A Lei de Amara e os haters de NFTs

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
Published in
9 min readFeb 22, 2022

Os NFTs estão por toda parte. Todo dia milhares de novos projetos são lançados por empresas das mais variadas vertentes. Todo dia surge uma agência focada em web3. Todo dia é criada uma startup (ou várias) que coloca NFT e metaverso em seu deck de apresentação na esperança de aumentar o valuation e atrair investidores mais facilmente. Todo dia pessoas passam a se apresentar por aí como especialistas no assunto — muitos sem nunca ter realizado uma iniciativa concreta sequer. Sim, até acredito que estejamos vivendo (ou estejamos próximos de viver) o que o Gartner chama de “O pico das expectativas infladas” em seu famoso Hype Cycle, ferramenta criada pela empresa para classificar diferentes tecnologias de acordo com seu grau de adoção e maturidade — escrevi sobre o Hype Cycle neste artigo. Grande parte dos projetos lançados nos últimos meses valerão zero em pouco tempo e serão esquecidos. Parte considerável das iniciativas atuais não precisava usar NFT, poderia muito bem ser feita com outras tecnologias, mas aproveitaram para surfar a onda e ganhar no marketing e em PR. Tudo isso eu concordo, está acontecendo de fato.

Porém, o mesmo Fla x Flu de basicamente qualquer assunto hoje em dia (política, futebol, economia, religião, BBB…) chegou aos NFTs e o hate sofrido pelos tokens não-fungíveis ao redor do mundo, inclusive no Brasil, chegou de forma desproporcional, na minha visão. E o pior, leio sempre as mesmas críticas, com os mesmos argumentos, que parecem ter sido copiados uns dos outros por pessoas que muito provavelmente nunca gastaram um tempo mínimo para estudar sobre o assunto. Muitos deles, pelo conhecimento escasso, também focam apenas nas artes digitais e nos colecionáveis, como se os NFTs fossem resumidos a isso — apesar de que estas categorias ainda geram o maior volume de transações. Por isso, resolvi escrever este texto falando sobre cada um destes argumentos contrários.

Antes, vale ressaltar novamente que, apesar de ser um entusiasta de web3, concordo que há muito hype, vendas infladas, projetos sem sentido, oportunistas, esquemas e tudo mais. Isso não há dúvidas, assim como também não há dúvidas que a tecnologia precisa evoluir bastante. Mas lembre-se, estamos falando de uma tecnologia — blockchain — apresentada ao mundo a partir do white paper do Bitcoin em Outubro de 2008; e de uma aplicação — NFT — cujo primeiro grande projeto é de junho de 2017, os Cryptopunks. É claro que vão existir imperfeições que precisam ser corrigidas. Como também é claro de que onde há mais dinheiro há mais interesse, há mais gente querendo surfar a onda, há mais aproveitadores… Isso sempre aconteceu e sempre irá acontecer com outros “fenômenos” que surgirem no futuro: a paixão pela tecnologia (e pelo dinheiro rápido que ela pode trazer) e não pelo problema que ela ajuda a resolver.

Mas daí a colocar tudo no mesmo bolo e classificar qualquer iniciativa com tokens não-fungíveis como sem valor, capricho de milionário, engana-trouxa e outros adjetivos negativos não só é uma grande bobeira, como demonstra desconhecimento sobre as possibilidades que a tecnologia traz — muito além dos memes vendidos a milhões de dólares — e até uma certa inveja de quem de repente está vendo o bonde passar e não sabe como subir no mesmo.

Argumentos e contra-argumentos

Os argumentos dos que criticam os NFTs geralmente são iguais. Vamos a eles e aos contra-argumentos.

1) Qualquer um pode copiar um NFT, seja ele uma imagem estática, um vídeo, um áudio… Basta tirar um print screen ou baixar o arquivo. Por isso NFTs não têm valor, diferentes de obras físicas.

