Tentativas de Esgotar uma Netflix Parisiense

Comédia, problematizações e crimes “cavalheiros” pelas ruas da capital francesa, por meio do catálogo do streamings online

Mariana Prates
QUARANTENADA
9 min readFeb 11, 2021

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Capa do filme Divinas, em frente ao arco do triunfo. Fonte:

Em 1974, o escritor francês Georges Perec decidiu fazer uma experiência sociológica: sentar-se em cafés de uma mesma praça em Paris durante três dias e observar o movimento do lugar. Da experiência nasceu o livro Tentativas de Esgotar um Local Parisiense, que aborda a atmosfera da cidade sob o olhar das percepções do autor naqueles três dias de observação.

Inspirada nos feitos de Perec, decidi recriar minha versão da experiência, chamada Tentativas de Esgotar uma Paris Virtualmente. A ideia é conhecê-la ao máximo de dentro de casa, seja por meio de sua história, seus costumes ou seus últimos acontecimentos, graças às maravilhas das novas tecnologias e da globalização. Depois da viagem histórica pela Capital do Se-Vira-Nos-30, onde aprendemos sobre os antigos “pequenos empregos” ilegais que se passavam pela cidade no século XIX, decidi me embrenhar por questões mais atuais que ocorrem por lá. E por que não fazê-lo pelo cinema?

Para escarafunchar os becos estrangeiros dos catálogos da Netflix. Foto: reprodução/Whatsapp.

Dizem que a arte imita a vida. Nem sempre o lado bom dela, como vimos em O Ódio, que levou o Cannes de Melhor Filme em 1995 após escancarar a violência policial e os abusos sofridos pela população às margens da capital francesa.

Coincidentemente, após falar sobre o assunto aqui no blog, recebi a mensagem em um grupo do Whatsapp com os códigos das categorias “ocultas” da Netflix, com os quais o usuário consegue se aventurar para além dos títulos sugeridos pelo streaming. E no meio deles, um achado jornalístico: para acessar todas as produções francesas, é só buscar por 58807!

Unindo o útil ao agradável, decidi fazer uso do meu (grande) ócio em quarentena para dar uma fuçada na categoria, para conhecer as realidades vividas por diferentes camadas do povo de lá. Da experiência, abro uma nova aba na brincadeira: Tentativas de Esgotar uma Netflix Parisiense.

O catálogo francófono da plataforma. Foto: reprodução/Netflix.

Divinas (2016)

Título original: Divines
Direção:
Houda Benyamina
País de origem: França, Catar
Gênero:
crime, drama

Pôster de Divinas. Fonte: reprodução/Netflix France

Nos guetos da capital francesa, a jovem Dounia (Oulaya Amamra) sonha em subir de vida. Muçulmana e moradora de uma bidonville (favela) de Paris, ela sofre com estigmatizações diariamente e decide largar os estudos para se envolver com a traficante da região, visando alcançar status em sua comunidade.

Apesar de contar com o apoio de sua melhor amiga Maimouna (Déborah Lukumuena), também muçulmana e periférica, o caminho até o topo não será tão simples quanto Dounia esperava inicialmente. Para complicar a situação, ela se apaixona por um misterioso bailarino que conhece sem querer fora da comunidade, e precisa decidir entre sua paixão por ele ou pelo sonho de uma vida criminosa.

Meu veredito

Assim como O Ódio, Divinas é um tapa na cara daqueles que imaginam Paris como uma cidade dos sonhos, desprovida de mazelas e desigualdades sociais. Mesmo sabendo desse lado menos privilegiado da cidade, diversas cenas, como a final (não darei spoiler), conseguiram abalar todos os estereótipos cor de rosa que ainda não fui capaz de desconstruir em minha mente.

Também acho a narrativa ótima para conhecer mais sobre as muçulmanas na França. Em meio a todos os esquemas ilegais, a religião continua fortemente ligada à vida das duas amigas, e mesmo não tendo fé islâmica, me identifiquei em partes com a personagem.

Trailer de Divinas. Fonte: reprodução/YouTube

Por Toda Parte (2016)

Título original: Ils sont partout
Direção:
Yvan Attal
País de origem: França, Israel
Gênero:
Comédia

Pôster de Por Toda Parte. Fonte: reprodução/Netflix France.

