Intercâmbio em Crise #3: Ninguém Solta a Mão de Ninguém

Empatia e apoio emocional para superar as dificuldades da pandemia na história de Yamila, intercambista argentina na UFMG

Mariana Prates
QUARANTENADA
8 min readFeb 14, 2021

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Yamila com as amizades que fez em BH. Foto: arquivo pessoal/Yamila Medero.

Ao primeiro semestre de 2020, 144 estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais estavam prestes a realizar o sonho de partir em mobilidade internacional. Segundo a Diretoria de Relações Internacionais da Universidade (DRI/UFMG), a previsão era enviar membros de sua comunidade para as Américas (Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, México, Peru e Uruguai), África (Cabo Verde), Ásia (Índia e Coréia do Sul) e Europa (Alemanha, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Itália e Portugal) — totalizando dezenove países ao redor globo.

Mapa das mobilidades internacionais da UFMG em 2020/1. Fonte: DRI/UFMG.

Baseada nos relatos desses estudantes, decidi abrir a série Intercâmbio em Crise, usando meu quadro de Ex-Pré-Intercambista para ouvir e contar as histórias daqueles que foram pegos de surpresa em meio à mobilidade. A primeira convidada foi a Verônica Toledo, estudante de Arquitetura e Urbanismo que ficou ilhada na Itália durante o ápice do Corona, e em seguida Fátima*, futura engenheira civil que precisou passar pelas Arábias em sua jornada hercúlea de volta para casa.

Ao mesmo tempo em que diversos brasileiros se encontravam no estrangeiro durante a pandemia, muitos estudantes de fora também realizavam o sonho da mobilidade aqui em Belo Horizonte, na UFMG. Entrei em contato com a Diretoria de Relações Internacionais para saber a quantidade e a origem dos intercambistas que estiveram na universidade durante o ano passado, mas até o presente momento, não obtive resposta por email nem por telefone.

Yamila no Parque Municipal, durante sua mobilidade em BH. Foto: arquivo pessoal/Yamila Medero.

Felizmente a UFMG é uma grande família unida, de forma que a gente sempre se conhece lá dentro. Consegui o contato da ex-intercambista Yamila Medero, estudante argentina de Comunicação Social da Universidade Nacional de Cuyo (UNCuyo), localizada em Mendoza, cidade aos pés dos Andes e próxima da fronteira com o Chile. Assim como Verônica e Fátima*, Yamila começou 2020 de malas prontas para realizar o sonho de uma mobilidade, mas foi pega de supetão pelas reviravoltas do Coronavírus.

Entrei em contato com a Yamila por email, espremendo todos os meus conhecimentos castelhanos, e ela me respondeu prontamente (em português!) topando a entrevista.

Foto: reprodução/Gmail.

Muito atenciosa, a Yamila se dispôs a conversar comigo sobre os sustos, as ansiedades e o grande espírito de solidariedade que encontrou em terras mineiras. Continuando o quadro de Intercâmbio em Crise, empresto a palavra para Yamila Medero, argentina que permaneceu firme e forte em seu sonho da mobilidade durante a crise do Coronavírus no Brasil.

A História de Yamila

Estudante de Comunicação Social, ênfase em Meios de Comunicação
País de origem: Argentina
Duração da mobilidade: 10 meses (fevereiro a novembro de 2020)

Rota da Yamila pela América do Sul. Fonte: reprodução/Google Maps.

Antes de pisar no Brasil, Yamila Medero (28) não sabia muito sobre Belo Horizonte: sua única referência a Minas Gerais eram as novelas brasileiras que passavam nas televisões argentinas, sobre a vida de fazendeiros no interior do país. Ainda assim, ao início de 2020, a estudante decidiu passar uma temporada na Universidade Federal de Minas Gerais, complementando seus estudos em Comunicação Social na Universidade Nacional de Cuyo (UNCuyo), na Argentina.

Cidade de Mendoza (Argentina), aos pés da pré-cordilheira dos Andes. Foto: eldesvioviajes.

A escolha pelo Brasil veio, em parte, por esse lado desconhecido: indo morar fora pela primeira vez, Yamila viu a oportunidade para sair de sua zona de conforto e conhecer uma realidade diferente daquela que estava acostumada, se vivenciando os costumes brasileiros. “Sempre que uma pessoa faz um intercâmbio, não é só pelo acadêmico. Também é pela cultura, pela paisagem e pelas pessoas do lugar pra onde ela vai”, afirma.

Além disso, um de seus avós descende de portugueses, e uma passagem pelo nosso país seria uma forma de conhecer o idioma de seus antepassados. Unindo o útil ao agradável, Yamila engatou na ideia e comparou as grades curriculares de diversas universidades brasileiras, optando finalmente pela vinda à Federal de Minas Gerais. Segundo ela, além do interesse nas disciplinas que poderia cursar no Departamento de Jornalismo, os auxílios ofertados pela DRI também facilitavam os trâmites de sua viagem, com alimentação e residência garantida por meio dos Restaurantes Universitários e do Programa de Moradia para o Estudante Internacional.

A preparação para o intercâmbio não foi fácil: medo e ansiedade são as palavras que ela usa para descrever seu estado de espírito antes do embarque. “Eu faço leitura de tarô, e antes de viajar as cartas disseram que eu teria alguma coisa a ver com a morte, ou enfermidade… Eu fiquei doida!”, lembra. O presságio das cartas, apesar de mórbido, não era falso: no dia seguinte à sua chegada em BH, Yamila bateu e quebrou o pé. Se a situação já seria tensa normalmente, imagine estando pela primeira vez longe de casa, em um país desconhecido e sem saber falar a língua dos nativos… Desesperador, não? Por sorte, o estudante da UFMG designado para ser seu padrinho também era da moradia universitária, e a acompanhou durante todo o procedimento médico para ajudar com as explicações em português.

