O Viramundo

Bruno Oliveira
Reflexões
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3 min readMay 13, 2021

O “toma lá, dá cá” parece ser a sina da política brasileira. Os ocupantes do cargo parece se dar sempre por quem é “astuto, mau e ladrão” — as vezes mais forte em uma dessas vertentes, mas quase sempre com as três bem aparentes (como no atual ocupante do cargo). Ainda que tenha uns que pareçam menos isso, como talvez tenha sido o caso de Dilma Roussef, há de sempre aparecer uma outra figura por trás, em nome da governabilidade, pra não me deixar mentir. Ou melhor, pra não deixar mentir a música Viramundo, de Gilberto Gil. Que é um acalanto de que tudo pode mudar. Ou virar!

Gilberto Gil — Viramundo (1968)

Não que eu seja um grande interprete das letras da nossa MPB, mas tem algo nessa música que me toca. Talvez isso já aconteça no primeiro verso, “Sou viramundo virado”. Viramundo é o grilhão de ferro utilizado para imobilizar os escravos — virá-lo seria ressignifcar um objeto de tortura e sofrimento como sendo algo que traga liberdade. Se o viramundo prende; eu vou ser o virado, aquele que liberta.

Quantos dias chuvosos já não parei me pensando assim? Aquele garoto que sempre pensou em mudar o mundo agora fica discutindo investimentos, rótulos de vinhos e outras armadilhas do Grand Monde (parafraseando Cazuza) — as “rondas da maravilha”. Talvez toda uma geração se reconheça: e pensar que a nossa geração de sexo, drogas e rock’n roll praticamente elegeu um cara que é totalmente o oposto de tudo o que cantaram e dançaram nos anos 90. Não conseguimos virar o viramundo, fomos virados por ele.

Sou viramundo virado / Nas rondas da maravilha
Cortando a faca e facão / Os desatinos da vida
Gritando para assustar / A coragem da inimiga

Imagem: Viramundo

Sair da vida para entrar na história é algo do passado. Diferente de Vargas, o viramundo virado quer fazer história ainda em vida. Ninguém se liberta sozinho, todos se libertam em comunhão. E a luta pela liberdade é uma verdadeira guerrilha, e por isso essa música é ainda mais atual nos tempos de hoje. É um estímulo a lutarmos contra as intrigas, não nos prender aquilo que afasta a nossa virada. Aqui me identifico toda vez que enxergo “a vida como inimiga”, quando vem aquela vontade de jogar tudo para o alto e deixar pra lá.

Pulando pra não ser preso / Pelas cadeias da intriga
Prefiro ter toda a vida / A vida como inimiga
A ter na morte da vida / Minha sorte decidida

Virar é um verbo muito presente em quem tenta se transformar e transformar a dura realidade em que vive. Nesse caso “virar” torna-se sinônimo de “lutar”. Principalmente em tempos de chumbo. Transformar as intrigas em diversão, missão e sobrevivência: a “festa, trabalho e pão”. Mas cá entre nós, quando a música evoca o “mundo do sertão” eu me perco em meus botões e reflito sobre a minha bolha e o quanto eu estou longe dessa realidade, o quanto eu estou longe desse mundo. Por isso a virada tem que acontecer de mãos dadas, com dialogo e empatia com as diferentes realidades deste mundo. Todas tem que virar de uma vez.

Sou viramundo virado / Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo / Em festa, trabalho e pão

E aí que não só o viramundo será virado. Viraremos o próprio mundo. E quem virou este mundo primeiro, aqueles que são “astuto, mau e ladrão” ainda irá ver este mundo voltar a ser livre, sem grilhões.

Virado será o mundo / E viramundo verão
O virador deste mundo / Astuto, mau e ladrão
Ser virado pelo mundo / Que virou com certidão

A músico do Gil é um hino da revolução. Mas também de quem está cansado com o que estamos vivendo. É a promessa de que o mundo pode ser transformado, de que a virada pode acontecer. Essa música é ainda mais atual, talvez por Gil ter escrito ela em épocas de ditadura. Uma realidade não tão distante. E a mensagem é essa, a de que “AINDA viro este mundo”. Não aconteceu mas a esperança nos fará chegar lá.

Ainda viro este mundo / Em festa, trabalho e pão

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Bruno Oliveira
Reflexões

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.