A(paris)ções #5: E o Jeitinho… Francês?

Surpresas, nuances e peculiaridades da cultura parisiense pelos olhares de Olívia, ex-moradora da Cidade Luz

Mariana Prates
QUARANTENADA
9 min readAug 8, 2020

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No Museu do Louvre durante seu semestre na capital francesa, em 2016. Foto: arquivo pessoal/Olivia Motta

Depois de conversar com a Amandine, que é francesa e me contou algumas de suas estranhezas da vida em Belo Horizonte, me bateu a dúvida: e uma brasileira em Paris? Será que também teria causos de diferenças culturais?

Sendo assim, fui bater um papo com a Olívia Motta, estudante de Letras/Tradução na UFMG. A Olívia e eu nos conhecemos ao final de 2016 por meio de uma amiga em comum e somos muito próximas desde então, nos encontrando sempre que possível para almoços na faculdade — em tempos pré-Corona, claro.

13° Arrondissement, onde Olívia viveu em Paris. Foto: wookal.

Em janeiro de 2016, quando a Olívia tinha dezessete anos, a família dela saiu de Belo Horizonte com destino ao Décimo Terceiro Arrondissement de Paris, às margens do famoso rio Sena. A mudança veio de um convite que o seu pai, professor da UFMG, recebeu para atuar no Instituto de Estudos Avançados da América Latina da Universidade Paris III — Nova Sorbonne, lecionando sobre nosso continente para os parisienses. A família tinha planos de passar um semestre por lá, retornando em julho para o Brasil.

Apesar de saber que a Olívia já passara alguns meses como estudante do lycée (ensino médio) público francês, nós nunca havíamos conversado sobre sua experiência por lá. Por isso, aproveitando a oportunidade, no dia 2 de agosto de 2020, a enviei a seguinte mensagem:

Deixo claro aos colegas de profissão que a abordagem informal ocorreu apenas pelo fato de que a fonte da vez já fez até churrasco em minha casa. Fonte: arquivo pessoal/Whatsapp

Como podem ver, ela não só aceitou, como achou muito emocionante o fato de ser entrevistada. E foi assim, por uma vídeo chamada do Whatsapp, que fiquei sabendo das histórias de minha amiga pela capital francesa — e pude traçar alguns paralelos entre as experiência dela e de Amandine, tendo ambas trocado de país.

Desconfiados, até demais

Enquanto minha professora francesa achou difícil criar laços com brasileiros porque somos abertos demais (o que não necessariamente indica intimidade), as dificuldades de Olívia ocorreram pelo fato de que ela quase não teve contato com nativos, mesmo.

Em frente ao famoso cartão-postal da Torre Eiffel. Foto: arquivo pessoal/Olivia Motta

Apesar de ter concluído o ensino médio ao final de 2015, o fato de ainda ter dezessete anos permitiu que ela fosse matriculada para um semestre como intercambista no lycée. Logo ao início das aulas, porém, uma surpresa: ela não teria aula com franceses.

Por ainda não dominar o idioma local, ela foi colocada em uma turma de accueil, acolhida, destinada exclusivamente a estudantes estrangeiros. “Essa separação tem seu lado bom e ruim. Bom porque nós recebemos uma atenção muito grande por parte dos professores, ruim porque não deixa de ser uma segregação. Se o seu francês não for tão bom quanto o dos nativos, você não pode ‘se misturar com eles’”, conta.

Por isso, sua interação na escola foi majoritariamente com outros estrangeiros: fez amigos da Lituânia, Estados Unidos, Chile, e vários do Brasil. “Quando eu me tornei ‘apta’ a participar das aulas com os franceses, já era hora de voltar para BH. Isso me revolta um pouco”, desabafa ela, dizendo que os únicos nativos com os quais teve contato eram amigos de amigos, em uma convivência que descreve como “de corredor”.

Um ponto interessante, é que a turma de accueil permitiu contato com realidades que até então pareciam completamente distantes de sua vida no Brasil. Um de seus colegas era refugiado da Guerra Civil da Síria, e sempre contava dos pais e da irmã mais nova que ainda não haviam saído do país. “Eles conseguiram se reunir na França no final do semestre. Eu fiquei muito feliz, foi um momento muito emocionante. Ele chorou muito ao contar para a gente”, lembra. Hoje a família de seu ex-colega sírio reside no interior da França, longe dos problemas que, infelizmente, ainda atingem seu país natal.

