Intercâmbio em Crise # 2: O Tal do Perrengue Chique

Conta bloqueada, escala nas Arábias e anjos da guarda na história de Fátima*, que precisou se desdobrar para deixar a Finlândia durante o fechamento das fronteiras da União Europeia

Mariana Prates
QUARANTENADA
10 min readAug 19, 2020

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Cenas que se tornaram comuns no dia a dia da estudante durante seu tempo no país nórdico. Foto: arquivo pessoal/Fátima.

No primeiro semestre de 2020, 144 estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais estavam prestes a realizar o sonho de partir em mobilidade internacional. Segundo a Diretoria de Relações Internacionais da Universidade (DRI/UFMG), a previsão era enviar membros de sua comunidade para as Américas (Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, México, Peru e Uruguai), África (Cabo Verde), Ásia (Índia e Coréia do Sul) e Europa (Alemanha, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Itália e Portugal) — totalizando dezenove países ao redor globo.

Mapa das mobilidades internacionais da UFMG em 2020/1. Fonte: DRI/UFMG.

Com o agravamento do novo Coronavírus, em março de 2020, a UFMG aconselhou que os viajantes avaliassem bem sua possibilidade de retorno ao Brasil. Dos 144, cerca de um terço — 39 estudantes — teve a mobilidade cancelada por desistência ou suspensão, enquanto os outros dois terços — 105 — optou por permanecer no estrangeiro, se adaptando à nova realidade imposta pela pandemia.

Ao final de 2019, algum bom samaritano entrou em contato com a DRI solicitando que ela divulgasse o link de um grupo do WhatsApp para reunir estudantes aprovados para a Europa, criando nosso querido “MM 2020”. Ele conta hoje com 108 membros, com mobilidade prevista para países europeus no primeiro e segundo semestres.

No dia 13 de julho de 2020, perguntei aos “2020/1” do grupo se eles gostariam de compartilhar suas histórias durante a pandemia:

Fonte: arquivo pessoal/Whatsapp.

A intenção era realizar uma reportagem relatando a experiência de um ou dois alunos, no entanto, vários se mostraram abertos à proposta:

Algumas das respostas que recebi. Fonte: arquivo pessoal/Whatsapp.

Sendo assim, decidi emprestar o quadro de Ex-Pré-Intercambista para meus colegas do primeiro semestre e seus relatos (nem tão) enclausurados, seus aprendizados e frustrações vividos nos últimos meses. Nossa primeira convidada foi a Verônica Toledo, futura arquiteta e urbanista que passou pelo ápice do Corona sozinha durante a explosão de casos em seu país anfitrião, a Itália.

Agora passo a bola para Fátima*, aluna da Escola de Engenharia da UFMG que vivenciou uma pequena temporada nos países nórdicos. Em minha humilde opinião, sua trajetória de volta para casa foi tão surpreendente que merece menção honrosa nos capítulos sobre Coronavírus dos futuros livros de história.

Senhoras e senhores, com vocês, A História de Fátima.

A História de Fátima*

Estudante de Engenharia Civil na UFMG
Cidade anfitriã: Kajaani, Finlândia
Duração da mobilidade: 3 meses (final de janeiro a abril de 2020)

Rota de Fátima durante a mobilidade estudantil.

Sair de intercâmbio sempre fora um sonho de Fátima, mas por questões financeiras, o projeto por muito tempo não saiu do papel. Ao ser aprovada para cursar Engenharia Civil em uma universidade pública, porém, a estudante e sua família puderam organizar suas finanças para que a oportunidade se tornasse viável finalmente.

Em meados de 2019, ela foi aprovada para passar uma temporada na Finlândia. A escolha não veio pelo país em si, mas pelo idioma: apesar de as línguas oficiais de lá serem o finlandês e o sueco, o inglês é amplamente falado pela população. De acordo o Special Eurobarometer 386, uma espécie de Censo especial realizado pela União Europeia em 2012 quanto aos idiomas falados pelos cidadãos de seus países membros, cerca de 70% dos finlandeses dominam a língua inglesa — o que facilita (e muito) a comunicação por parte de estudantes estrangeiros.

Localização de Kajaani, na Finlândia. Foto: reprodução/Google Maps.

Foi assim que, ao final de janeiro, ela embarcou até seu destino: Kajaani (lê-se “kaiâne”), em Kainuu, região central da Finlândia. Ela foi realizar um estágio no Centro de Pesquisa da Universidade de Ciências Aplicadas de Kajaani, onde também teve aulas de inglês e finlandês. “Eu tentei pegar matérias da minha grade de Engenharia Civil, mas elas eram todas em finlandês… Mesmo se tentasse traduzir as aulas, era impossível acompanhar”, diz a estudante. Sendo assim, ela ficou com aulas de idiomas e o estágio em Civil, no qual pesquisava inicialmente sobre drenagem e escoamento de águas em terrenos para construção.