Existem cerca de quatorze milhões de judeus no mundo inteiro, sendo que 500 mil deles estão em solo francês. Com um difícil passado antissemita (a deportação de judeus para a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, por exemplo), a França permanece sendo palco para episódios preconceituosos contra este povo — como o atentado terrorista ao supermercado judaico Hyper Cacher em Paris, que deixou cinco mortos e nove feridos em 9 de janeiro de 2015, dois dias após o atentado ao jornal Charlie Hebdo.

O comediante franco-israelense Yvan Attal, judeu sefardita, usou do humor para escancarar diversas situações desagradáveis que viveu por conta de sua identidade, enquanto morador do país europeu. Em uma sessão-desabafo no terapeuta, seu personagem abre palco para pequenas crônicas que narram o dia a dia de membros de sua comunidade em solo francês. Por meio da comédia, ele abrange temas como o estereótipo do judeu rico e bem-sucedido, a ascensão do neofascismo na política, a identidade étnico-cultural de seu povo e a “culpa” carregada por eles até hoje, por supostamente terem causado a morte de Jesus Cristo.

Meu veredito

Por Toda Parte me foi recomendado ao acaso pelo algoritmo da Netflix, após assistir a Nada Ortodoxa, outra trama judia. Me interessei na hora. Sou bastante curiosa sobre a cultura e fé alheias, e por já ter visto um pouco sobre uma francesa islâmica, por meio da Dounia, também quis saber sobre a realidade judaica por lá.

Me indignei com diversas cenas, especialmente aquelas que mostram como parte da sociedade (não só francesa, porém focada nesta) banaliza o extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Me incomodei ligeiramente com a crítica dada ao Cristianismo, porém, reconheço que meu incômodo não deslegitimiza o problema, sobre como muitos cristãos usam da desculpa (absurda) de que “os judeus mataram Jesus” para perpetuar ódio e atitudes antissemitas. A partir do filme, me vi interessada pela cultura do Judaísmo e busquei acompanhar obras e influencers da religião, visando me aprofundar no assunto e sair do senso comum (aproveitando a deixa, recomendo o perfil do Instagram Pergunta Pra Morá, que ensina sobre sua religião de forma não prosélita, simples e educativa).

Por fim, acredito que Por Toda Parte traga assuntos difíceis, mas o humor permeado no roteiro deixa toda a crítica mais leve de assistir. O longa deve ser ainda mais interessante de ser analisado por membros da comunidade judaica, mas mesmo àqueles fora dela, ele é um prato cheio para nos fazer refletir sobre estereótipos e julgamentos que muitos pensam ter desaparecido após os horrores do Holocausto.

Trailer de Por Toda Parte (legendas em inglês). Fonte: reprodução/YouTube.

Eu Não Sou um Homem Fácil (2018)

Título original: Je ne suis pas un homme facile
Direção:
Éléonore Pourriat
País de origem: França
Gênero:
Comédia

Pôster de Eu Não Sou um Homem Fácil. Fonte: reprodução/Netflix.

Morando em Paris, Damien (Vincent Elbaz) é um típico machistão convicto: enche a paciência das colegas de trabalho com cantadas desagradáveis, assedia estranhas na rua e não as vê as mulheres à sua volta como nada além de um escape atraente para seus desejos sexuais.

Um belo dia, Damien bate com a cabeça e acorda em um mundo invertido. O que impera nessa nova realidade é o matriarcado, onde as mulheres são privilegiadas e os homens são vistos como o “sexo frágil”. De início, Damien vê o poder e a “libertinagem” daquela sociedade femista (que, diferentemente de feminista, significa que as mulheres estão acima dos homens) como uma oportunidade de se dar bem. Logo, porém, ele começa a sofrer com a força da misandria: pressões estéticas para agradar às parceiras, subestimação de suas capacidades intelectuais, relacionamentos abusivos, assédios morais e sexuais.

Antes opressor, Damien começa a lutar por igualdade ao se ver no lugar do oprimido — e, também, a repensar suas próprias atitudes no mundo patriarcal.

Meu veredito

Eu Não Sou um Homem Fácil peca em não trazer recortes sociais ou raciais, de forma que todos os personagens são hegemonicamente franceses de classe média. Isso rende algumas problemáticas interessantes de discutir, no entanto, continuo achando a ideia de criticar o machismo pela inversão de papéis simplesmente incrível.

A maioria das mulheres que conheço adoraram o filme, não se surpreendendo por nenhuma das dificuldades sofridas por Damien no mundo femista. Do contrário, um colega me confessou ter ficado chocado (e mesmo incomodado) por ver seu gênero sendo tratado daquela forma no mundo invertido. E ainda completou: “nunca tinha parado para refletir sobre como seria passar por isso na pele”.

