Existe neutralidade no design?

Questões sobre ética e a prática do design de forma responsável direto da F8 — Facebook Developers Conference

Leandro Novaes
QuintoAndar Design

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“O futuro é privado”. Foi com essa frase que Mark Zuckerberg iniciou a palestra de abertura da F8 2019, uma conferência do Facebook sobre o futuro da tecnologia, voltada para desenvolvedores, criadores e empreendedores.

Estive no F8 este ano representando o time de design de produto do QuintoAndar e conto pra vocês como foi. 😉

Privacidade foi, provavelmente, a palavra mais dita durante as keynotes e palestras da F8. E não é por acaso. Em 2018 a empresa ficou marcada por uma série de polêmicas envolvendo o vazamento de dados de milhões de usuários e manipulação de informações para campanhas de marketing político. Como consequência, a rede social desvalorizou bilhões na bolsa de valores em apenas algumas horas. Além disso, Mark Zuckerberg depôs para o Senado americano e respondeu, dentre outras coisas, a questões sobre regulação e uso de informações de usuários.

Desde então, um dos maiores objetivos do Facebook é construir uma plataforma social mais centrada em privacidade, dando espaço para as pessoas se expressarem, se sentirem conectadas com indivíduos e comunidades que importam pra elas. O desafio é desenvolver mecanismos para que uma quantidade imensa de dados seja usada para o bem.

Durante a F8 2019 a empresa anunciou uma nova versão do Facebook, a reconstrução do Messenger, novos recursos para o WhatsApp e Instagram, novos óculos de realidade virtual, entre outras coisas. Eu não pretendo falar sobre nada disso. Na verdade, a ideia é contar um pouco sobre um tópico que chamou a minha atenção e esteve presente em algumas das palestras do evento: a necessidade de praticar design de forma responsável, independentemente se você projeta para uma pessoa ou para 2 bilhões de pessoas, como o Facebook.

Não existe design neutro

A forma como as pessoas interagem com os produtos que criamos é essencial para entender a relação entre pessoas e inovação.

Desbloqueie seu celular. Você provavelmente estará olhando para algumas das maiores plataformas de comunicação criadas. Estes produtos permitiram dar voz a pessoas que nunca foram ouvidas por outros canais, evidenciando todos os eventos que acontecem no mundo, sejam eles bons ou ruins. O alcance que essas plataformas adquiriram requer um grande senso de responsabilidade, de forma que façamos as decisões mais éticas possíveis, todos os dias.

Margaret Stewart é VP de Product Design e falou sobre a responsabilidade que designers têm em projetar interfaces e o impacto que elas podem causar na vida das pessoas.

Design é uma ferramenta de persuasão incrivelmente poderosa. Toda vez que projetamos uma interface ou funcionalidade para um produto estamos tomando decisões em nome dos usuários. Intencionalmente ou não, essas decisões refletem os nossos valores e afetam diretamente a vida de pessoas. Nas palavras da Margaret:

“Não existe design neutro. A crença que temos no Facebook de que todos devem ter voz e acesso a ferramentas que permitam ampliar essa voz não é uma posição neutra; ela é carregada de valores. Esses valores acarretam em consequências em escala que precisam ser gerenciadas com o máximo de cuidado.”
— Margaret Stewart (tradução livre)

Margaret Stewart falando no palco da F8 2019 sobre neutralidade no design

Praticar design de forma responsável é muito mais do que ligar a “chavinha da responsabilidade” e começar a trabalhar. Significa ser intencional na tomada de decisões, entender e antecipar o impacto que elas possam ter na vida das pessoas, com uma visão ampla dos contextos sociais e políticos nos quais nossos produtos estão inseridos.

Os três exemplos a seguir mostram algumas das questões com as quais é necessário ter cautela ao desenhar produtos e como produtos podem afetar a vida de pessoas.

1. Combatendo desinformação

Por serem apelativas emocionalmente e reforçarem crenças ou ideais políticos, as fake news tem um forte efeito viral, o que dificulta que medidas sejam tomadas previamente. Aplicativos como o Facebook e WhatsApp acabaram sendo alguns dos principais responsáveis por facilitar a disseminação de desinformação nos últimos anos, inclusive no Brasil.

Não é a toa que esse assunto é tão importante para o Facebook. A propagação de fake news podem causar danos irreparáveis à instituições, fortalecer preconceitos, fomentar teorias da conspiração, influenciar processos políticos, criar falsos ídolos e ferir a democracia.

Ao mesmo tempo, não é fácil reduzir o dano causado por desinformação sem acabar ferindo a liberdade de expressão. Pensando nisso, pesquisadores do Facebook conduziram pesquisas ao redor do mundo para entender o fenômeno e descobriram que as pessoas querem decidir por elas mesmas quando uma informação é verossímil ou não.

Como exemplo de como um produto tem combatido fake news, para todos os artigos que aparecem no feed de notícias do Facebook é mostrado um botão que fornece contexto sobre aquela informação: quem postou originalmente, há quanto tempo foi publicado, outros artigos da mesma fonte, um mapa de onde o artigo está sendo compartilhado e estatísticas a respeito dele. O objetivo é dar o máximo de informações possíveis para que as pessoas questionem o quanto aquela notícia é confiável.

