“Pornô Ético”: Uma Cortina de Fumaça para Uma Indústria Exploradora.
Alerta de gatilho. Informamos que esse texto pode conter linguagem que pode ser considerada ofensiva e que menciona abuso sexual, incesto, sexo com menores e violência contra mulheres.
Aqui está uma pergunta que já me foi feita muitas vezes:
“Eu acho difícil desafiar a existência da pornografia agora que vemos tantos vídeos de pornô amadores, criados por pessoas em casa (onde obviamente existe consentimento, não existe coerção, etc). Além disso, com sites de ‘pornô ético’ ganhando popularidade e os produtores do material utilizando a hashtag ‘#sexpositivity’ (‘positividade sexual’), e com os movimentos anti ‘slut-shaming’ que promovem o seu conteúdo, eu acho difícil saber como responder. Eu adoraria saber seu posicionamento sobre como discutir esses assuntos”.
Abaixo eu mostro cinco formas de desafiar essa narrativa, e criar um diálogo significativo que critica a cultura da pornografia:
1.
Sempre haverá uma porcentagem de pessoas que se engaja na criação própria de pornografia. E, se eles genuinamente querem um número desconhecido de estranhos se masturbando com suas atividades privadas, então que seja. Com isso dito, um número significativo de mulheres se sentem pressionadas por seus parceiros a filmar seus encontros sexuais, mesmo que o conteúdo possa parecer a princípio ser amoroso e consensual. Outras são vítimas de filmagens e compartilhamentos de momentos íntimos de forma não consentida, e podem ter seus encontros privados distribuídos como pornografia de vingança.
Algumas vezes esses vídeos são vendidos a quem pagar mais, a sites de conteúdo pornográfico, ou outros grupos predatórios. Vale a pena assistir a história da atriz Mischa Barton, que foi vítima de pornografia de vingança, para entender melhor esse assunto.
Precisamos criar uma conversa sobre o papel que a indústria pornográfica tem de normalizar a pornografia, o voyeurismo, comportamentos predatórios e a noção de direito sexual sobre o corpo alheio. Nós precisamos nos perguntar quem está no volante da pornografia caseira e de criação própria (uma dica: principalmente homens). Enquanto, em um primeiro olhar, o consentimento na pornografia caseira pode parecer ser óbvio, esse não é sempre o caso. Para os usuários desse tipo de conteúdo (ou de qualquer pornografia), um comentário observado nas mídias sociais aptamente resume a história e é um excelente ponto de discussão:
“A pornografia está nos tornando ‘voyeurs’ de outras vidas, ao invés de mestres de nossa própria.”
(N.D.T: Voyeurs — uma pessoa que tem prazer sexual de assistir outras enquanto estão nuas ou participando de atividades sexuais. )
2.
Da próxima vez que alguém argumentar em defesa da “pornografia ética”, peça que eles expliquem o que pornografia ética significa, porque na indústria pornográfica, a única diferença entre pornô ético e pornô popular e mainstream é que os consumidores pagam por ela e portanto ela é “ética”. No exemplo do ManyVids, de acordo com sua conta no Twitter, o seu desejo é transformar a indústria adulta em um porto seguro que promove positividade sexual e o tratamento justo dos atores/atrizes. Tentando entender isso, o que significa ser um “porto seguro”? o que é “tratamento justo”? Pelos títulos de seus vídeos, é muito claro que não existe ali porto seguro ou tratamento justo a não ser que você defina isso em termos de ganho monetário. A seguir estão alguns exemplos de vídeos que eles vendem:
- “Chupando pau com gozo jorrado na cara & tetas” — totalmente e apenas focado no prazer masculino, mas, de alguma forma, isso é “tratamento justo”.
- “Primeira vez da Mavi e torta de creme SURPRESA” — “primeira vez” é tomar uma virgem de pornografia como se ela fosse um troféu ou prêmio a se conquistar; “supresa” é outra maneira de dizer que ela não estava esperando por aquilo, não pediu por aquilo ou consentiu com aquilo.
- “Secretária ganha primeiro BBC do chefe” — O texto promocional diz que ela está no trabalho e quer uma promoção de cargo, mas é encontrada se masturbando para um BBC (‘big black cock’ ou ‘pau grande e negro’) em seu laptop de trabalho. Ela diz, “eu realmente, REALMENTE não quero ser despedida
- … Então ao invés de uma entrevista … você decide me fazer um grande favor ao me dar o primeiro ‘BBC”! Você me diz que se eu fizer um bom trabalho f*dendo com você então eu conseguirei o emprego!!!”. Todo o movimento #MeToo está nadando em histórias sobre homens chantageando mulheres sexualmente, e sobre ameaças de que se elas se recusassem elas não manteriam seus empregos/ganhariam uma promoção no trabalho/“mereceriam” um aumento, etc.
- “Twerk de uma garota da escola”, “Garota adolescente recebe um BBC no estilo cachorrinho” ou “Garota adolescente sexy f’d pau grande” são alguns títulos de vídeos que promovem sexo com menores. “Mamãe vai consertar”, “Avaliação genuína de uma madrasta sobre paus” e “Meias irmãs excitadas” são só alguns exemplos de promoção de incesto à venda. E então, claro, existe o sexo com menores e incesto combinados em vídeos como “CRUSH DO PADRASTO eu f’d melhor que a mamãe?”, “Me dobre no meio papai” e “Babando com o pau suculento do papai”.
