“O Ódio”, a brutalidade e a crueza pelas sombras de Paris

Para além dos croissants, longa premiado em Cannes retrata a violência da polícia francesa, um lado sombrio e pouco revelado a nós sobre a Cidade Luz

Mariana Prates
QUARANTENADA
6 min readJan 29, 2021

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Vinz, Saïd e Hubert no pôster do filme O Ódio, com a arma roubada do policial. Foto: CanalPlus.

“É a história de um homem que pula de um arranha-céu. Enquanto cai, ele repete sem parar: até agora tudo bem, até agora tudo bem, até agora tudo bem. O importante não é a queda. É a aterrissagem”. — La Haine

Apesar de ser uma metrópole (e como sabemos, todas elas possuem os seus lados complicados), Paris é permeada de estereótipos simpáticos e acolhedores; baguettes aos pés da Torre Eiffel, um bom vinho à beira do Sena e habitantes sempre na última moda para se vestir.

Lançado em 1995, O Ódio (La Haine, direção de Mathieu Kassovitz) é uma marreta cinematográfica para quebrar todos esses clichês e nos mostrar um lado da Cidade Luz que permanece oculto para a maioria dos turistas: os conflitos e dificuldades sofridas pelos habitantes das banlieues, as periferias de Paris.

Trailer de O Ódio (legendas em inglês). Fonte: reprodução/YouTube

Apesar de ser um longa aclamado, eu nunca havia dado uma chance a La Haine. Não porque a história não parecesse interessante, mas pela aura cult em que foi filmada: totalmente em preto e branco, com o ritmo arrastado que conhecemos do cinema francês. Nessa quarentena, porém, querendo me embrenhar pelos lados escondidos de Paris, fucei a internet até encontrá-lo disponível na íntegra no YouTube, com legendas em inglês e, melhor ainda: em qualidade full HD.

Para mim, a palavra que melhor descreve o filme é “cru”. Ele mostra uma realidade complicada sem nenhuma lente cor de rosa, escancarando problemas que muitos brasileiros pensam estar restritos ao nosso país — a desigualdade social, o tráfico de drogas e, principalmente, a violência policial praticada pelas forças de ordem da cidade.

Vincent Cassel, Saïd Taghmaoui e Hubert Koundé no filme La Haine (1995) Foto: © Alatele fr (Creative commons — Flickr)

A história segue um dia na vida de três jovens da banlieue parisiense: Vinz, origem branca-judia (Vincent Cassel), Saïd, de origem árabe-muçulmana (Saïd Taghmaoui), e Hubert, de origem negra-africana (Hubert Koundé). Ao rondarem o bairro, vemos que estão acostumados a evitar os agentes policiais, lidar com os dealers, traficantes da região, e têm um forte senso de comunidade perante os outros jovens do local.

Semanas antes, um jovem chamado Adbel foi violentamente torturado em um interrogatório policial, e segue hospitalizado desde então. Frente ao caso, moradores se manifestaram com barricadas e depredamentos ao comissariado de polícia, e em meio à confusão, um agente perdeu a arma de fogo. Descobrimos que Vinz foi o causador do sumiço, e ele tem um plano em mente: caso Abdel não sobreviva à violência sofrida, ele vai assassinar um “porco” (gíria depreciativa para os agentes) para “conseguir o respeito” deles. Saïd e Hubert tentam alertá-lo de que seu plano não é dos melhores, mas Vinz está determinado em sua vingança.

A violência sofrida por Abdel, pontapé para toda a trama, foi inspirada em fatos reais: o caso Makomé M’Bowolé, que chocou o país em 1993. Originário da República do Zaire (atual República Democrática do Congo), M’Bowolé foi morto aos 17 anos à queima-roupa durante um interrogatório pelo inspetor Pascal Compain, após ser detido na capital francesa por suspeita de roubar um pacote de… cigarros.

Makomé foi assassinado na frente de testemunhas. No processo de Pascal Compain, dois inspetores narram a cena. Fonte: Libération, 14/02/1996.

De acordo com o inquérito, Compain apontou para o suspeito no objetivo de “assustá-lo” e conseguir logo uma confissão, pensando que a arma estava descarregada — mas não estava. Outros policiais assistiam ao interrogatório, inclusive um recruta iniciante, mas nenhum tentou desarmar o inspetor. Segundo eles, aquele tipo de intimidação era recorrente, de forma que ninguém esperava que o caso levaria à morte.

Pascal Compain foi julgado por “violência intencional resultando em morte sem a intenção de matar” e condenado a oito anos de prisão, afirmando sempre que havia cometido o crime “acidentalmente”.

Oito anos de prisão por ter “acidentalmente” assassinado Makomé. Fonte: L’Humanité, 16/02/1996.