Estereótipos, para o bem ou para o mal

Pense nos clichês acerca do povo parisiense: pessoas muito elegantes, de nariz em pé, que fumam bastante… É verdade? “Você percebe esse padrão com mais força nos adultos. Os jovens são mais largados, mas essa história do cigarro é verdade! No intervalo das aulas, alguém sempre se aproximava para perguntar: vous avez du feu? Você tem fogo?”, conta.

A França é o quarto país da Europa com o maior número de fumantes, atrás apenas da Grécia, Bulgária e Croácia. Cerca de 25% da população possui o hábito, totalizando dezesseis milhões de pessoas. Entre jovens de quinze a dezenove anos, o índice é ainda maior: 32%, indicando a média de um a cada três adolescentes.

Em contrapartida, no Brasil o hábito está em declínio desde o início dos anos 2000, graças ao forte investimento em propaganda antitabagista. Em 2006, 16% da população brasileira acima de dezoito anos tinha o costume de acender um cigarro diariamente; em 2019, ano do último levantamento do Ministério da Saúde, o índice havia caído para 9,8%. O relatório não consta dados sobre possíveis fumantes abaixo da maioridade.

Embalagens neutras e com propaganda anti-tabaco (como as do Brasil) são obrigatórias na França desde 2016, para tentar frear o alto índice de adeptos do hábito nocivo. Fonte: Le Parisien/Guillaume Georges

Além dos clichês relacionados ao povo francês, a temporada da Olívia no exterior permitiu descobrir os de nosso próprio país. Em uma aula de inglês, foi pedido que os alunos citassem os estereótipos acerca da nacionalidade dos colegas, e ela ficou surpresa pelos que ouviu. “Falaram que [o Brasil] se resumia a futebol, Carnaval, violência, prostituição… Me marcou bastante ver a imagem negativa que certas pessoas têm da gente lá fora”, diz. Felizmente, ela não passou por nenhuma situação desagradável ou xenófoba durante seus tempos no exterior.

Com cerimônias, por favor

Chegando no Brasil, a Amandine se surpreendeu (de maneira boa) com a flexibilização das formalidades nas relações. No que diz respeito aos brasileiros na França, o caminho inverso também pode trazer estranhamentos.

Uma máxima que ouvi de viajantes experientes ao anunciar meu intercâmbio, foi a de nunca se esquecer de começar uma interação com bonjour, bom dia. As pessoas vão olhar feio e te repreender, ou não se darão ao trabalho de responder, disseram. A Olívia confirma essa orientação. “O excesso de educação é tão grande, que se você não corresponde a ela, acaba levando uma ‘cortada’ muito forte. O que pode soar bastante grosseiro para quem vem de fora”, explica.

Não corresponder a determinados códigos da etiqueta social francesa é mal visto, mesmo se souberem que você vem de outra cultura. Alguns são esperados, como dizer bom dia e com licença (hábito louvável em qualquer país, não apenas por lá), outros divergem do que estamos acostumados por aqui. É o exemplo das refeições. “Existe todo um ritual para elas. Os donos da casa servem todas as pessoas na mesa, e só depois que eles dizem bon appétit é que podemos começar a comer”, conta, tendo se surpreendido com a formalidade na primeira vez em que foi convidada para almoçar com locais. Outra norma que chamou a atenção de Olívia foi o tratamento dado aos pequenos. “Aprendi que em meio a essa hierarquia, as crianças são servidas por último. Eu ficava indignada, por que a última? A criança é inferior? Acho injusto, mas nunca contestei. Respeito que faz parte da cultura deles”, afirma.

Até a criação das tais crianças gerou estranhamentos. Segundo ela, enquanto aqui há uma cultura de “pais que cuidam muito”, lá espera-se uma independência maior dos filhos, mesmo na infância. Ela considera este hábito bom e ruim, já que faria com que as pessoas amadurecessem mais cedo, ao mesmo tempo em que cortaria as liberdades da infância.

Quando trabalhou de babá, isso ficou ainda mais forte. A família era composta por um francês e uma brasileira, que pediam que cuidasse da filha de oito anos enquanto estivessem fora. Apesar de sua mãe ser latino-americana, a menina não falava português e era criada aos moldes do país em que morava: já sabia cozinhar e era deixada sozinha em casa. “Tinha dias que os pais dela ligavam me dispensando, e eu dizia que iria esperar eles chegarem, porque estava de noite. Eles respondiam ‘não, está tarde e você precisa pegar o metrô, pode ir’. Então a menina ficava mais duas, três horas sozinha, aos oito anos. Para mim, isso foi chocante”, conta.

