Bom dia Brasil, boa tarde França!

Momento em que Aquela Heroína percebe que a vida comum não precisa ser tão entediante

Mariana Prates
QUARANTENADA
5 min readMay 18, 2020

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Foto: arquivo pessoal

Checar o celular logo depois de acordar é um hábito pouco saudável, e embora saiba disso muito bem, eu o faço mesmo assim. Que nem diz meu pai: burrice.

Naquele dia não foi diferente. Pesquei o celular por força do hábito, e com os olhinhos inchados de sono, vi que havia chegado uma mensagem da minha amiga Giu, salva pelo contato cafona de Giullimana. Uma só palavra: PASSEI.

Ave Maria, o rebuliço! De repente, sair do limbo sonolento do pós-despertar não foi uma tarefa tão difícil quanto nas outras manhãs. Joguei as cobertas pra cima. Tropecei no chinelo, por pouco não tropeçando de cara para o chão. Se a Giulliana soubesse que aquela mensagem quase me matou, talvez tivesse tido a decência de esperar até o café da manhã para contar a novidade.

Respondi a Giu com um PARABÉNS e várias letras aleatórias socadas no teclado, letras que por si só não significam muita coisa, mas que ultimamente têm sido usadas como resposta para tudo aquilo que a gente tá alvoroçado demais para conseguir responder.

Captura de tela de conversa no Whatsapp entre eu e Giulliana, com mensagens contendo AAAA e letras sem sentido
“Diálogos modernos”, 4 de outubro de 2019 (Foto: arquivo pessoal)

Apesar do surto, mantive a calma para entrar no site do Moodle, a plataforma acadêmica virtual da Federal. Após três anos e meio de graduação, aprendi que não se pode demonstrar inquietações ao lidar com o Moodle. Essa bendita ferramenta de suporte ao saber é, para mim, que nem as vacas são para o meu pai.

Papai, apesar de técnico em agropecuária por formação, não gosta muito de vacas. O motivo é simples: sempre é perseguido por elas. Na verdade é um paradoxo; a gente não sabe se ele não gosta delas por sempre ser perseguido, ou se elas sempre o perseguem por saber que ele não gosta delas. Quando eu tinha seis anos, minha família passou uns dias na roça. Eu, meu irmão e Mamãe andávamos de charrete todos os dias, passando pelo pasto para admirar as vaquinhas, e elas nem tchum. Um belo dia chamamos Papai para se juntar a nós, e surpresa: as benditas das vacas decidiram correr atrás da charrete. As bichinhas, apesar de fingirem inocência, farejam o medo de longe.

O Moodle são as minhas vacas. Não me dou bem com ele, porque ele fareja a minha angústia. Quanto mais ansiosa estou para ele carregar, mais ele demora para funcionar. Na pior das hipóteses, o servidor trava e preciso esperar até de madrugada para acessá-lo com sucesso, o que torna toda a situação ainda mais frustrante.

Por isso, mantive o máximo de calma ao logar no sistema. Fingi bem: entrou sem travar. Segui os passos de minha amiga e fui na aba de processos de intercâmbio, onde um mês antes eu havia me candidatado para um semestre de mobilidade na Universidade de Paris III, Nova Sorbonne, na esperança de passar um tempo trocando o bom dia pelo bonjour.

Depois da demora usual do Moodle, surgiu na tela meu nome, o nome da Nova Sorbonne, e ao lado uma simples palavrinha mágica: aprovada.

Gritei que nem a Giu.

PASSEI.

Imagina morar em um lugar longe, mas tão longe, que as pessoas não entendem você. Não é que nem ir para São Paulo e a galera não saber o que é arreda. É não entender mesmo. Você pode se fazer ser entendido por elas, mas elas não entendem você. A maioria delas, ao menos.

Acabei de pesquisar quantas pessoas falam português em Paris, e não encontrei o número — sinal de que não devem ser tantas assim. Porém, segundo o Statista, portal alemão de dados e estatísticas, 49.217 imigrantes brasileiros residiam na França em 2016. Parece muito, mas a termos de comparação, é pouco mais que a população universitária da UFMG, que fechou 2019 em 48.949.

Ou seja, tem uma Federal inteira de brasileiros na França, e aparentemente vou me tornar um deles (por seis meses, mas vale).

Nos primeiros dias, eu estava em êxtase. Qualquer assunto parecia um bom gancho para comentar as novas curiosidades parisienses que tinha encontrado por vlogs e sites da internet. A pessoa não podia comentar absolutamente nenhum assunto, que eu vinha com um “que coincidência, você SABIA QUE EM PARIS…”. Pensando bem, eu devia estar insuportável. Perdão, amigos.

Comecei a estudar a Europa pelo Google Maps, o que causou muitas surpresas positivas. Sabia que a viagem de trem Paris-Bruxelas dura apenas uma hora e meia? Pois uma hora e meia é o tempo que a linha 5250 saindo do Betânia demora para chegar na Federal! Como pode um trem desse?

Encontrei outros amigos que haviam sido aprovados, além da Giu, e começamos a fazer planos malucos sobre se encontrar. Não importa o país, a gente dá um jeito. Até porque a Europa já é pequena, para um grupo de mineiros então, é logo ali. Lisboa? É perto. Frankfurt? É perto. Moscou? Sei não, mas deve ser perto. Perto de onde? De Paris? Sei não, mas tenho certeza que é perto.

Mandei mensagem para um primo residente de Paris, aproveitando o rápido retorno dele por terras belo-horizontinas para encontrá-lo e pedir algumas dicas. Anotei todas em um caderninho, maravilhada com as histórias da nova casa que ele tinha para contar, com exceção do escargot. Apesar da boa propaganda, não consegui — ainda não consigo — aceitar que as pessoas comam caracol (e não lesmas). Bati o pé sobre como vou deixar os escargots de fora das minhas experiências francesas, coisa que ele não acreditou com muita convicção. Não é experiência francesa se não tiver escargots, Mariana.

Veremos.

Atualmente eu estou menos, como diria a gíria, surtada. Consigo manter uma conversa normal sem jogar a informação aleatória de que existem raves clandestinas nas catacumbas de Paris. Não vou te bombardear com fatos inusitados que descobri sobre a terra dos francos, a não ser que você o peça com todas as palavras (nesse caso, o farei com muito prazer).

Agora eu fico só imaginando como é que será. O que, assim como o Moodle, me deixa um pouco ansiosa. Grandes mudanças sempre deixam a gente ansioso, refletindo sobre um trilhão de possibilidades criadas por nada além da nossa cabecinha. Pensando coisas como; e se eu for na padaria e não souber como pede pão em francês?

Não sei. Por mais que me doa admitir a ignorância, a verdade é que eu não sei. Ninguém sabe. Pode até ser que eu aprenda a gostar de escargots, o que seria a maior das reviravoltas.

Mas continuo firme e forte no corre-corre. Até lá, só me resta um pouco de paciência e votos de bonne chance.

Fontes:

Brasileiros na França (2016)
Nombre d’immigrés brésiliens résidant en France par âge 2016 (“número de imigrantes brasileiros residentes na França por idade 2016”, Statista). Acesso em 23/04/20.

População universitária da UFMG (2019)
UFMG em números (Universidade Federal de Minas Gerais). Acesso em 23/04/20.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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