A cultura de sexualização de meninas e mulheres é uma ameaça à nossa saúde mental

Ninka
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8 min readMay 15, 2022

Combater o status quo e demandar mais da mídia que consumimos é apenas uma parte de como reagir diante de uma crise que coloca em risco a saúde mental de meninas e mulheres, principalmente as jovens dessa geração. Uma outra parte é nos responsabilizarmos, e também as pessoas que conhecemos, para que comecemos uma mudança real no mundo ao nosso redor.

Lá atrás, em 2008, a Associação de Psicologia Americana publicou um relatório intitulado “A Sexualização de Meninas”. Eles defenderam que o bombardeio de imagens altamente sexualizadas pela mídia e cultura pop criou e nutre uma crise de saúde mental, evidenciada pelas taxas crescentes de depressão, baixa autoestima e transtornos alimentares em mulheres e meninas cada vez mais jovens.

As formas de mídia que essa pesquisa analisou foram desde a televisão, clipes de música, a revistas, vídeo games, sites populares na internet, filmes, e até mesmo letras de música. Pra levar as coisas ainda mais adiante, os pesquisadores também analisaram os produtos que são vendidos e destinados às mulheres — particularmente, para as mais jovens.

Ligue a televisão e você verá meninas de até mesmo 5 anos de idade produzidas com produtos de beleza desde sprays de bronzeamento a uma maquiagem pesada em programas de televisão como o concurso de beleza da TLC, chamado “Toddlers and Tiaras” (em tradução livre, algo como “Bebês e Tiaras”). Ao mesmo tempo, folheie qualquer revista e você poderá encontrar imagens de mulheres adultas posando sensualmente com os cabelos presos em estilo ‘maria chiquinha’, olhos bem abertos e uma inocência infantilizada e fingida. Mulheres estão ouvindo constantemente que precisam se esforçar para parecerem mais jovens / mais magras / mais sensuais no decorrer de sua vida. Ao mesmo tempo, a pressão sobre a aparência e sobre como outras pessoas te veem têm afetado meninas cada vez mais novas. A mensagem de “ser apenas você mesma não é o suficiente” gera lucro aos anunciantes, que fazem dinheiro ao instigar dúvidas sobre si mesmas e seus corpos em mulheres e meninas.

“Temos uma evidência ampla para concluir que a sexualização tem efeitos negativos em uma variedade de áreas da vida, incluindo as funções cognitivas, saúde física e mental, e um desenvolvimento sexual saudável”, disse Dr. Eileen, líder da força tarefa da APA.

Bom, faz mais de uma década desde que esse estudo foi publicado. Desde então, as mulheres não apenas têm experimentado ainda mais sexualização, mas foram expostas a ainda mais novos meios de influência para que essas tendências cheguem até elas, principalmente com a relevância crescente das redes sociais.

Obter o corpo perfeito aos olhos da cultura da sociedade é uma batalha muito mais comumente perdida do que ganha (alguém alguma vez ganha?). Mas parece que espaços como as mídias sociais ignoram esse fato unicamente para promover aquelas que de alguma forma chegaram perto dessa “perfeição”, ou supostos meios para chegar nela.

O documentário “America the Beautiful III: The Sexualization of Our Youth” (ou “América a Bela III: A Sexualização de nossos jovens”, em tradução livre), questiona radicalmente as imagens altamente sexualizadas da mídia que consumimos cotidianamente e como ela afeta a infância. Mas o quão profundamente esse tipo de conteúdo permanente ao redor de meninas prejudica seu crescimento?

No decorrer do artigo, vamos dar uma olhada na questão que envolve a sexualização feminina, e o que deve ser feito sobre ela.

