Intenções e responsabilidades de um design mais maduro: reflexões sobre o WIAD 2020

O design amadureceu como disciplina, e isso é bom — mas como esse amadurecimento pode aparecer nos nossos trabalhos, carreiras e construção do futuro?

Otávio Vidal
QuintoAndar Design
8 min readMar 4, 2020

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Foto de uma palestrante falando ao microfone em cima do palco, em frente a um auditório lotado.
Edição de São Paulo do WIAD 2020 teve casa cheia. Foto: Yago Farias.

Quando o Robson Santos encerrou a edição de São Paulo do World Information Architecture Day 2020 trazendo um pouco sobre o passado do design — de como, de certa forma, o UX Design é uma repaginação léxica do trabalho de outrora — , pensei ter finalmente achado o fio condutor que permeava todas as palestras: o amadurecimento do design como disciplina.

Através de questões relevantes que abordaram diversidade, viés e responsabilidade, as pessoas palestrantes trouxeram olhares críticos sobre a posição do design em um mundo cuja materialização de interfaces através de telas gráficas não é mais o foco da discussão.

Mas antes, pesquisa

Como um bom processo de design, pesquisas são a melhor forma de começar a compreensão de um problema.

A sempre precisa Izabela de Fátima, autora do podcast Movimento UX, trouxe alguns achados do Panorama UX 2020 sobre o mercado de Pesquisadores de UX no Brasil.

Separei dois deles que, de certa forma, começam a ilustrar um cenário sobre intenções e responsabilidades do design.

Surgimento de líderes em Pesquisa de UX

Com pessoas se tornando líderes em Pesquisa de UX, equipes de produto parecem estar expandindo suas especialidades para além da tradicional separação entre UX Designers e UI Designers.

Isso mostra o reconhecimento da disciplina pelas empresas através do investimento em especialidades focadas em aprofundar o aspecto humano nas suas organizações.

Ainda somos movidos por funcionalidades?

O fato da Izabela ter destacado a baixa presença de pesquisas de diário de uso nas respostas me fez pensar em como pesquisas de UX podem ser, muitas vezes, presas ao escopo de uma funcionalidade — um recorte do produto.

Eu vejo que isso é uma grande oportunidade: o design de produtos digitais pode assumir um papel cada vez mais estratégico através de trabalhos holísticos e horizontais, olhando não só para o recorte de uma entrega segmentada.

Já é um ótimo passo quando fazemos processos de descoberta ou validação através de pesquisas sobre um problema, mas o design pode ser muito mais: influenciar (e até guiar) as direções de um produto.

Izabela de Fátima, palestrante. Foto: Robson da Silva.

Sobre algoritmos e linguagem

Também baseado no Panorama UX 2020, a Carolina Leslie falou da percepção e relação de profissionais de design com inteligências artificiais.

Ela trouxe alguns casos recentes que me fizeram pensar em como o design ainda tem dificuldade em penetrar camadas mais estratégicas na projeção dessas tecnologias, como é o caso de algoritmos:

Essas tecnologias carregam os vieses das estruturas onde são desenvolvidas, geralmente empresas masculinas e brancas, e o design ainda não atua de maneira intencional nas camadas de decisão de suas regras.

Foto de uma mulher falando ao microfone em frente a um telão.
Carolina Leslie, palestrante. Foto: Robson da Silva.

Depois, ela fechou com um caso recente em que o Google, que antes trazia gênero no reconhecimento facial do seu aplicativo de fotos, decidiu parar de fazer isso e passou a rotular seus usuários apenas como pessoas. Segundo a própria empresa:

“Como o gênero de uma pessoa não pode ser inferido pela aparência, decidimos remover esses rótulos para nos alinharmos aos Princípios de Inteligência Artificial do Google, especificamente ao Princípio 2: ‘Evite criar ou reforçar preconceitos injustos’.”

Foi inevitável conectar isso com algumas iniciativas da equipe de design no QuintoAndar. Em março de 2019, eu fiz uma apresentação no nosso evento interno, Design Talks, contando sobre como poderíamos projetar produtos com maior inclusividade de gênero através da linguagem.

Uma das premissas era assumir que não saberíamos o gênero da pessoa com a qual a interface conversava e, por isso, o uso de flexões masculinas criava um produto androcêntrico.

Uma das maneiras de contornar isso era diminuindo o uso de adjetivos com flexões de gênero e substituindo por substantivos universais, passando a chamar inquilinos de pessoas. Assim como o Google.

À esquerda, e-mail diz “Aumenta suas chances de ser aprovado”. À direita, texto muda para “Aumente suas chances de aprovação”
Imagem da minha apresentação sobre Linguagem para além do gênero, de março de 2019.

Mais tarde, a Caroline Linhares, UX Writer aqui no QuintoAndar, fez um guia de boas práticas de escrita para a equipe de design com uma seção dedicada à inclusividade de gênero na linguagem.

Página de um artigo com o título “Linguagem inclusiva”, acompanhado de um emoji de arco-íris.
Imagem do nosso Guia de Boas Práticas de Escrita, feito pela Caroline Linhares.

Ainda não conseguimos projetar produtos não-androcêntricos, mas a disciplina parece já se preocupar com isso em camadas diferentes, de linguagem a algoritmos.

O desafio é estar lá desde a concepção, e não somente na auditoria.

(Não?) me faça pensar

Simplificar a complexidade em uma era hiperinformativa foi outro tópico recorrente em algumas palestras.

O Diego Rezende discorreu sobre o distanciamento da sociedade de interfaces gráficas em uma palestra sobre um mundo sem interfaces.