Ou seja, para mim, o filme cumpre bem seu papel. Recomendo fortemente.

Trailer de Eu Não Sou um Homem Fácil. Fonte: reprodução/YouTube.

Lupin (2021)

Nome original: Lupin, dans l’ombre d’Arsène
Direção:
George Kay, François Uzan
País de origem: França
Gênero:
Crime, suspense, drama

Pôster Lupin. Fonte: reprodução/Netflix France

Inspirado nas aventuras de Arsène Lupin, ladrão cavalheiro da literatura francesa, o jovem Assane Diop (Omar Sy) decide usar dos roubos “inteligentes” para se vingar de uma injustiça cometida por uma família influente de Paris.

Fazendo uso da inteligência em detrimento da violência, Assane se torna um mestre da estratégia, dos disfarces e da falsa identidade para concretizar sua vingança, frustrando os esforços da polícia para encontrar seu real paradeiro.

Meu veredito

Para mim, qualquer produção cinematográfica que conte com Omar Sy no elenco já merece a maior nota do IMDB. O filme preferido de toda minha existência é Intocáveis, no qual Sy faz o papel de um homem desempregado que acaba caindo no improvável papel de cuidador (e melhor amigo) de um aristocrata tetraplégico do bairro mais nobre de Paris, de forma que comecei Lupin sem nem saber do que se tratava.

Em menos de dez minutos do primeiro episódio, já adicionei o nome na minha lista de indicações. As engenhocas do protagonista nos lembram Sherlock Holmes, mas por se tratar do bandido, e não do mocinho, a trama se mostra ainda mais intrigante. Ao início, a narrativa parece confusa pois não sabemos de quem se trata o protagonista ou o porquê de suas ações, mas no decorrer do episódio, as peças do quebra-cabeça são reveladas lentamente, até o momento em que pensamos: meu Deus!

As cenas gravadas no Louvre e pelo centro de Paris me rendem alguns gatilhos de ex-pré-intercambista, é verdade. Mas tudo bem. Estou ao mesmo tempo ansiosa para terminar e atrasar esse momento, porque sei que, assim que chegar ao fim da primeira temporada, terei de esperar até o ano que vem para continuar assistindo às aventuras de Lupin.

Trailer de Lupin. Fonte: reprodução/YouTube

Depois de fazer uso de uma das melhores maravilhas do mundo atual, não posso deixar aproveitar do meu poder jornalístico para espalhar a palavra:

Outras categorias “ocultas” pela Netflix:

Clássicos: 31574
Clássicos de ação e aventura:
46576
Clássicos de suspense:
46588
Comédias clássicas:
31694
Dramas clássicos:
29809

Documentários: 6839
Documentários biográficos:
3652
Documentários históricos:
5349
Documentários políticos:
7018
Documentários sobre ciência e natureza:
2595

Drama: 5763
Dramas baseados em livros:
4961
Dramas baseados na vida real:
3653
Dramas biográficos:
3179
Dramas LGBTQIA+:
500

Ficção científica e fantasia: 1492
Ação, ficção científica e fantasia:
1568
Aventuras de ficção científica:
6926
Filmes de fantasia:
9744
Filmes de ficção científica:
3916

Filmes estrangeiros
Filmes africanos:
3761
Filmes alemães:
58886
Filmes asiáticos de ação:
77232
Filmes australianos:
5230
Filmes belgas:
262
Filmes britânicos:
10757
Filmes chineses:
3960
Filmes coreanos:
5685
Filmes da Europa Oriental:
5254
Filmes da Turquia:
1133133
Filmes do Oriente Médio:
5875
Filmes escandinavos:
9292
Filmes espanhóis:
58741
Filmes franceses:
58807
Filmes gregos:
61115
Filmes holandeses:
10606
Filmes indianos:
10463
Filmes irlandeses:
58750
Filmes italianos:
8221
Filmes japoneses:
10398
Filmes latino-americanos:
1613
Filmes neozelandeses: 63782
Filmes russos:
11567
Sudeste asiático:
9196

Filmes independentes: 7077
Comédias independentes:
4195
Dramas independentes:
384
Filmes experimentais:
11079
Filmes independentes de ação e aventura:
11804
Filmes românticos independentes:
9916
Thrillers independentes:
3269

Bom proveito!

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Mariana Prates
QUARANTENADA

devaneios de uma escritora em crise de (pouca) idade