A Capital do Se-Vira-Nos-30

Intercâmbio histórico-virtual por empregos inusitados que já foram recorrentes nas periferias de Paris

Mariana Prates
QUARANTENADA
10 min readJun 5, 2020

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Um Caça-Ratos expondo sua mais nova presa. Foto: Je Change de Métier

Em 1974, o escritor francês Georges Perec decidiu fazer uma experiência sociológica: sentar-se em cafés de uma mesma praça em Paris durante três dias e observar o movimento do lugar. Da experiência nasceu o livro Tentativas de Esgotar um Local Parisiense, que aborda a atmosfera da cidade sob o olhar das percepções do autor naqueles três dias de observação.

Inspirada nos feitos de Perec, decidi recriar minha versão da experiência, chamada Tentativas de Esgotar uma Paris Virtualmente. A ideia é conhecê-la ao máximo de dentro de casa, seja por meio de sua história, seus costumes ou seus últimos acontecimentos, graças às maravilhas das novas tecnologias e da globalização. Julgo válido começar por uma pequena viagem histórica, pois me parece que a cidade que um dia ela já foi, diz muito sobre a cidade que hoje ela é.

E como dizem os franceses: c’est parti.

Sábado passado, me deparei com um artigo chamado ‘Pequenos empregos’ se-vira-nos-trinta na Paris do passado (tradução livre), sobre formas de trabalho no mínimo inusitadas que eram comuns para um parisiense do século 19: de anjo da guarda a profanador de tumbas.

O “se-vira-nos-trinta” tenta transmitir o sentido da expressão de la débrouille, que vem do verbo se débrouiller, cujo significado é “conseguir sair de uma situação difícil com habilidade”. Me lembrou o jeitinho brasileiro. Quem diria que também existe um tal jeitinho francês? Por essa eu não esperava.

Muitos destes empregos inusitados eram o que no Brasil nós chamamos de “bicos”, exercidos por quem não tinha opções melhores ou mais rentáveis para se sustentar. Eles surgiram em sua maioria pela alta do desemprego consequente à Revolução Industrial francesa, financiada pela exploração das antigas colônias entre 1810 e 1870. Neste período, máquinas foram introduzidas nas fábricas para substituir a mão de obra humana com maior velocidade e eficiência. Visando aumentar os lucros e diminuir as despesas com salários, os patrões não pensaram duas vezes antes de mandar um bocado de gente para a rua.

Para piorar, a industrialização também atingiu o setor agrícola, causando uma onda de êxodo rural. Muitos camponeses arrumaram suas malas e embarcaram para Paris, que como toda capital, parecia estar cheia de oportunidades para aqueles que buscavam uma vida melhor. Resultado: a cidade foi de 1 milhão de habitantes, em 1850, para 2 milhões e 500 mil em 1890. Um salto de 150% em quarenta anos!

Assim como nós vimos (e vemos até hoje) nas metrópoles brasileiras, os investimentos na infraestrutura urbana nem sempre acompanham o aumento populacional. Usando minha Belo Horizonte de exemplo, ela passou pelo mesmo processo de desenvolvimento industrial em meados do século 20, o que fez a população crescer em 100% entre 1950 e 1960 (de 350 a 700 mil habitantes). Sem o devido preparo para acolher os novos moradores, a BH dos anos 50 foi marcada por um crescimento “precário que traz as marcas do improviso, do inacabado e da carência absoluta”, como ressaltado no Plano da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL) de 1986.

Lá na França não foi diferente. Com o rápido crescimento demográfico, mais de 70 mil pessoas viviam em situações de fome e/ou sem moradia fixa ao final do século 19. Em meio às dificuldades em se conseguir um emprego, essas pessoas foram obrigadas a se débrouiller, ou seja, “se virar” para conseguir o pão de cada dia: algumas de formas bem-intencionadas, outras, nem tanto.

Abrindo este tour histórico de meu intercâmbio virtual, vejamos agora algumas das ocupações mais incomuns que já passaram pela capital francesa.