As estatísticas são alarmantes:

  • Estatisticamente, é muito mais provável para uma mulher do que para um homem desenvolver um transtorno alimentar. De fato, é estimado que de todos que desenvolvem um transtorno alimentar, ao menos 85% são mulheres;²
  • 95% das pessoas lidando com transtornos alimentares estão na faixa dos 12 aos 25 anos;³
  • Pesquisas encontraram que 91% das mulheres jovens estão insatisfeitas com seus corpos e tentaram algum tipo de dieta em prol de conseguirem o “corpo perfeito”. Essa porcentagem cai para faixas etárias mais velhas, mas permanece acima dos 50%.⁴

A forma com que as mulheres são comumente representadas em clipes de música, filmes e comerciais não é apenas extremamente desrespeitosa e sexista, de um ponto de vista sociológico: ela é a raiz de muitas crises de saúde mental, de um ponto de vista médico. Quando nós, como sociedade, idolatramos e endorsamos a imagem da mulher hipersexualizada, estamos em última análise colocando as mulheres reais mais e mais em uma posição onde elas estarão em luta constante por suas saúdes mentais.

Debochando de nossa Inocência

O “feminismo”, pelos padrões de hoje, para muitos é nada mais e nada menos que um profundo deboche aos problemas reais que as mulheres enfrentam. É a glorificação da exploração sexual sob o disfarce de algum tipo de “empoderamento” inespecífico para as mulheres. Esse “feminismo” (ou, pra ser mais exata, uma versão diluída e esvaziada dele), se tornou nada mais do que uma “marca” para estrelas pop e publicitários explorarem para ganhos financeiros em sua lógica de mercado e fama. Ao transformar a palavra “feminismo” em um nicho de mercado, eles redefinem a auto-objetificação, que coopta o velho e conhecido “olhar masculino” (em inglês, o conceito de male gaze), o mantém inabalado e desvirtuosamente vendem essa auto-objetificação como uma forma de “empoderamento” — como se ela pudesse ser algo benéfico para as mulheres e para seu lugar na sociedade, dando-as algum tipo de poder real. Mesmo quando nos deparamos com publicidades que parecem conter a doce mensagem de “poder feminino” e nenhum tipo óbvio de sexismo, não podemos esquecer que menos de 5% dos executivos de criação de publicidade são mulheres. Não é muito diferente entre os produtores na indústria musical.

Em um artigo recente do site Salon, Emily Alford descreve habilmente essa dinâmica contraditória de publicidade durante a Semana Publicitária de Nova Iorque. Ela enfatizou o moto publicitário da marca “Under Armor”, “I Will what I Want” (algo como, “Eu Vou o que Quero”, em t.l.), que apresentava a famosa bailarina Misty Copeland. Alford escreve, “No final do comercial, a audiência gritava: pelo “femvertising” (ou publicidade feminina), pela Copeland, e por um comercial que acerta quando o assunto é “mulheres”, não importa que o time criativo foi formado por 56 pessoas, apenas 11 delas mulheres, e era, em essência, um bando de homens dizendo a mulheres o que eles acham que as mulheres provavelmente querem ouvir e ganhando dinheiro com isso”.

Muitas mulheres ouvem, e frequentemente até mesmo de outras mulheres, que tomar o controle sob si mesma significa tomar controle sobre seu corpo. Apesar de que isso possa ser verdade de algumas formas, a mensagem é esvaziada quando resumimos o corpo à aparência, à desejabilidade e à sensualidade, e ignora os poderes reais que uma mulher possui: é um insulto à capacidade de mulheres de ter controle sobre sua própria mente e espírito, sobre seu próprio pensamento e racionalidade, e contemplar um valor inerente a si e que não depende de nenhum tipo de visão ou validação externa.

A segunda onda do feminismo, pré-cooptação pela lógica de mercado, e quando “feminismo” era um termo que descrevia um movimento sócio-político não individualista, mas coletivista, parecia ver a sexualização de mulheres de forma distinta ao “feminismo” popular de hoje. O feminismo costumava ser profundamente anti a lógica da hiperssexualização feminina e especificamente, era profundamente antipornografia. O que mudou?

Em uma entrevista com o Entertainment Tonight, Geena Davis, atriz e chefe do instituto americano de Gênero na Mídia, também foi ouvida. Uma das coisas mais poderosas sobre seu instituto é seu mote, “Se elas veem, elas podem ser”, significando que meninas jovens veem os produtos da mídia em combinação com o mundo ao seu redor para decidir o que elas vão aspirar ser.

