As mudanças na governança do YouTube em função da pandemia

Gregório Fonseca
R-EST
Published in
8 min readJun 17, 2020
Imagem de Engin Akyurt por Pixabay

As informações relacionadas à pandemia de COVID-19 ocuparam as plataformas que utilizamos e, dado o distanciamento social que praticamos para conter o espalhamento do vírus Sars-CoV-2, o ambiente digital passou a ter um papel ainda mais importante para a comunicação das pessoas. Mas, assim como informações de qualidade são disseminadas, a desinformação também passa por esses ambientes. No presente texto, busco explorar como o YouTube se adaptou (e continua se adaptando) à disseminação de desinformação tanto em atualização de políticas e diretrizes quanto em moderação de conteúdo.

O YouTube historicamente apresenta um posicionamento de limitação de responsabilidade em relação ao conteúdo distribuído na plataforma. O trecho a seguir é reproduzido a partir do documento de Termos de Serviço que rege a plataforma e detalha essa postura:

“Limitação de responsabilidade

EXCETO SE EXIGIDO PELA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL, O YOUTUBE, SUAS AFILIADAS, DIRETORES, CONSELHEIROS, FUNCIONÁRIOS E AGENTES NÃO SERÃO RESPONSÁVEIS POR LUCROS CESSANTES, RECEITAS, OPORTUNIDADES DE NEGÓCIOS, FUNDOS DE COMÉRCIO OU ECONOMIAS ANTECIPADAS; PERDA OU CORRUPÇÃO DE DADOS; PERDA INDIRETA OU CONSEQUENTE; DANOS PUNITIVOS CAUSADOS POR:

(…)

6. QUALQUER CONTEÚDO ENVIADO PELO YOUTUBE OU POR UM USUÁRIO, INCLUINDO O USO QUE VOCÊ FAZ DO CONTEÚDO” (YOUTUBE, 2019)

Em suma, a plataforma não se responsabiliza pelos danos que possam vir a serem causados pelo conteúdo que nela circula. O trecho reproduzido acima está vigente desde dezembro de 2019 e seu conteúdo é semelhante ao publicado em 2018.

Embora os termos de uso buscam eximir a empresa de responsabilidade, notam-se esforços de se manter o ambiente do YouTube com conteúdo confiável. A pandemia de COVID-19 exigiu respostas rápidas dado o potencial de graves consequências que um conteúdo desinformativo pode gerar.

Há pelo menos 20 atualizações registradas na página “Atualizações sobre o coronavírus 2019 (COVID-19)” do YouTube entre 11 de março e 20 de maio de 2020, o que equivale a uma atualização a cada intervalo de pouco mais de três dias. É uma frequência de atualização muito significativa, que reflete bem a necessidade de adaptação ao momento da pandemia. A seguir, destaco os principais aspectos onde o YouTube apresentou mudanças.

Monetização

Imagem de Frantisek Krejci por Pixabay

A primeira grande mudança foi a desmonetização dos vídeos que tratavam de assuntos ligados à pandemia, cujo início foi registrado em 04 de março de 2020, conforme essa reportagem do The Verge narra. De acordo com a mesma reportagem, o YouTube classificou a pandemia como um “evento sensível” para efeitos de desmonetização. Assim, a partir das Diretrizes de conteúdo adequado para publicidade, a qual a pandemia se encaixou na categoria de “assuntos polêmicos e eventos delicados”, mesmo com o fato do termo “pandemia” não ter disso citado nominalmente, e os vídeos relacionados foram desmonetizados.

Em 11 de março de 2020, o YouTube divulgou uma longa carta sobre a atuação da plataforma nos eventos recentes e passou a manter a página Atualizações sobre o coronavírus 2019 (COVID-19) com informações sobre a atuação da plataforma durante a pandemia. Inicialmente, o conteúdo relacionado ao coronavírus passou a ser monetizado apenas em uma lista restrita de canais, que incluía “parceiros de notícias” e criadores de conteúdo que utilizam corretamente as ferramentas de autocertificação. Vale ressaltar que o YouTube ainda não liberou a autocertificação para todos os criadores: de acordo com a plataforma, eles terão acesso ao recuso por fases. Ao utilizá-lo, os criadores podem classificar os seus vídeos de acordo com as diretrizes para conteúdo adequado para publicidade manualmente, podendo habilitar a monetização para vídeos novos e antigos. Embora esse processo acelere a monetização do conteúdo, ainda assim ele passa por sistemas automatizados que podem rever a classificação dada pelo criador.