Chegando na residência estudantil, ela foi recebida com festa pelos outros moradores. Suas colegas de casa eram uma russa, duas holandesas e uma francesa, que desde o início a chamaram para se enturmar nas reuniões estudantis na moradia. Fátima conta que pelo tamanho de Kajaani (com singelos trinta mil habitantes), os intercambistas se encontravam nos espaços comuns da própria moradia ou em um único bar que há na cidade.

Estação de esqui na vila de Äkäslompolo, ao norte da Finlândia. Foto: arquivo pessoal/Fátima.

O ambiente do estágio era acolhedor e produtivo, e ela estava cada vez mais próxima dos colegas de residência. No entanto, um desafio foi difícil de superar: o clima. Fevereiro ainda é inverno para os finlandeses, e as temperaturas chegam a -20°C. “Sair de casa cedo e não ter o amanhecer até depois de oito da manhã era complicado. Às vezes o Sol não aparecia direito por uma, duas semanas, e ficava o dia inteiro com neve e neblina fria… Mas a gente se acostuma”, conta. Felizmente, o campus possuía um complexo de academia para estudantes, e manter uma rotina fisicamente ativa ajudou na adaptação.

Logo em fevereiro, porém, chegaram as primeiras notícias da pandemia. Ela não levou a situação a sério, ao menos não de início. “Quando rolou aquela explosão de casos na Europa, eu achei que ia passar rápido… Pensei que continuaria quietinha na Finlândia até a situação melhorar, porque ia perder todo o sonho do intercâmbio se voltasse antes da hora”, conta. No entanto, a tranquilidade passou no dia 16 de março de 2020, quando o presidente francês Emmanuel Macron anunciou o fechamento das fronteiras externas da União Europeia.

Fátima estava prestes a iniciar os trabalhos em campo em seu estágio, mas o cenário modificou os planos. “Eu ia começar a frequentar o laboratório para aplicar toda a pesquisa que vinha fazendo, mas na semana em que fui escalada para começar os testes, a universidade fechou. Fiquei só na teoria, mesmo”, lamenta. Como não era possível realizar experimentos à distância, o estágio foi suspenso e seu intercâmbio acadêmico terminou por ali.

Fazenda de Huskies Siberianos, um dos lugares nos quais a Fátima teve a oportunidade de ir no intercâmbio. Infelizmente o vídeo não é dela, mas transmite bem a experiência do passeio. Fonte: Primo Graphics/YouTube.

Com a fala de Macron sobre a União Europeia e o fechamento de sua universidade anfitriã, a estudante não viu mais sentido em permanecer no estrangeiro. Fátima começou a buscar uma forma de voltar ao Brasil, mas as medidas de restrição colocavam empecilhos em sua volta. “Os países vizinhos da Finlândia começaram a fechar suas fronteiras, e a própria capital, Helsinki, foi fechada pro resto do país. Como é que eu ia embora sem entrar em Helsinki, o único lugar com ponte aérea pro Brasil?”, questiona. Além disso, a baixa oferta de voos fez com que os preços hiper-inflacionassem — à época, havia passagens na classe econômica de até vinte mil reais.

Para piorar, ela tentou acessar sua conta bancária pelo aplicativo online, atividade que o banco brasileiro considerou suspeita pela localização nos países nórdicos. Resultado: cartão bloqueado e nenhum acesso às próprias economias. Entrando em contato com o gerente, foi informada que deveria solicitar o desbloqueio pessoalmente na agência física mais próxima, que ficava na Alemanha. Com o fechamento das fronteiras, aquela era uma dica impossível de se fazer.

Com o cartão da avó, ela conseguiu uma passagem que sairia dali uma semana para o Brasil… Passando por Doha, capital do Catar, no Oriente Médio. No entanto, a capital da Finlândia continuava fechada para o resto do país. Ela buscou auxílio da Embaixada Brasileira em Helsinki, que lhe enviou uma carta oficial de autorização para entrar na cidade e acessar o aeroporto no dia da viagem. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, há cerca de 1.500 cidadãos brasileiros residindo no país nórdico atualmente, e em momentos de crise como a pandemia, o apoio da representação consular é fundamental para aqueles que buscam repatriamento.

No dia de ir embora, porém, já no trem para a capital, um SMS da Qatar Airways avisa que seu voo havia sido cancelado. “Desci em Helsinki desesperada, sem saber o que fazer… Ia tentar arranjar outro voo? Quanto tempo ia ficar presa lá? Onde eu ia dormir?! Nesse meio tempo já chegou a polícia me interrogando, querendo saber quem eu era e o que eu tava fazendo ali, porque a cidade tava fechada e eu não podia entrar… Só que tudo isso em finlandês. Eu só mandei um what is happening?”, conta ela. Após superar a barreira linguística e mostrar seus documentos (principalmente a carta da Embaixada Brasileira), ela foi autorizada pela polícia a entrar na capital.