Parafraseando Davis, se podemos mudar o que as meninas veem desde bem jovens, podemos mudar o que elas sentirão sobre si mesmas mais tarde na vida. E ao contrário, se elas apenas veem que até mesmo as mulheres de maior sucesso e poder social ainda precisam ser sexualizadas para progredir ou serem vistas ou valorizadas, o que você acha que elas farão? Esse link aqui te dá uma dica.

Com o documentário eu espero gerar mais conversas sinceras sobre essa crise, especialmente conversas entre pais e filhos. Os adultos precisam ativamente enfatizar para as meninas e meninos jovens em sua casa e comunidade que a aparência não é o centro de seu valor como seres humanos.

Precisamos urgentemente ensinar meninos e meninas a questionarem a mídia que eles consomem. Como adultos, nós também precisamos passar a questionar seriamente o tipo de mídia que iremos endossar e que tipo de exemplos e mensagens elas estão colocando no mundo.

Combater o status quo e demandar mais da mídia que consumimos é apenas uma parte de como reagir diante de uma crise que coloca em risco a saúde mental de meninas e mulheres, principalmente as jovens dessa geração. Uma outra parte é nos responsabilizarmos, e também as pessoas que conhecemos, para que comecemos uma mudança real no mundo ao nosso redor.

A verdade infeliz é que os meios midiáticos empurram sua agenda o mais longe possível. Apenas pare um pouco para ver e refletir sobre os mais recentes clipes musicais, filmes e até mesmo comerciais. As mulheres são mantidas em um padrão puramente baseado em suas características físicas e atratividade para o olhar masculino, e isso é vendido a todo momento, em todos os ambientes, e para todas as idades.

E, ao focar apenas no seu corpo e na visão alheia, uma mulher irá passar a ignorar a essência de si mesma. Como resultado, isso a leva a um número elevado dos mais variados danos psicológicos.

O que as mulheres podem fazer?

É muito fácil apontar dedos e determinar culpados quando falamos desse dilema, que está longe de ser recente. Uma das tarefas mais difíceis é descobrir o que as mulheres deveriam fazer para ganhar essa luta.

Acredito que o primeiro passo, em última análise, é ressignificar o que passamos a entender pela palavra “empoderamento”. O que dá poder a uma mulher? Ou, melhor ainda, o que dá poder para todas as mulheres? Perceber que empoderamento é um conceito social e coletivo, e que não está ligado à nossa aparência ou desejabilidade a um olhar previamente estabelecido, por mais que a mensagem dominante ainda seja o contrário, e busque de toda forma se revestir de “progresso”. Encorajar meninas e mulheres a se colocarem dentro de uma esfera de ação onde podem alcançar um poder real, para elas e para todas.

O segundo passo é colocar esse encorajamento na prática.

É verdade que a sociedade deseja nos forçar a engolir a sexualização feminina, seja de uma forma ou de outra. Mas nos recursarmos a ouvir e nos focarmos em nossas habilidade mentais, espirituais, políticas e sociais é muito mais “empoderador” do que possa parecer.

Não existe um passo a passo de como fazer essa mudança acontecer. No final, estamos cada uma em uma posição onde precisamos descobrir o poder real em nossa natureza e no nosso eu social. Experimentar ideias e desenvolver e aplicar nossos talentos, nunca nos esquecendo de praticar o respeito por si mesma e o amor próprio.

Referências:

American Psychological Association: Sexualization of Girls is Linked to Common Mental Health Problems in Girls and Women

² HHS Public Access: Gender Difference in the Prevalence of Eating Disorder Symptoms

³ ANAD: Eating Disorder Statistics

⁴ HHS Public Access: Body Image in Adult Women: Moving Beyond the Younger Years

Tradução livre de [1] e [2].
❤ Nina Cenni .

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Ninka
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Cursando PhD em Física. Lutando contra a exploração e violência sexual evidente e inerente à pornografia, prostituição e tráfico humano nas horas vagas.