Esse critério de monetização foi incluído nas diretrizes da plataforma no 16 de março, com as seguintes recomendações aos criadores: “faça uma checagem de fatos, leve em conta que esse evento é uma crise global em andamento e siga as diretrizes da comunidade e de conteúdo adequado para a publicidade”.

A necessidade de uma classificação manual para os vídeos de criadores de conteúdo está alinhada com a decisão do Google de reduzir temporariamente o número de moderadores humanos de conteúdo em função da pandemia. O impacto imediato dessa redução é o aumento da moderação feita por sistemas automatizados. Dentro desse contexto, a fim de evitar classificações errôneas que pudessem monetizar um conteúdo desinformativo, a plataforma priorizou a autocertificação realizada por criadores de conteúdo selecionados.

A restrição de monetização durou até o dia 2 de abril de 2020, momento em que todos os criadores de conteúdo puderam monetizar seus canais com conteúdo sobre a COVID-19 (desde que o conteúdo estivesse de acordo com as diretrizes de conteúdo para publicidade citadas anteriormente). Como exemplos de conteúdo que não seguem as políticas, o YouTube listou na página Atualização sobre a monetização no conteúdo relacionado à COVID-19 os tópicos “filmagens angustiantes”, “desinformação médica” e “pegadinhas e desafios”, deixando claro que a listagem é incompleta e representa apenas alguns exemplos.

Desinformação médica

Imagem de Ирина Ирина por Pixabay

Em um primeiro momento, o YouTube baseou-se na Política de conteúdo perigoso ou nocivo para remover o conteúdo com desinformação médica. Essa política restringe a presença de qualquer conteúdo que promova curas ou remédios perigosos. É uma definição muito ampla, pois exige uma análise técnica para decidir se um tratamento é adequado ou não. É muito frequente encontrarmos no YouTube vídeos de tratamentos alternativos sem eficácia comprovada, curandeirismo ou mesmo homeopatia, uma prática que apesar de regulamentada, não tem evidências científicas robustas. Para a COVID-19, no entanto, a plataforma parece ter tomado uma postura mais ativa.

Em 20 de maio de 2020, o YouTube criou a Política de informações médicas incorretas relacionadas à COVID-19, que define de uma forma mais clara o que é considerado desinformação pela plataforma. De acordo com o YouTube, “não é permitido o envio de conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou as informações médicas das autoridades locais de saúde sobre a COVID-19. Isso se aplica apenas a conteúdo que contradiz as orientações da OMS e das autoridades locais de saúde sobre: tratamento; prevenção; diagnóstico; transmissão.”

Entre as informações incorretas mencionadas pelo YouTube, podemos exemplificar:

· Declarações de que há uma vacina garantida para a COVID-19;

· Afirmações de que um tratamento ou remédio específico é uma cura garantida para a COVID-19;

· Incentivos para que as pessoas tomem remédios caseiros em vez de procurar tratamento médico quando estiverem doentes;

· Afirmações de que a COVID-19 é causada pela radiação das redes 5G;

· Alegações de que não há propagação do vírus em países com clima quente.

Ao definir explicitamente o que está sendo tratado como desinformação pela plataforma, é muito mais simples remover os vídeos que estejam em desacordo com as políticas do YouTube. Há relatos de que a remoção tem ocorrido, como no caso em que um canal alegava que o coronavírus é uma farsa ou nos vídeos que associavam a COVID-19 à antenas 5G. É uma postura ativa que tem dado resultado de forma parcial. Apesar de haver relatos de remoção de vídeos, há vários casos que conseguem contornar a estratégia da plataforma, como detalhado na reportagem do The Intercept que mostra canais que apresentação desinformação sobre a pandemia, mas que continuam sendo monetizados. Uma das estratégias utilizadas é a de não usar palavras-cheve relativas à COVID-19, contornando assim critérios de desmonetização.