Despertador

Sempre me perguntei como as pessoas acordavam cedo antes do advento dos smartphones. Pois eis alguém para responder às minhas dúvidas de geração Z: o Despertador.

Surgiram em Paris (e em outras capitais europeias em processo de industrialização, como Londres) profissionais especialistas em te fazer cair da cama. Os chamados Despertadores anotavam o nome e endereço de seus clientes, normalmente médicos, comerciantes e operários; e saiam cedo fazendo sua rota anti-soneca pela cidade.

Eles paravam na porta dos contratantes e “aprontavam um desespero”: fosse gritando, assobiando, jogando pedrinhas ou batendo com varas de bambu na janela. Não diminuíam o estardalhaço até que a pessoa deixasse claro que estava acordada. E o melhor, não bastava gritar de volta — era preciso aparecer na janela para provar!

O trabalho não pagava muito bem (apenas alguns trocados, apesar de não existir uma conversão exata para as moedas atuais), e por isso era exercido por aqueles que não conseguiam empregos melhores, como mulheres e homens idosos. E apesar de parecer muito distante de nossa realidade, os Despertadores só sumiram em 1970, quando os rádios-alarmes caíram no gosto do povo e facilitaram a árdua tarefa de não dormir mais cinco minutos.

Nessa história toda, me restou uma dúvida: quem acordava o Despertador?

Não encontrei fotos dos Despertadores de Paris, infelizmente, mas este de Londres ilustra bem a profissão (1929). Foto: J. Gaiger/Topical Press Agency/Getty Images.

Anjo da Guarda

Antes dos carros por aplicativo, era comum que em toda saída fosse designado um motorista da rodada: aquele amigo ou amiga que manteria a sobriedade pelo bem do grupo, cuidando para que os outros chegassem bem em casa depois de beber.

Essa era mais ou menos a função do Anjo da Guarda, que era contratado por bares e restaurantes parisienses para levar os bêbados embora. Eles acompanhavam os clientes para não deixar que eles tropeçassem para um mergulho noturno no rio Sena, sofressem assaltos ou terminassem se envolvendo em brigas de rua pela madrugada. O mais interessante é que também havia Anjos freelancers, profissionais que rondavam os bistrôs para oferecer seus serviços de proteção àqueles que não pareciam em boas condições de voltar para casa.

Já que seu ofício era cuidar dos embriagados, os Anjos da Guarda, apesar de trabalharem na “farra”, não podiam beber álcool. Por isso os estabelecimentos contratavam pessoas de confiança, para terem a certeza de que o Anjo não acabaria a noite tão mal quanto seus protegidos.

Bistrô dos anos 1900, exemplo de onde atuavam os Anjos da Guarda. Foto: Willy Ronis.

Revendedor de Fezes de Cachorro

Não sei se você sabe (eu mesma acabei de descobrir), mas parece que dejetos caninos são ótimos para polir o couro. Os coureiros de Paris sabiam, e por isso compravam os restos deixados pelos cãezinhos para polir luvas de pele animal, muito usadas na época por operários da indústria.

Tal mercado inusitado criou o Revendedor de Fezes de Cachorro, que saía pelas ruas catando os dejetos a fim de vendê-los. Segundo uma nota do jornal La Presse de 1926, a revenda não era muito lucrativa, e também tinha uma baixa temporada: em maio, quando os cães comiam mais frutas do que carne, o que (por motivos não detalhados na reportagem) faria seus restos perderem as propriedades polidoras.

Um antigo Revendedor com sua carroça utilizada no trabalho. Foto: Savoir d’Histoire.

Caçador de Ratos

Em outubro de 2019, o perfil do Instagram Perrengue Chique, dedicado a relatos de viajantes pelo Brasil e mundo afora, republicou o vídeo de um seguidor filmando uma lixeira infestada de ratos e dizendo “onde eu estou, tô no Brasil? Não… na Torre Eiffel!”.

