O virtual, o real e o atual — como é viver numa sociedade virtual (baseado em Pierre Lévy)
Um resumo dos conceitos de virtualização de Pierre Lévy.
“O virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual” . Virtual vem do virtus latim , que significa força, potencial, o que pode vir a ser. O virtual é uma extensão natural do real, e é basicamente uma transformação daquilo que é atual em algo potencial. Confuso! Mas vamos tentar entender esse conceito, porque a ideia de virtualização para Lévy é realmente ampla (e interessante).
Oposições
O primeiro ponto a entender são os antônimos. Lévy toma emprestado uma distinção entre possível e real, feita por Deleuze em “ Diferença e Repetição ”. O possível tem todas as características do real, mas de forma latente. Para que ocorra uma passagem possível ou real, basta efetivar sua existência. “ O possível é exatamente como o real: a falta de presença […] A diferença entre o possível e o real é, portanto, puramente lógico” . Um edifício pode ter sua distinção de um edifício real apenas um fato deste último existir e outro não. “ Cada entidade carrega e produz suas virtualidades […] Uma atualização é criação, criação de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades”.
O processo de atualização leva a mudanças irreversíveis, ou a virtualização leva apenas as possibilidades. Nesse sentido, o oposto do real seria possível , e sobraria para o virtual ser oposto do atual . Essa diferenciação parece banal, mas é fundamental para entender o que realmente é a virtualização que estamos falando nesse texto (e na obra de Lévy).
Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como um problema complexo, o nó de tendências ou forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e um processo de resolução: uma atualização. Esse complexo problema é criado e está incluído uma das maiores dimensões. O problema da semente, por exemplo, é criar uma árvore - Lévy
Realidade Virtual
Realidade virtual seria, então, um “ambiente digital gerado por um computador que pode ser experimentado de forma interativa como se esse ambiente fosse real”— Jason Jerald. Considerando o “real” como sendo físico e tridimensional, como a nossa realidade.
É, antes de tudo, uma mídia, um meio de comunicação.
Quando não intermediada (isto é, não se utiliza mídia), a comunicação normalmente é direta de forma estrutural (física do mundo, interações com elementos do ambiente) ou visceral (linguagem da emoção ou do comportamento primal). A linguagem intermediada é sempre indireta, e os desafios de linguagem, como a usada na realidade virtual, é de sempre tentar causar a ilusão de não intermediação, isto é, como se o usuário estivesse realmente presente/imerso naquela realidade.
Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma platitude inicial, este ato de rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço do sentido não preexiste à leitura. É ao percorrê-lo, ao cartografá-lo que o fabricamos, que o atualizamos. — Lévy
Lévy considera o processo de formação do virtual algo que leva em conta o processo de significar, que consiste no seguinte: (i) gramatização, que é a separação em elementos não significantes que podem ser recombinados de maneiras infinitas; (ii) dialética que consiste nas substituições que podem ser feitas entre as coisas; (iii) retórica como o elemento que propriamente cria o virtual, pois gera a liberdade, o vácuo, desterritorializando uma entidade.
Gramática, dialética e retórica sucedem-se apenas numa ordem lógica de exposição. Nos processos concretos de virtualização, são simultâneas, ou mesmo puxadas pela retórica. A gramática separa elementos e organiza sequências. A dialética faz funcionar substituições e correspondências. A retórica separa seus objetos de toda combinatória, de toda referência, para desdobrar o virtual como um mundo autônomo”
Obs: Neste texto vou abordar apenas a realidade virtual como linguagem e experiência (que é o viés do Lévy). Mas caso tenha curiosidade (e tempo) para entender um pouco mais sobre as aplicações e conceitos do uso de realidade virtual, já escrevi há um tempo três artigos fazendo uma revisão de como a realidade virtual vem sendo aplicada na educação, equipamentos e sofwares, e algumas discussões de aplicações de realidade virtual ao redor do mundo.
Sociedade Virtual
Uma das grandes vantagens trazidas pela virtualização é a capacidade de sintetizar a inteligência coletiva: coletar conhecimentos, relatos, informações compartilhadas entre todos, em tempo real e distinção geográfica — possibilitando inclusive a redução da distância transacional entre as pessoas: cada um consegue interagir com outro e gerar novos conteúdos (opiniões, comentários, likes etc)a partir dessa interação. “A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo”. Um dos efeitos mais significativos do processo de virtualização é a alteração no modo como temos de lidar com o tempo. A noção de momento presente ganha pela primeira vez na história uma dimensão global. O presente está aqui e em todo lugar. O tempo é sincronizado, criando-se uma unidade temporal sem a necessidade da unidade de lugar, mesmo quando a duração da ação é descontínua.
Na economia, o mercado financeiro, entre outros, abraçou a virtualização — a moeda passou a ser virtual, e suas relações também. Em relação ao trabalho, dois caminhos se abrem aos investimentos para aumentar a sua eficácia: a reificação da força de trabalho pela automatização e a virtualização das competências por dispositivos que aumentem essa inteligência coletiva.
Promete-se a utopia da democracia eletrônica, do saber compartilhado e da inteligência coletiva. Mas nada será obtido além da dominação de uma nova “classe virtual”, composta pelos magnatas das indústrias do sonho (cinema, televisão, games), do software, da eletrônica e das telecomunicações, auxiliados pelos criadores, cientistas e engenheiros que dirigem o canteiro de obras do ciberespaço, sem esquecer dos ideólogos ultraliberais ou anarquizantes e os grandes pais do virtual, que justificam o poder dos precedentes — Kroker e Weinstein
Seria a visão do ciberespaço como um extensão de um império ciberfinanceiro (ou tecnofascista para alguns) — de uma ideia neoliberal capitalista, de uma sociedade que esta revolucionando seu modo de fazer economia, cultura, de relações sociais e até de fazer guerras. Essas ideias podem ser vistas em Raoul Vaneigem e Guy Debord na A Sociedade do Espetáculo, ou em Baudrillard na A Sociedade do Consumo, para eles há uma inversão de valores: a máquina representa o homem, e este passa a ser o elemento virtual do sistema (lembra Matrix, das irmãs Wachowski). Mas há quem pense nesse ciberespaço como um ambiente em construção, que é comunitário, transversal e recíproco — que não é apenas uma grande televisão virtual, pois não se trata apenas de conteúdos gerados de grandes centros, mas a difusão de informações e interações partem também das periferias e daqueles que estejam no seio de uma situação. Cabe a cada um decidir e entender o que há de positivo e negativo nessa nova realidade.
Referências:
DELEUZE, Gilles. Différence et répétition, PUF, Paris, 1968.
KROKER, Arthur; WEINSTEIN, Michael. Data Trash, The Theory of the Virtual Class. 1994
LÉVY, Pierre. O Que é Virtual? . Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. ISBN - 857326036X
GALVÃO, Cleyton Leandro. Os sentidos do termo virtual em Pierre Lévy . LOGEION. DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2016v3n1.p108-120
JERALD, Jason. O livro VR: Design centrado no homem para a realidade virtual . 2015