- “Vadias irritantes vão precisar de fralda”, “Puta submissa é f’dida com força” e “Cadáver bonito” são exemplos bem claros de quão abomináveis os conteúdos desses assim-chamados sites de pornografia “ética” podem ser.
É importante saber que sites como o ManyVids são tão dirigidos para o lucro e abusivos como qualquer outro site de pornografia popular ou hardcore. Enquanto eles podem incentivar os criadores caseiros de conteúdo pornográfico a fazer upload dos seus vídeos, “ético” para eles significa que as pessoas estão pagando e sendo pagas pela pornografia. “Porto seguro” ou “tratamento justo” contém significado zero a não ser o reembolso monetário para os criadores, e lucro para os donos do website.
E seria impossível discutir o conceito de ética no sentido de como ele se relaciona com a pornografia, sem se fazer a pergunta de se a demanda por pornografia como um todo contribui para uma demanda por tráfico sexual ao redor do mundo. De acordo com o Stop Trafficking Demand (Pare a Demanda pelo Tráfico”, t.l.), muitas atrizes profissionais na pornografia são traficadas em um ambiente hostil de exploração sexual, trabalho forçado e abuso físico; as vítimas do tráfico humano são obrigadas a produzir pornografia; e a pornografia é usada como uma ferramenta para treinar as vítimas. E adição a isso, a pornografia, seja ela qual for, gera e alimenta a demanda, com os usuários frequentemente procurando experimentar aquilo que eles viram nos vídeos.
É irresponsável fazer a afirmativa que a pornografia “ética” neutraliza ou está livre de contribuir para a demanda do tráfico sexual.
3.
Positividade sexual é um termo que essencialmente está significando “não corte o barato de ninguém… nunca”. É uma abordagem ‘anti-envergonhamento’ que diz simplesmente que, contanto que seja consensual e prazeroso, está tudo certo. Parece completamente razoável, mas no final das contas esse termo é raramente criticado com um entendimento sobre como a indústria pornográfica já normalizou fetiches, sexo violento, abuso, degradação etc. Questionar qualquer coisa a respeito da pornografia é frequentemente relevado como negatividade sexual, e isso independente dos leveis de abuso, trauma e exploração que a indústria como um todo alimenta.
Quando a palavra da “positividade sexual” é espalhada, raramente existe ali uma margem para criticar como a cultura da pornografia já doutrinou as pessoas, principalmente em relação à pressão para engajar no ato, ou sobre como as mulheres sentem como se elas tivessem que falar “sim” porque elas já foram condicionadas a aceitarem sem questionamentos conteúdos e práticas abusivas.
Talvez poderíamos iniciar uma conversa sobre a diferença entre ‘positividade sexual’, como ela é entendida hoje, e uma abordagem positiva sobre saúde sexual e bem estar individual e social. Quando separamos as coisas, essas são duas estruturas que se tornaram duas coisas muito diferentes.
“A pornografia está agora tão profundamente embutida na sociedade que ela se tornou um sinônimo de sexo, até um ponto tal que criticar a pornografia é levar um tapa com o rótulo de ‘anti-sexo’.. Mas e se você for uma feminista que é pró-sexo no real sentido da palavra, pró essa força maravilhosa, divertida, e deliciosamente criativa que banha o corpo em prazer e deleite, e o que você realmente é, é contra o ‘sexo’ da pornografia? Um tipo de ‘sexo’ rebaixado, desumanizado, previsível e genérico, um tipo de ‘sexo’ que não é baseado em fantasias individuais, brincadeiras, imaginação, mas um que é o resultado de um produto industrial criado por aqueles que se excitam não por contato físico, mas por penetração mercantilizada e lucro? Onde, então, você se encaixa perante a dicotomia pró e anti-sexo, quando no imaginário popular pró-pornô equivale a pró-sexo?”
— Gail Dines, em “Pornland: How Porn Has Hijacked Our Sexuality”.
4.
Embora o ‘pornô feminista’ não fizesse parte da parte da pergunta inicial, ele está fadado a ser introduzido na conversa e, portanto, vale acrescentá-lo na discussão. “Pornografia feminista” é supostamente balanceada em poder e criada por mulheres para mulheres. Um entendimento mais amplo é necessário aqui sobre a diferença entre o feminismo radical e o feminismo liberal, duas vertentes do movimento feminista, que é melhor entendida ao se assistir a palestra de Gail Dines sobre Neo-liberalismo e a Debilitação do Feminismo. Em termos simples, o feminismo radical luta pelo fim da opressão de todas as mulheres, e argumenta que visualizar mulheres como objetos sexuais é desumanizante e ataca seu valor como seres humanos; enquanto o feminismo liberal argumenta que “contanto que eu esteja feliz com as minhas escolhas, os outros não importam, porque a minha escolha é ‘empoderadora’, e portanto eu sou uma feminista”.