O vídeo viralizou, com muitos internautas criticando a “síndrome do vira-lata” e não entendendo o porquê de tanto estardalhaço. Será que ele nunca assistiu a Ratatouille?

Apesar da surpresa do brasileiro, o mini-chef nunca foi e nunca será uma surpresa no dia a dia da Torre Eiffel. É só nos lembrarmos da Peste Bubônica, doença transmitida por pulgas de ratos que matou entre 75 e 200 mil pessoas na Europa do século 14 — cerca de um terço da população que havia no continente.

Em tempos antigos, para conter as infestações, a prefeitura da cidade contratava Caçadores de Ratos. Estes profissionais saiam atrás dos roedores pelas ruas e bueiros munidos de iscas, ratoeiras e espingardas, sobretudo no verão, quando o clima quente favorecia (e ainda favorece, como o Perrengue Chique fez questão de nos lembrar) a reprodução desses animais.

Cartão postal da série “Pequenos Empregos de Paris”, retratando um Caçador de Ratos pelos esgotos da cidade (1900) Foto: J. Hauser.

Profanador de Tumbas

Um dos motivos pelos quais eu não seria muito feliz seguindo uma carreira na área da saúde, é que na sua formação você lida diretamente com cadáveres.

Hoje em dia, no Brasil, apenas os seguintes corpos podem ser usados para fins acadêmicos: não-reclamados (indigentes); doados pela família; ou doados em vida, cujos donos (enquanto vivos) assinaram um termo deixando clara sua vontade de contribuir para com a ciência após a morte.

Na Paris do século 19, as coisas eram bem menos burocráticas. Como o processo legal para adquirir cadáveres para fins acadêmicos era longo e complicado, certas instituições optavam por meios menos corretos, assim dizer. Universidades contratavam Profanadores de Tumbas, cujo trabalho era invadir cemitérios pela noite e — é isso mesmo — roubar os mortos para serem usados em aulas de anatomia.

Cena do filme Frankenstein (1931), que ilustra bem o trabalho de um Profanador.

E o último, mas não menos chocante:

Alugador de Crianças

À primeira vista, o Alugador de Crianças era como uma babá. Ele geralmente era contratado por mães solo trabalhadoras, que precisavam de alguém para cuidar dos filhos durante o expediente. Até aí tudo bem… O problema é que a babá em questão alugava as crianças para terceiros.

Os Alugadores “emprestavam” os pequenos a determinado valor para moradores de rua, que os usavam para receber esmolas maiores. Os pobrezinhos eram maquiados, sujos (e às vezes mesmo agredidos) para parecerem autenticamente sofridos e sensibilizar o coração dos transeuntes.

Este “profissional”, portanto, ganhava duas vezes: tanto dos pais (que não sabiam do “aluguel”) quanto dos mendicantes. Procurei descobrir o que ocorria após a “devolução” das crianças aos familiares, se sofreriam alguma punição, mas não encontrei em lugar algum. Considerando o antigo status de “emprego” desta atividade, é de se esperar que não.

Dois séculos depois, a capital francesa ainda está cheia de empregos “se-vira-nos-trinta”.

Muitos deles estão ligados ao turismo, como a venda de flores e souvenirs em locais famosos como o Louvre, Torre Eiffel ou Arco do Triunfo. A cidade é a segunda no mundo inteiro que mais recebeu visitantes internacionais em 2019, de acordo com o levantamento anual da Mastercard, e em tais circunstâncias, visitantes são um mercado bastante atraente. Dizem que é impossível passar um dia na cidade sem topar com um vendedor ambulante de mini-Torres Eiffel, apesar de a prática ser clandestina e combatida pelo governo.