Por sorte, a amiga de uma amiga da faculdade tinha uma sogra que era finlandesa. Ou seja, em um verdadeiro telefone sem fio, a mãe da pessoa que namorava a amiga da sua amiga se apiedou de sua jornada e lhe recebeu em Helsinki, indo buscá-la pessoalmente na estação de trem. De lá, a senhora a levou até o aeroporto e “de quebra” a ajudou a se comunicar com a companhia aérea, que a acomodou em um voo para dali três dias.

Em um exemplo de simpatia, a senhora finlandesa levou Fátima para sua própria casa, onde ela e o esposo deram à viajante um quarto, comida e todo o conforto do mundo nos três dias de espera. “Eles foram incríveis, me deram até presentes quando fui embora. Morri de vergonha com toda a atenção (risos)”, diz ela, afirmando ter sido tratada como filha durante seus dias com o casal.

Jantar na casa do casal finlandês que a acolheu de última hora. Foto: arquivo pessoal/Fátima.

Após todo o conforto recebido de seus anfitriões, era hora de pegar o tão esperado voo de volta para casa. As cinco horas no céu até Doha seguiram sem intercorrências, mas ao pisar na capital do Qatar, mais momentos de tensão. “Estava com medo por estar sozinha em um lugar que não conhecia, em um país onde as leis são muito rígidas, principalmente para mulheres. Cheguei meia noite e o aeroporto estava deserto. Precisava esperar outro voo até às sete da manhã, mas não preguei o olho um segundo. Virei a madrugada inteira assistindo a um noticiário que tava passando na televisão, todo em árabe. Teve até umas notícias do Brasil, mas eu tive a impressão que tavam falando mal da gente”, conta ela, sempre bem-humorada, apesar de todas as dificuldades que passou na hora da espera.

Um dos muitos lanches de aeroporto. Foto: arquivo pessoal/Fátima.

Após dezesseis horas na ponte aérea Doha-São Paulo, já em solo brasileiro, outra reviravolta: sua viagem até Belo Horizonte não aconteceria mais. “Eu estava exausta, pronta para pegar meu terceiro avião, e o atendente me disse que tinha sido cancelado! Não acreditei. Pedi pra me colocarem num hotel, mas disseram que não, porque eu vinha de voo internacional”, conta Fátima. As recomendações de quarentena não permitiam que ela tivesse contato com outras pessoas, o que significa que a companhia aérea não poderia arcar com sua hospedagem, o que seria de praxe pelo cancelamento. Felizmente ela conseguiu contato com um conhecido que morava na cidade, e mais uma vez, contou com a ajuda de locais para sobreviver às turbulências da volta.

Um amigo a buscou no aeroporto e a levou até um hotel para passar a noite, onde, antes de dormir, ela conferiu o horário do novo voo para o qual havia sido realocada: seis da manhã. “No dia seguinte, chegando no aeroporto, descobri que tinha lido o horário errado no maldito papel! Não era às seis, era às quatro. Meu avião já tinha saído, e precisei ficar mais quatorze horas no aeroporto”, conta, enfatizando a espera causada pela desatenção. Depois de muito sufoco, ela conseguiu finalmente desembarcar em BH, dando fim à jornada de quase sessenta horas — ou mais de dois dias — desde Helsinki.

Sã e salva no Brasil desde meados de abril, Fátima segue de isolamento social. Infelizmente seu estágio na Finlândia não pôde continuar virtualmente, mas ela mantém contato com os amigos internacionais até hoje. “Eu também consegui me matricular de volta em todas as matérias do meu período aqui na UFMG, então eu viajei e não atrasei em nada o meu percurso”, conta ela, que voltou em agosto a ter aulas no Ensino Remoto Emergencial (ERE).

Sobre a tão sonhada experiência do intercâmbio, Fátima diz que apesar das reviravoltas, a vivência lhe abriu os olhos para novas oportunidades internacionais no futuro. “Fico aqui pensando em algo como uma pós-graduação, ou um trabalho no exterior, quem sabe? Porque eu tive muitas experiências maravilhosas, conheci muita gente bacana, melhorei demais meu nível de inglês… Mas ainda fica aquele gostinho de quero mais, sabe?”, afirma.

Clique da Aurora Boreal, no Círculo Polar Ático. Foto: arquivo pessoal/Fátima.

*Nome fictício a pedido da entrevistada

Fontes

- Fátima*, estudante de Engenharia Civil da UFMG. Entrevista realizada em 14/07/2020.

- Setor de Mobilidade Internacional da Diretoria de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (DRI/UFMG). Acesso em 31/08/2020.

- Special Eurobarometer 386: Europeans and their languages, Comissão Europeia. Junho de 2012. Acesso em 31/08/2020.
- Página informativa da Finlândia no Portal Consular do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Acesso em 31/08/2020.
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Site oficial da Embaixada Brasileira em Helsinki. Acesso em 31/08/2020.

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Mariana Prates
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