Pra falar disso, ele trouxe o conceito da informação ubíqua e pervasiva nessa era da hiperinformação: você não quer saber sobre os assuntos da tendência, mas acaba sabendo — querendo ou não. É neste mundo, bombardeado por informações, em que estamos projetando.

Foto de uma pessoa falando ao microfone e fazendo gesto com a mão em direção a plateia.
Diego Rezende, palestrante. Foto: Robson da Silva.

Já o Emerson Niide trouxe uma ótica diferente sobre o mesmo cenário, que acabou complementando a reflexão do Diego: podemos simplificar as interações através de camadas invisíveis.

Para ilustrar isso, ele mostrou algo que você já deve ter experienciado mas nem percebeu: vocabulário controlado.

Quando você erra o nome de uma música ao buscá-la no Spotify, ele mostra o resultado correto e faz isso de maneira invisível, sem intervenções textuais como “você quis dizer” ou “tente este resultado”.

Ele mostrou uma pessoa buscando por “Time of Your Life”, música do Green Day, que na verdade chama “Good Riddance” e é exibida pelo aplicativo mesmo assim.

Nota do autor, fã de Green Day: o título completo da canção é “Good Riddance (Time Of Your Life)”.

Assim, em um meio com tantas informações — você já parou pra pensar quantos títulos de canções já teve contato na vida? — simplificamos a interação das pessoas com esse conjunto de coisas sem que elas pensem sobre isso.

Fazer com que usuários não pensem não seria uma reflexão nova na nossa profissão — o clássico Não me faça pensar, de Steve Krug, praticamente o primeiro livro de todos os designers da minha geração, já tem longos 20 anos.

Mas a visão que o Emerson trouxe é de que simplificar não significa desonerar as pessoas de qualquer cognição, e sim saber quando temos que fazê-las pensar:

“A simplicidade consiste em subtrair o óbvio e acrescentar o significativo.”

John Maeda, autor de “As leis da simplicidade”

Precisamos continuar simplificando interfaces para pessoas não terem que pensar que dois botões com estilizações diferentes têm a mesma função. Isso é o óbvio da nossa profissão.

Mas precisamos ter a responsabilidade de fazer com que elas pensem em questões relevantes, como aceites de termos obscuros e usos de dados pessoais. Isso é o significativo em uma era hiperinformativa, quando não podemos nos utilizar da mesma subtração do óbvio.

Homem falando ao microfone olhando para a sua direita.
Emerson Niide, palestrante. Foto: Robson da Silva.

Papel do design em contextos complexos

Em todos esses pontos que falei nesse texto — algoritmos, linguagem, inteligência artificial, hiperinformação — , é o design que constrói a ponte entre esses artefatos e seres humanos.

A Tamires Trindade (designer de produto) e a Paula Guedes (analista de negócios), aqui do QuintoAndar, contaram um pouco sobre a evolução do nosso atendimento através de chatbots, mostrando como o design pode humanizar tecnologias — principalmente conversacionais— através de processos orientados a pessoas.

Elas mostraram o passado do nosso chatbot, que foi concebido em estruturas centralizadas e pouco escaláveis, e sua evolução através de trabalhos de pesquisa, priorização e prototipação, que permitiu a construção de uma ferramenta que compreende melhor pessoas.

Elas vão fazer um texto em breve sobre o assunto, então não vou dar muito spoiler por aqui. 😉

Duas mulheres sentadas, sorrindo e olhando em direção à câmera.
Paula Guedes e Tamires Trindade, palestrantes do QuintoAndar. Foto: Robson da Silva.

Já a Lidiana Domingues e o Ricardo Sato, do Nubank, trouxeram a perspectiva da humanização no design através de uma cultura organizacional.

A Lidiana falou de como guias de escrita podem ser ferramentas poderosas para multiplicar esse tipo de cultura na projeção de produtos digitais de maneira escalável e controlável.

Depois, o Leonardo Lima e o Pedro Balboni, da Mutant, também trouxeram a sua visão da humanização através de jornadas conversacionais em URAs (Unidade de Resposta Audível).

Ricardo Sato e Lidiana Domingues, palestrantes. Foto: Robson da Silva.

Em meio a bits, somos átomos

Para encerrar o arco do design como ferramenta humanizadora, o Robson Santos falou sobre aspectos da própria existência humana em ambientes cada vez mais orientados a bits digitais.

Robson Santos, palestrante. Foto: Robson da Silva.

Especulando sobre um futuro não muito distante através de ficções científicas, geralmente distópicas e dramáticas, ele trouxe uma visão otimista que, por muitas vezes, é ignorada em filmes e livros: somos humanos e, muito provavelmente, vamos continuar humanos, com as mesmas necessidades de sobrevivência e perpetuação da espécie.

Falando em exemplos práticos, ele citou uma experiência de compra. Se, por um lado, ainda temos as tradicionais feiras brasileiras, onde tudo é baseado em interações humanas, por outro já temos iniciativas que trazem o digital ao físico, como a Amazon Go Grocery, que retira o “atrito humano” (como dito pelo Robson) e o substitui por interações digitais no meio físico.

Vídeo institucional sobre o Amazon Go Grocery.

O difícil para nós, designers do agora, é que vivemos em um período de transição, com os dois cenários acontecendo simultaneamente. Seria muito mais fácil viver no passado em que o primeiro cenário prevalecia ou em um futuro onde o segundo já é o comum, e não uma inovação.

O lado bom é que podemos participar da definição deste futuro.

Este artigo é uma visão pessoal baseada nas palestras apresentadas na edição de São Paulo do World Information Architecture Day 2020 e pode não representar a opinião dos palestrantes citados.

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Otávio Vidal
QuintoAndar Design

Senior Product Designer working with design systems at Delivery Hero in Berlin. Previously at Hopper and QuintoAndar.