Em estado de alerta

Quando a Amandine veio parar no Brasil, acabou tendo de se adaptar à rotina de insegurança da sociedade brasileira, cujos índices de criminalidade são maiores que os franceses. Como abordado na crônica anterior, o Brasil está hoje em 126ª posição no Índice Global de Paz, dentre 163 países analisados. Já a França, está em 66º lugar.

No entanto, a vivência parisiense trouxe uma nova preocupação para Olívia: o terrorismo. Apesar dos melhores índices de segurança pública, a Europa viu emergir tragédias causadas por grupos fundamentalistas na última década. Quando a Olívia chegou em Paris, à metade de janeiro de 2016, a cidade havia acabado de passar por duas delas: o tiroteio no Teatro Bataclan, que em 13 novembro de 2015 deixou 126 mortos, e ao jornal Charlie Hebdo, que em 7 de janeiro de 2016 deixou doze mortos e onze feridos, ambos no Décimo Primeiro Arrondissement de Paris.

A proximidade com as tragédias trouxe um novo tipo de insegurança para seu dia a dia, até que ela sentiu na pele a tensão durante uma viagem de trem para a Inglaterra. “Primeiro eu vi uma mala no chão, o que por si só é visto como um alerta. Isso já me deixou preocupada. Logo depois um casal entrou no banheiro, e de início não me importei, mas eles demoraram demais, e então só o homem saiu. Pensei ‘meu Deus, colocaram uma bomba lá dentro’”, conta ela, dizendo não saber descrever o medo que passou durante o percurso.

“Mais tarde procurei pelo casal no trem, e não achei eles em lugar algum. A partir daí já criei toda uma paranoia na cabeça e falei com meus pais, até que deixei todos preocupados comigo”, diz. Ela pensou em acionar o botão de emergência, mas não o fez, já que era uma alegação séria demais de se fazer sem ter certeza absoluta. Depois de muita angústia, a mala abandonada foi recolhida pelos funcionários e sua família avistou o casal tranquilamente em seus assentos.

Olívia conta a história rindo, já que foi apenas “um susto” de sua cabeça, mas diz que a sensação é desesperadora. “A gente cria toda a situação no nosso imaginário e começa a acreditar naquilo. É um tipo de violência mais rara do que a de um assalto, por exemplo, mas a questão é que você nunca sabe quando ou onde pode acontecer”, conta.

E depois do intercâmbio?

Além de toda a vivência intercultural, o curto expatriamento foi importante para se decidir por uma carreira nas Letras. “Desde pequena sempre me interessei em estudar idiomas, e aquele período foi importante para perceber que além de gostar, eu também tenho facilidade para eles”, explica Olívia, que chegou na cidade sabendo apenas o básico do francês e voltou como falante intermediária.

Curiosamente, seus estudos hoje são em tradução, mas na língua inglesa. O que não significa que ela não seguirá com o francês, porém. Minha amiga dá aulas do idioma para o Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG e continua treinando para o dia em que tiver a oportunidade de voltar à França. “Aqueles seis meses foram intensos, mas curtos! Adoraria voltar, talvez não de intercâmbio por conta da minha habilitação, mas ainda quero muito visitar Paris outra vez!”, afirma.

Registro do pôr-do-Sol com vista para a Catedral de Notre Dame (à direita). Foto: arquivo pessoal/Olivia Motta.

Fontes:

- Olívia Sá Motta, estudante de Letras (tradução/inglês) na UFMG. Entrevista realizada em 03/08/2020.

- Índice Global da Paz 2020, 06/2020. Institute for Economics & Peace. Acesso em 19/07/2020.
- Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Telefone (Vigitel) Brasil 2019
. Ministério da Saúde. Acesso em 06/08/2020.
- Chiffres du tabac en France, Tabac Info Service. Acesso em 06/08/2020.
- Eurobarometer: Attitudes of Europeans towards tobacco and electronic cigarettes, 2015. Comisão Europeia (UE). Acesso em 06/08/2020.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

devaneios de uma escritora em crise de (pouca) idade