As Provações do Home-Office

Quando o simples fato de ficar em casa não é tão fácil quanto parece

Mariana Prates
QUARANTENADA
5 min readMay 30, 2020

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Foto: Arquivo pessoal

Frente às dificuldades de manter a rotina durante a quarentena, estipulei um horário comercial aos dias da semana, das duas às seis da tarde. Coloquei até um aviso na porta do quarto, para evitar possíveis interrupções:

ESTOU ESTUDANDO. FAVOR BATER.

Em teoria nós, que estamos munidos com a consciência e o privilégio de estar em quarentena nesta época caótica, temos todo o tempo do mundo enquanto trancados em nossas residências. Mas após dois meses e meio de isolamento, descobri o quão difícil é este tal de home-office. Me faz lembrar do meu primeiro período na faculdade, quando um professor passou um trabalho extraclasse e um colega desabafou com indignação: “casa não é lugar de estudar, casa é lugar de morar!”.

Pois bem, concordo, casa é lugar de morar. Só que ultimamente ela também tem se tornado local de estudar, de trabalhar, de ter aula, de fazer academia, de encontrar com os parentes, de comemorar o aniversário dos amigos, de ver as novas estreias do cinema, de visitar cidades, de sair de intercâmbio, de fazer tudo aquilo que faríamos fora dela, porém virtualmente. A gente chega a ficar biruta.

O problema é que, por ser um local cuja função inicial é de morar, a casa nos traz muitas distrações. Sabendo disso, em tempos normais, prefiro ficar na faculdade o tempo que for quando preciso terminar alguma tarefa importante, pois sei que lá não terei outra saída senão fazê-la direito. É preciso muito autocontrole para não desistir das suas obrigações e, digamos, terminar de ver aquela série incrível da Netflix quando a possibilidade está a poucos metros de você. Como a galera do home-office consegue?

Com ou sem quarentena, tenho um sério problema em procrastinar todas as coisas e não terminar nenhum projeto pessoal, como um livro de ficção que venho escrevendo desde 2013 — e que ainda não saiu do prólogo. Para resolver este problema, além de estipular um horário comercial, comecei a fazer um curso online sobre Produtividade Concentrada, por indicação de meu irmão. Ou seja, hora de mudanças!

Colei o bendito aviso de que ESTOU ESTUDANDO, abri o curso em um módulo sobre trabalho focado e mandei bala no play.

Nos primeiros minutos de vídeo, começo a ouvir Lynyrd Skynyrd tocando de algum lugar, talvez venha de outro quarto, talvez venha do vizinho de baixo. Ou dos vizinhos do lado… Não quero saber! Agora sou uma pessoa focada. Apesar disso, percebo que estou batucando os dedinhos inconscientemente ao ritmo e me auto repreendo com uma careta. Aumento o volume da aula até que ele esconda qualquer resquício da música dos outros, e segue o baile.

Estamos indo muito bem, aprendendo sobre como ignorar as distrações do ambiente, quando o anúncio de uma mensagem recebida no celular é capaz de se sobressair à minha concentração. Penso em deixar para conferi-la depois, mas vejo com o canto do olho que é do grupo do Minas Mundi, programa da UFMG na qual eu fui alocada para Paris. Diz respeito ao ex-pré-intercâmbio, então me permito dar uma pausa.

Uma menina pergunta se alguém teve notícias do processo. Eu não tive nenhuma, afinal até onde eu saiba tudo está suspenso por conta da pandemia, mas como tenho esperanças de que mais alguém tenha, aguardo o “digitando…” que aparece no topo da conversa. Uma segunda menina nos informa que a sua universidade estrangeira, na Alemanha, lhe deu a oportunidade de adiar sua vaga para o início de 2021, caso as coisas já estejam melhores até lá. Interessante.