Além de inspirar o caso de Abdul, o homicídio de Makomé M’Bowolé também foi base para outras cenas do filme. Em determinado momento da trama, os três jovens são abordados pela polícia em um bairro nobre, acusados de “perturbarem” a ordem local. Ironicamente, enquanto Vinz (branco, que trazia consigo a arma roubada e pretendia cometer homicídio) consegue fugir da batida, seus amigos (não-brancos, que tentavam convencê-lo a não cometer sua vingança) são levados ao comissariado, onde sofrem com agressões por parte de dois agentes, que “ensinam” a prática para um recruta como se estivessem em sala de aula.

Cena do interrogatório de Saïd e Hubert pelos policiais parisienses. Foto: Moviestore/Rex/Shutterstock

Apesar de ter completado quinze anos de lançamento em 2020, O Ódio continua atual: a corregedoria da Polícia Nacional francesa contabilizou 19 cidadãos mortos e 117 feridos por violência policial em 2019, uma alta de 10% nas mortes e 26% nos feridos desde o ano anterior.

Em comparação com o Brasil, os números parecem baixos. De acordo com o Monitor da Violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo menos 5.804 civis brasileiros foram assassinados pela polícia em 2019, um crescimento de 1,5% desde 2018. Relacionando ao número de habitantes, encontramos 0,00002% dos cidadãos assassinados pela polícia na França (70 milhões habitantes) contra 0,002% no Brasil (210 milhões de habitantes), ou seja, taxa cem vezes maior do que a dos franceses.

Ainda assim, a violência policial permanece um problema tanto aqui, quanto lá. A repercussão de La Haine trouxe o debate para outros núcleos da sociedade francesa, que por privilégios sociais, financeiros e/ou raciais, não conviviam diariamente com a questão.

Hubert Koundé, Saïd Taghmaoudi (Hubert e Saïd), Mathieu Kassovitz (diretor) e Vincent Cassel (Vinz) durante o Festival de Cannes, em maio de 1995. Foto: Gérard Fouet / AFP

O longa recebeu o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cannes de 1995, sendo elogiado pela crítica especializada e aplaudido de pé pela plateia. Os únicos que não se sentiram agraciados foram os policiais que cuidavam da segurança da cerimônia, que deram as costas durante a entrega do prêmio como forma de protesto à visão bruta e violenta que o filme trouxe de sua categoria.

Além da polícia descontente, o diretor Mathieu Kassovitz foi acusado por habitantes da periferia de ser um bourgeois-bohème (“burguês-boêmio”, o mauricinho dos franceses) que se apropriou de sua realidade para o filme, sem ser habitante das banlieues. E que, mesmo tentando desconstruir preconceitos e criticar o racismo em seu roteiro, deu mais desenvolvimento e foco no personagem de Vinz, que pode ser judeu, mas continua branco.

Apesar das críticas, O Ódio permanece como uma obra que vale a pena ser analisada. Em meio à brutalidade sofrida nas regiões menos iluminadas pelos holofotes da Cidade Luz, ele mostra um lado que segue oculto para os estrangeiros, se consagrando como um triste porém fidedigno retrato da sociedade francesa — e, querendo ou não, da nossa também.

‘O Ódio’: 25 anos depois, homenagem a Makomé M’Bowolé, zairense assassinado por violência policial, reportagem relembrando o caso na ocasião do 25º aniversário do longa. Fonte: Congo Na Paris, 07/02/2021.

Fontes:

Huit ans de prison pour avoir «accidentellement» tué Makomé (“Oito anos de prisão por ter matado “acidentalmente Makomé”). Cathy Capvert, L’Humanité. 16/02/1996. Acesso em 22/01/2020.

La police des polices a été chargée en 2019 d’un nombre inédit d’enquêtes judiciaires (“Polícia acusada de um número sem precedentes de investigações em 2019”). Le Monde com Agence France Presse. 08/06/2020. Acesso em 23/01/2020.

Les 20 choses que vous ne saviez (peut-être) pas sur La Haine (“20 coisas que você (talvez) não saiba sobre La Haine”). Noé Termine, Enlarge Your Paris, 05/08/2020. Acesso em 22/01/2020.

Makomé a été tué devant témoins. Au procès de Pascal Compain, deux inspecteurs ont raconté la scène (“Makomé foi assassinado na frente de testemunhas. No julgamento de Pascal Compain, dois inspetores relatam a cena”). Patricia Tourancheau, La Libération, 04/02/1996. Acesso em 23/01/2020.

Número de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil em 2019; assassinatos de policiais caem pela metade. Clara Velasco, Felipe Grandin e Thiago Reis, G1, 16/04/2020. Acesso em 24/01/2020.

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Mariana Prates
QUARANTENADA

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