Assim como na época de Revolução Industrial, na qual muitos camponeses rumaram às grandes cidades em busca de uma vida melhor, muitos desses trabalhadores informais vieram de fora da cidade — ou melhor, do país. Em entrevista para o jornal Le Parisien, o chefe do Departamento Anti-Crime Organizado de Paris, Guillaume Fauconnier, afirma que as vendas clandestinas pelas ruas da cidade são divididas há mais de trinta anos entre migrantes da África Ocidental e do Sul da Ásia.

A França atual tem uma relação bastante delicada com a imigração. O número de estrangeiros que buscam residência no país europeu (de tamanho similar ao estado da Bahia) aumentou em 40% desde 2000. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (INSEE), equivalente ao nosso IBGE, 2019 começou com seis milhões e quinhentos mil imigrantes, cerca de 10% da população total. Destes, quase metade vinham de países da África, em sua maioria da Argélia e do Marrocos — duas ex-colônias do país.

Assim como já falamos nas Segundas A(paris)ções, a França tem uma longa história de dominação de outros povos nos quatro continentes, tendo tido seu auge em meados dos séculos 19 e 20, justamente no período da Revolução Industrial. Por conta das heranças sociais e econômicas deixadas nessas regiões, hoje independentes, cada vez mais de seus cidadãos buscam refúgio na nação europeia.

Mapa de evolução do Império Colonial Francês, entre 1534 e 1980. Em azul claro até 1763, e em azul escuro, a partir de 1815. Fonte: Wikicommons.

Ao contrário do que imaginam muitos turistas que voltam para casa abarrotados de pequenas Torres Eiffel, o comércio de rua dos souvenirs é uma ocupação arriscada. Ela é passível de prisão caso haja venda em flagrante, além de não ser muito rentável: cerca de 200 euros por mês, em um país onde o salário mínimo está na casa dos 1.500€. Ainda assim, em comunhão com os índices de imigração, o número de pessoas neste “pequeno emprego” tem aumentado a cada ano, para o terror da polícia local.

Repetindo sua própria história, a capital da França continua obrigando seus moradores menos favorecidos a se débrouiller diariamente.

Três vendedores ambulantes conversam aos pés da Torre Eiffel (2018). Foto: Le Parisien

Fontes

Urbanização belo-horizontina nos anos 1950:

- População nos Censos Demográficos, segundo os municípios das capitais — 1872/2010, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Acesso em 05/06/2020.
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A Expansão Urbana de Belo Horizonte e da Região Metropolitana de Belo Horizonte: O Caso Específico do município de Ribeirão das Neves, Joseane de Souza. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Acesso em 05/06/2020.

Revolução Industrial e “pequenos empregos”:

- Statistique Générale de la France: Recensements de la population 1851 à 1921 (“Estatísticas gerais da França: Censo da população 1851 à 1921”), Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE). Acesso em 05/06/2020.
-
La Révolution Industrielle (“A Revolução Industrial”), Portal da Economia, Finanças, Ações e Contas Públicas do Governo francês. Acesso em 09/06/2020.
- Les « petits métiers » de la débrouille dans le Paris d’antan (“‘Pequenos empregos’ se-vira-nos-trinta na Paris do passado”), Savoir d’Histoire. Acesso em 02/06/2020.
- 25 métiers du passé qui ont totalement disparu (“25 ofícios do passado que desapareceram completamente”), Je Change de Métier. Acesso em 03/06/2020.
- 5 métiers oubliés du Paris d’antan (“5 ofícios esquecidos da Paris do passado”), Paris ZigZag. Acesso em 04/06/2020.

Imigração atual:

- Índice Global de Cidades-Destino 2019, Mastercard (2019). Acesso em 06/06/2020.
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«Je gagne 200 euros par mois» : enquête sur les vendeurs de tours Eiffel à la sauvette (“‘Eu ganho 200 euros por mês’: pesquisa sobre vendedores de Torres Eiffel ilegais”), Antoine Besse. Le Parisien, 05/06/2019. Acesso em 06/06/2020.
- Étrangers / Immigrés (“Estrangeiros / Imigrantes”), Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE). Acesso em 24/06/2020.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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