, e Wallis e Futuna), na América (São Pedro e Miquelão, São Martinho, São Bartolomeu, Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa), e até na Antártica. Alguns desses territórios foram transformados em departamentos (similar ao nosso conceito de estado) do país, mas a disparidade entre a ex-metrópole e as ex-colônias continua presente. Nossa vizinha Guiana Francesa, por exemplo, faz parte da União Europeia e tem como moeda circulante o euro, mas em comparação com a França metropolitana, possui maior taxa de criminalidade, menor média salarial, menos repasses para investimentos e pior infraestrutura de bens e serviços.
Quanto às referências por Belô, elas não ficaram só lá nos primórdios da cidade. Hoje em dia ainda é possível esbarrar com o Raio Afrancesador por toda a BH: os filmes “cult” do Cinema Belas Artes, o maior divulgador de comédias francesas que já ouvi dizer. Os pratos “à francesa” do restaurante universitário, apesar de eu jamais ter descoberto o que uma comida à francesa quer dizer. E de vez em quando a gente até esbarra em alguns deles pela rua, como ocorreu com a Fernanda naquela sexta-feira qualquer, o que faz a gente se perguntar como é que essas pessoas de tão longe vieram parar por aqui.
O que me leva a uma dúvida curiosa: será que a gente também esbarra por alguma coisinha belo horizontina lá pelos lados de Paris? Algum tipo de Raio Abrasileirador. Seria uma honra — e algo me diz que essa é uma pergunta que ainda temos de averiguar.
Fontes:
História arquitetônica de Belo Horizonte:
- A Capital (Governo de Minas Gerais). Acesso em 15/04/20.
- A Formação do Espaço Urbano da Cidade de Belo Horizonte: Um Estudo de Caso À Luz de Comparações com as Cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (Daniela Passos). Acesso em 15/04/20.
- Iael Donato, bacharelanda em Arquitetura e Urbanismo da UFMGFortificações de Paris:
- Les fortifications de Paris (“As fortificações de Paris”, Paris Unplugged). Acesso em 14/04/20.
- Le glacis fortifié de Paris et l’aménagement de l’Île-de-France (“O talude fortificado de Paris e o desenvolvimento da Île-de-France” , L’Institut Paris Région). Acesso em 14/04/20.Inconfidência Mineira e Revolução Francesa:
- Anna Carolina Viana, mestranda do Departamento de História da UFMG
- Patrícia da Rocha, bacharelanda do Departamento de Filosofia da UFMG
- Site oficial da República Francesa. Acesso em 19/05/20.
- Grandes Personagens de Nossa História vol. 1, autores diversos (1969).
- Chronologie : les dates clés de l’Histoire de l’esclavage pratiqué par la France (“Cronologia: datas-chave da História da escravidão praticada pela França”), Elodie Descamps. Jeune Afrique (09/05/2017). Acesso em 09/06/2020.
- French Guiana: The part of South America facing a total shutdown (“Guiana Francesa: A Parte da América do Sul que enfrenta paralização total”), BBC News (10/04/17). Acesso em 09/06/2020.