Imagine a minha surpresa ao descobrir que Yamila chegou no Brasil sem falar uma palavra de português, depois de ouvi-la falando tão bem a nossa língua. Apesar das dificuldades iniciais, as similaridades entre os dois idiomas e a imersão na língua portuguesa durante a pandemia fizeram com que ela aprendesse nossa língua rapidamente, usando-a inclusive para se comunicar com outros argentinos.

No Carnaval de BH, ainda de muletas (fevereiro de 2020). Foto: arquivo pessoal/Yamila Medero.

Ao passo que precisava arcar com taxas de imigração na Polícia Federal, que giravam em torno de 200 reais (2.800 pesos argentinos, na conversão de 1 para 14, de fevereiro de 2020), a estudante precisou desembolsar boa parte de suas economias para a recuperação médica, o que não constava em seu planejamento financeiro. Outros intercambistas argentinos e membros da moradia, que até então não tinham qualquer tipo de intimidade com ela, se solidarizaram e se uniram para ajudá-la com as despesas. “Eles fizeram uma vaquinha pra mim. Foi uma loucura, algo muito lindo… e precisei quebrar o pé pra saber disso!”, conta, lembrando com emoção a empatia que recebeu em um momento tão difícil.

Assim como Fátima*, que sofreu uma dificuldade após a outra na Finlândia, Yamila também não teve um segundo de paz em solo brasileiro: resolvida a enfermidade, a pandemia do Coronavírus foi decretada e a UFMG suspendeu as aulas presenciais. Após tanta luta para chegar até aqui, o sonho do intercâmbio parecia despedaçado, e a argentina ficou com o psicológico totalmente abalado. “Sou a primeira da minha família a passar pela universidade, é muito importante pra mim ter estudos em outro país no meu currículo. Mas com a pandemia não tinham aulas, e o que eu ia fazer ali? Além da ansiedade, eu entrei em pânico… Não parei de chorar”, lembra.

Com as aulas brasileiras suspensas por tempo indeterminado, a UNCuyo permitiu que Yamila se matriculasse novamente em disciplinas online de seu curso, sugerindo que a estudante retornasse à Argentina. A proposta foi tentadora, e seu primeiro impulso foi voltar para a estabilidade familiar de seu país. No entanto, ela percebeu que mesmo em isolamento, os ganhos daquele intercâmbio inesperado seria imenso. “Comecei a interagir na moradia e fazer novas amizades, fazia exercícios quase todo dia, compartilhava histórias com os amigos que fiz, tocando música, fazendo colagens, poesia… Minha rotina mudou por completo! Fiquei de março a agosto brigando com a minha universidade, porque eu não ia voltar. Ia terminar o meu intercambio”, afirma.

Com outros estudantes e intercambistas em Ouro Preto. Foto: arquivo pessoal/Yamila Medero.

Por estar na moradia universitária, ela viveu frente a frente com outros estudantes da Argentina, Chile, Peru, Espanha, França, e claro, do Brasil, que passavam pelas mesmas dificuldades. Essa convivência foi indispensável para que ela se mantivesse forte durante o tempo longe de sua família e amigos de Mendoza. “A pandemia foi muito difícil, mas a gente [na moradia] deu as mãos e se acompanhou. Eu criei laços muito importantes, e agora tenho uma família aí em Minas Gerais. Não é fácil construir uma coisa assim”. Não fosse pela ajuda emocional de sua nova casa, Yamila diz que a experiência teria sido totalmente diferente. “Poderia ter sido muito triste, mas não foi. Não sei o que faria sem eles”, confidencia.

Com o atraso no calendário acadêmico da UFMG, Yamila estendeu a mobilidade até o fim do semestre, em novembro, completando dez meses no estrangeiro. De volta na Argentina, ela ainda se emociona ao falar sobre o Brasil. “Sempre que você viaja, tem um aprendizado sobre si mesmo, e isso tem muito valor. Ainda mais em pandemia. Se conhecer, saber como você é em diferentes contextos, estar aberto a si mesmo e expor as feridas, estando nu frente aos outros… Não tem comparação”, diz.

Ao fim da entrevista, questionei à ex-intercambista que conselho ela daria para a Yamila do início de 2020, que se preparava para viver todas as experiências que tinha acabado de me relatar. Após refletir, ela admite que seria confiar mais em si mesma perante as dificuldades, além de aceitar as reviravoltas que o destino nos dá. “Todo o tempo eu planejei as coisas que ia fazer, e muitas delas não saíram. Tudo é imprevisível. Agora a gente tá vivo e depois pode não tá, então viva! Aproveite cada instante, porque a vida se define a todo momento, todo segundo, dia por dia”, aconselha a argentina.

Apesar de todos os imprevistos, ela não se arrepende em nenhum momento de ter realizado o intercâmbio. Yamila afirma que morar fora como uma das experiências mais gratificantes de sua vida, e ainda pretende repetir a dose no decorrer de sua carreira acadêmica — seja novamente no Brasil ou em outro país da América do Sul.

Na Igreja da Pampulha, em BH. Foto: arquivo pessoal/Yamila Medero.

Fonte:

Yamila Medero, estudante da Universidade Nacional de Cuyo. Entrevista em 21 de janeiro de 2021.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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