Sou agora uma pessoa focada em meus objetivos, porém aproveito a lembrança para conferir meu email, na esperança de que a Sorbonne tenha enviado alguma novidade. Nada. Preciso de alguns segundos de aflição para lidar com o silêncio ensurdecedor dos franceses, que se prontificaram a me mandar notícias a partir do dia 15 de maio, dia esse que se deu exatamente duas semanas atrás. Mas tudo bem, ninguém aqui está contando.

Aproveito para checar as notificações de outro grupo, no qual meus amigos combinam de assistir a um seriado online daqui algumas horas. É tempo suficiente para que termine meu Horário Comercial, então peço para me considerarem dentro. Quando estou desabilitando o Wi-Fi para evitar novas interrupções, o nome de Mamãe aparece no topo da tela: NÃO ESQUECE DE DAR COMIDA PRA LUÍS.

Confirmo que sim senhora, estou lembrada e vou fazê-lo (em breve). Desligo a internet e volto para meu curso milagroso. Repito comigo mesma, como um mantra religioso: agora sou uma pessoa focada.

Estamos aprendendo a diferença entre trabalho raso e trabalho profundo, e anoto tudo em um bloco de notas para a posteridade. O primeiro diz respeito a tarefas pequenas e repetitivas, facilmente deixadas de lado por um número N de interrupções. Já o segundo são atividades profissionais que requerem o máximo de suas capacidades cognitivas, em que você entra em um estado de concentração tão grande que consegue manter a atenção fixa por horas a fio. Também anoto que hoje em dia, com o advento das tecnologias e do mundo conectado, nós temos muito mais distrações do que antigamente, o que dificulta todo o processo de–

O celular vibra novamente. Oxente, mas não tirei a internet? Desta vez é uma ligação.

— DEU COMIDA PRA LUÍS?

Depois de um pequeno sermão de minha mãe sobre como vou DEIXAR ELE MORRER DE FOME, paro o que estou fazendo e vou lá dar comida para Luís, o passarinho. Todos os nossos pássaros têm nome de gente, por motivos que ninguém sabe explicar. Já tivemos João Paulo, João Paulo II, Marcelo, Maxwell, Eduarda e agora Luís, que diga-se de passagem, não parece estar morrendo de fome. Do contrário, está bastante saudável, obrigada.

Voltando ao trabalho, escuto a voz do meu pai me chamando para ajudá-lo com a escrita de alguns emails que precisa enviar. Dou meia volta. Escrevemos os correios e o auxilio com outras tarefas que precisava fazer, cujas instruções vieram da firma em inglês. Terminamos. Por nada, pai, mais tarde nós nos falamos, vou ali terminar meu curso…

… Não antes de conferir a geladeira, afinal, essa tal produtividade cansa mais do que eu imaginava. Sabia que o cérebro, apesar de representar só 2% de nosso peso corporal, consome 20% de nossas calorias diárias, apenas para funcionar?

Tá legal, talvez tenha me distraído em meio ao processo. Porém, entusiasmada com minha nova personalidade focada, logo estou de volta ao meu escritório improvisado, pronta para colocar os novos ensinamentos em prática! Releio as anotações da aula enquanto abro novamente o laptop, que a essa altura já está em oito por cento de bateria. Mas sem desespero, é só colocar para carregar. Meio minutinho. Tudo certo.

Logo que retorno ao curto, meu alarme avisa que as “algumas” horas até o seriado combinado haviam chegado. Meu Deus! Mas já? Confiro o quanto assisti da aula: dez minutos.

Complicado.

Penso em cancelar o seriado com os amigos… Mas já fiz isso na semana passada. Dadas as opções, deixo o curso para amanhã. Afinal, ultimamente temos tido todo o tempo do mundo, não é mesmo? Mesmo que, na prática, esse tempo seja bem mais corrido do que a monotonia de uma vida cativa nos faz parecer.

Fontes:

Appraising the brain’s energy budget (“Avaliando o consumo de energia do cérebro”, Marcus E. Raichle e Debra A. Gusnard; National Center for Biotechnology Information)

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Mariana Prates
QUARANTENADA

devaneios de uma escritora em crise de (pouca) idade