Funcionalidade que exibe a autoria de notícias postadas no feed do aplicativo do Facebook

2. Relacionando redes sociais e bem-estar

Moira Burke é cientista de dados e mostrou como pesquisadores do Facebook vêm estudando a relação do uso da plataforma com sintomas de bem-estar, mais especificamente como o uso do produto afeta estes sete indicadores de bem-estar: satisfação com a vida, bom e mau humor, apoio social, estresse, depressão e solidão.

Milhares de usuários ao redor do mundo responderam uma série de questionários mês a mês num estudo para entender como a sensação de bem-estar mudava em relação ao uso do Facebook.

Com a pesquisa foi possível observar um aumento no mau humor de pessoas que leem mais de 50 postagens de conhecidos por dia. Quando essas pessoas não só liam, mas também interagiam com estes conhecidos o índice de mau humor não sofria alterações significativas, o sentimento de apoio social aumentava e o de solidão diminuía. Uma mudança mais considerável foi observada quando a interação dos usuários se dava com amigos próximos ao invés de apenas conhecidos, os indicadores de satisfação com a vida, bom humor e apoio social aumentam enquanto o sentimento de solidão diminuía.

Moira Burke apresentando uma pesquisa sobre como o uso de aplicativos afeta indicadores de bem-estar

Com base nos resultados deste e de outros estudos foram estabelecidas algumas boas práticas, como o encorajamento de interações ao invés do simples consumo desenfreado, comunicação um a um entre pessoas — em especial com amigos próximos — e interações que exigem mais esforço, como despender tempo pessoalmente ao invés de tempo em redes sociais.

Pode parecer hipocrisia quando estamos falando de produtos que lucram justamente por meio do engajamento dos usuários, mas empresas como Google, Apple e o próprio Facebook têm começado a investir em ferramentas para gerenciar o tempo de uso de aplicativos. Essas ferramentas deixam mais claras as informações sobre a frequência de uso por aplicativo, notificações e até o número de vezes que você desbloqueia o smartphone. Apesar de muito inicial e ainda sem resultados visíveis, é o começo de uma conversa importante sobre como smartphones estão dominando as nossas vidas.

3. Utilizando dados para fazer o bem

Após um desastre natural acontecer, organizações humanitárias precisam saber o quanto antes onde estão localizadas as pessoas afetadas e que tipo de recursos elas precisam. Este tipo de informação é difícil de ser coletado com assertividade por meio de de métodos tradicionais e é justamente aí que grandes empresas de tecnologia podem contribuir, preenchendo essas lacunas de informação.

Em 2018, desastres naturais afetaram 61.7 milhões de pessoas globalmente. Paige Maas, cientista de dados, mostrou como o Facebook tem gerado dados para criar mapas que ajudam organizações humanitárias a dar apoio para comunidades que se recuperam de desastres.

Produtos como o Facebook possuem um número abundante de informações de uso do aplicativo. Todo esse poder de dados pode ser usado para impactar pessoas que têm a sensação de que estão recebendo propagandas sobre coisas que elas apenas falaram com amigos ou parentes (eu sei que vocês estão me escutando), mas também para endereçar problemas sociais e humanitários.

Paige Maas mostrou como o Disaster Maps identificou um aumento de 503% de pessoas se movimentando da cidade de Paradise para Chico (ambas na California), após um incêndio em 2018

O Disaster Maps é um conjunto de mapas que fornecem informações sobre onde as pessoas foram afetadas por desastres naturais, compartilhando as informações com mais de 30 organizações parceiras. Os mapas são gerados com base no uso, de forma anônima, de informações de localização de usuários, deslocamento, densidade populacional, cobertura de dados e até disponibilidade de bateria.

As inundações em março de 2017 no Peru são um exemplo de uso do Disaster Maps, onde foi possível mapear mudanças nos comportamentos de usuário do Facebook e mostrar onde as pessoas estavam localizadas, para onde elas estavam fugindo e onde elas estavam em segurança.

Os exemplos da F8 mostram como empresas e produtos podem impactar a vida das pessoas, tanto positivamente quanto negativamente, não importa se você trabalha no Facebook ou numa pequena startup.

A verdade é que é muito mais confortável desenhar alguns pixels para alguns usuários do que pensar num ecossistema projetado para uma comunidade. Também é fácil fazer design utilizando técnicas para melhorar conversão, ao invés de projetar boas experiências para as pessoas. O difícil acaba sendo incluir discussões éticas, equilibrá-las com necessidades de negócio e pensar em como o poder informacional que temos hoje pode ser usado para o bem.

Como indústria, precisamos nos preocupar com o que estamos criando, mesmo que as empresas para as quais trabalhemos não exijam isso. Costumamos empregar métodos como o “Como poderíamos”, mas talvez devêssemos também estar nos perguntando “Nós deveríamos?”.

Como designers, precisamos estar em alerta para a responsabilidade de garantir que a tecnologia seja usada a serviço das pessoas.

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Leandro Novaes
QuintoAndar Design

Staff Product Designer @ Delivery Hero. Writing stories about the journey of being a designer. // linkedin.com/in/leandronovaes