Dessa forma, a desinformação continua circulando no YouTube. Em matéria da MIT Technology Review, Abby Ohlheiser narra outro exemplo: a trajetória de youtubers conspiracionistas que, mesmo tendo vídeos removidos da plataforma, conseguem visibilidade participando de collabs com outros canais e alcançando milhões de visualizações com desinformação médica.

Recomendações de pesquisa

O YouTube também mudou a forma de apresentar seus resultados de pesquisa em buscas relacionadas às COVID-19. Como detalhado no artigo sobre pesquisas sobre “vacina” que escrevi previamente aqui no R-EST, vídeos recentes produzidos por instituições jornalísticas tradicionais como “TV Cultura” e “Rede Record” tem sido priorizados nos resultados de busca. Além disso, o YouTube mostra diferentes blocos de vídeos nos resultados das buscas, em adição à usual lista de vídeos mais relevantes.

O bloco “Principais notícias” apresenta resultados de fontes jornalísticas publicados recentemente. São vídeos que podem ficar datados em um curto intervalo de tempo, mas são importantes no momento da publicação. Já o bloco “Aprenda enquanto está em casa” mostra vídeos de caráter educativo com informações sobre o assunto pesquisado (e a mensagem implícita incentivando as pessoas a ficarem em casa).

Detalhe da tela de resultados de busca do YouTube onde as principais notícias são destacadas

Os vídeos que se relacionam com a pandemia estão trazendo um quadro (reproduzido a seguir) que direciona para informações do Ministério da Saúde sobre a pandemia. É uma forma da plataforma recomendar para seus usuários informações verificadas e consideradas corretas, mesmo que para isso tenha que fazer com que eles saiam do YouTube.

Aviso presente nos vídeos do YouTube com conteúdo sobre COVID-19

Reflexões finais

Imagem de Aneta Esz por Pixabay

De acordo com os termos de uso da plataforma, o YouTube não teria responsabilidade sobre o conteúdo que circula na plataforma. No entanto, as ações tomadas nas últimas semanas bem como as mudanças nas políticas e diretrizes indicam uma atuação mais proativa da plataforma sobre o conteúdo nela publicado, por exemplo ao priorizar informações que não contradigam as divulgadas pela OMS e por autoridades de saúde.

Naturalmente, ainda há desinformação circulando, mas ao menos os algoritmos de busca e recomendação parecem limitar a disseminação desse tipo de conteúdo. É importante, mas insuficiente: vídeos desinformativos frequentemente miram uma audiência externa ao YouTube e têm seus links divulgados em outras plataformas. Dessa forma, por mais que eles escapem das recomendações do YouTube, a audiência é conquistada por outros meios.

Em um artigo recente publicado pelo YouTube, eles apontam que cerca de 1% do conteúdo assistido no site pode ser considerado desinformação. Proporcionalmente é um número baixo mas, para uma plataforma que alcança dois bilhões de usuários mensais (de acordo com o Statista), isso pode significar um alcance de milhões de pessoas. Um artigo publicado por Li et al. (2020) identificou que 27,5% dos vídeos mais vistos sobre COVID-19 em língua inglesa continham desinformação. Por mais que a amostra utilizada pelos pesquisadores seja pequena (apenas 69) vídeos, ela evidencia que conteúdo indevido continua figurando entre os vídeos mais vistos, mesmo com toda a atuação do YouTube nas recomendações e remoções de material.

Lidar com a desinformação é um desafio que se mostra especialmente importante quando vidas estão em jogo, tanto para os usuários quanto para a plataforma. Vale ressaltar que existem outras plataformas como o WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram, entre outras, onde a desinformação pode circular — além do fato de que os ambientes de disseminação de desinformação não se restringem apenas às plataformas de mídias sociais. Ainda que haja problemas, a postura do YouTube, por se mostrar atuante e alinhada às recomendações da Organização Mundial de Saúde e de autoridades da área, possivelmente terá um impacto positivo no enfrentamento da pandemia pela sociedade.

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Gregório Fonseca
R-EST
Writer for

Feito 50% ciências exatas e a outra parte de ciências humanas. Doutorando em Comunicação (UFMG), Mestre em engenharia (ITA).