Aqui estão três coisas que podem ser ditas sobre “pornô feminista”:
- Muitas das práticas da indústria utilizadas pelas produtoras “feministas” são muito similares às práticas da indústria mainstream, incluindo as motivações dirigidas para o lucro. Joanna Angel, que se auto descreve como uma pornógrafa feminista, foi reportada dizendo, “Você pode fazer um vídeo pornô onde a mulher está sendo engasgada, onde batem e cospem nela, onde o homem está a chamando de vagabunda imunda e esse tipo de coisa e… isso ainda pode ser feminista enquanto todos estiverem em controle sobre o que estão fazendo.”
- E então há a pergunta de quem quer a pornografia feminista. O neurocientista, pesquisador e author de “A Billion Wicked Thoughts”, Ogi Ogas, argumenta: “O que é fascinante é que as mulheres comumente promovem a ideia de pornografia feminista e socialmente quer acreditar nela. As ativistas argumentam que precisamos de mais dela, mulheres a defendem em público e eu vejo mulheres começando sites eróticos toda hora. Mas, no final das contas, isso simplesmente não é o que elas estão interessadas em ver”. O artigo de onde essa colocação foi retirada apresenta o argumento alternativo de defesa das produtoras ‘feministas’ — no caso, se refere ao ponto 1 acima. E, bem relacionado com qual tipo de pornografia as mulheres assistem, é importante entender como o principal veículo de pornografia online, o PornHub, inclina os dados para implicar que as mulheres de alguma forma estariam ‘dirigindo a demanda’ por atos sexuais brutais.
- O “pornô feminista” não impedirá ninguém de assistir pornografia popular hardcore. O cérebro simplesmente possui a tendência de querer mais. Incontáveis pessoas reportam que começam a utilizar imagens ‘benignas’, então a sua curiosidade é atiçada, procuram por mais, tornam-se normalizadas e condicionadas à conteúdo mais duro, e então por fim acabam por se tornarem extremamente atraídas a conteúdo extremo, fetichista, e, às vezes, ilegal. (O escalonamento do hábito de assistir pornografia, que leva a pessoa a procurar por material mais diverso e cada vez mais extremo é bem descrito no texto “O Mestre da Escravidão”, traduzido pela página n.d.t.). Sim, existem aqueles que não querem mais, mas a trajetória por desejar conteúdo cada vez mais violento e extremo é demasiadamente comum.
O que parece que é pornografia feminista é o argumento que as pessoas utilizam quando ninguém realmente quer falar sobre quão degradante a pornografia mainstream é, mesmo que a pornografia hardcore e abusiva represente a vasta maioria do que está disponível. A ideia é que, de alguma forma, se mais pornô ‘feminista’ estivesse disponível, as pessoas diligentemente iriam procurar e pagar pelo “bom material” ao invés do gratuito “material ruim”.
A pergunta que se levante é qual a quantidade de “pornografia feminista” necessária para contrabalancear a “pornografia hardcore”? Onde a linha termina com um, antes que ele alimente-se do outro como um ciclo sem fim de uma exploração dirigida pela indústria? Pornografia feminista é um argumento falacioso.
5.
E, finalmente, embora isso possa vir como uma surpresa, millenials que NÃO gostam de pornografia EXISTEM, e citam razões como, “eu simplesmente estou mais interessado em pessoas do que em pixels”. Imagine isso! Conexões humanas autênticas, sem se debruçar sobre experiências alheias para se excitar. Essa sim é uma conversa que vale muito à pena ter.
Sim, pessoas assistem pornografia e justificam seu uso de pornografia, e fazem milhares de diferentes argumentos sobre porque está tudo bem com isso. Algumas pessoas argumentam que se nós apontarmos o óbvio, então estamos envergonhando pessoas pelo seu uso de pornografia. De outro lado, quanta humilhação uma mulher pode aguentar em troca de um orgasmo? O “É pessoal” é agora uma questão de saúde muito pública, que negativamente impacta milhões — e, desproporcionalmente, mulheres e crianças. Esse fato por si só é toda a motivação que deveríamos ter para nos recusar a aceitar “a pornografia como a norma”, e educar para criar uma futura revolução cultural que valoriza as mulheres como iguais, coloca a segurança das crianças e bem estar social no centro, e torna a pornografia desagradável.
As palavras de Robert Jensen nos providencia um alerta assombroso:
“Pornografia é com o que o fim do mundo se parece.”
As pesquisas nos mostram que mulheres jovens que consomem pornografia estão sobre um risco maior de se tornarem vítimas de assédio sexual ou violência sexual, que que mais de 80% dos homens que consomem esse material de engaja em um ou mais comportamentos sexuais violentos (puxar cabelo, espancar, morder, prender, fisting, e penetração dupla). Se a pornografia continuar a ser a voz dominante formando nossa nova geração, Jensen pode estar certo. Mantenham a conversa acontecendo até que tenhamos um vislumbre da mudança.
~De Liz Walker, Diretora de Educação Sexual, Culture Reframed .
—
Texto traduzido livremente por mim. ❤ Nina Cenni.
Link para o texto original.