Sim, você pode tirar um print da sua tela ou baixar o mesmo arquivo do token, mas você terá em mãos apenas uma cópia sem valor. Ao comprar um NFT, você compra o registro desse arquivo numa blockchain, um registro que dá a você a propriedade sobre o arquivo autenticado por quem o emitiu e que, por conta disso, pode ser vendido no mercado (se ele tem valor ou não, é justamente o mercado quem vai dizer). Gosto de dar o exemplo de que se você digitar Mona Lisa no Google encontrará milhares de imagens da obra de Leonardo Da Vinci. Você pode baixar uma cópia de graça, em alta definição, imprimir em um papel da melhor qualidade, emoldurar e colocar em sua parede, e essa cópia terá zero valor, justamente por ser uma cópia. A obra original, de verdadeiro valor, está no Museu do Louvre, em Paris. “Ah Felipe, mas uma obra de arte física tem texturas diferentes e outros elementos que tornam sua cópia muito mais difícil do que uma arte digital”. Concordo, mas você pode contratar um artista para fazer uma réplica perfeita de uma obra como esta, com todos os detalhes, e mesmo assim ela será apenas uma réplica e, como tal, não terá valor ou terá um valor muito inferior à obra original. Vai dar mais trabalho e custará mais dinheiro para contratar este artista especializado, mas é possível fazer. Inclusive, a indústria da arte tem evoluído nas tecnologias para comprovar a veracidade de obras justamente por existir um mercado de obras falsificadas cada mais vez mais complicado de se diferenciar o que é autêntico do que é falso.

2) Quando você compra um NFT você está comprando apenas o token e não os direitos sobre a obra, logo o único direito que o comprador tem em mãos é o de exibir o seu NFT e vendê-lo, mais nada.

Primeiro, há vários projetos que dão aos donos dos tokens não-fungíveis o direito de explorá-los comercialmente enquanto os mesmos estão em sua posse. O Bored Ape Yacht Club, um dos maiores fenômenos da atualidade, é um deles. Quem tem um BAYC pode criar produtos adjacentes à vontade usando a imagem do seu macaco — este, inclusive, é um dos fatores que levou ao sucesso do projeto. A marca Bored Ape Yacht Club não pode ser usada, mas somente a imagem já remete à mesma. A gravadora Universal Music, por exemplo, anunciou em novembro passado o lançamento da banda Kingship, formada por quatro macacos da coleção, em uma parceria com o colecionador que detêm os quatro NFTs.

Segundo, quando você compra uma obra de arte física, seja ela qual for, você compra apenas o direito de exibi-la, privada ou publicamente. Você não tem o direito de explorá-la comercialmente, pois a propriedade intelectual segue sendo do artista, a não ser que isto tenha sido negociado também, o que não é comum. Sua compra foi apenas da obra física, seja no formato que for. Ou seja, você só tem duas opções do que fazer com ela: ou exibir ou vender. É exatamente a mesma coisa com as obras digitais que não lhe dão direitos sobre a propriedade intelectual.

3) As artes em NFT são malfeitas e sem apelo visual, por isso têm zero valor.

Concordo que há artes em NFT visualmente muito simples, algumas até infantis, cujo gosto é bastante questionável. Porém, não dá para dizer que isto não acontece no mundo da arte tradicional, não é mesmo? Além do mais, gosto e percepção de valor são coisas pessoais, o que para mim é bonito e valorizado, para você pode ser feio e sem valor, e vice-versa. Quem estabelece o quanto vale de fato é justamente o mercado; se tiver gente disposta a pagar, o valor está ali. E mais, em muitos projetos envolvendo tokens não-fungíveis a parte visual dos mesmos é a que menos importa; é mais a utilidade, o senso de comunidade, a identidade digital da pessoa que possui o token… São aspectos muito além do simples apelo visual.

4) Grande parte dos NFTs são cópias de imagens não autorizadas pelos autores e há muitos esquemas dentro desse universo.

A pirataria de fato é um problema em crescimento dentro do mundo dos tokens não-fungíveis, mas, infelizmente, é um problema que assola praticamente todas as indústrias. Eu trabalho com esportes e a pirataria de camisas, por exemplo, é recorrente e causa enormes prejuízos a clubes e fabricantes de material esportivo. Temos que combater este problema, do mesmo jeito que é preciso combater o número de obras digitais falsas sendo colocadas em marketplaces de NFTs. Porém, também é comum encontrarmos produtos falsos em marketplaces de produtos físicos, certo? Isso quer dizer que esses marketplaces servem apenas para enganar os compradores? Claro que não, quer dizer que eles também precisam estar sempre evoluindo seu controle. No caso dos NFTs, há até uma vantagem, pois a própria rastreabilidade que a tecnologia permite ajuda na identificação do que é e o que não é original.

Sobre os inúmeros esquemas que têm surgido e enganado as pessoas, infelizmente acaba sendo natural pelo fato de ser uma tecnologia em ascendência. Foi assim com outras novidades, como o PIX. Foi só o mesmo se tornar popular entre os brasileiros e tivemos aumento de casos de sequestro relâmpago e a imposição de um limite de transferência em determinados dias e horários. Além disso, no caso dos NFTs, as pessoas também precisam fazer uma pesquisa melhor sobre a origem do projeto, os criadores, o roadmap, o tamanho da comunidade, o engajamento da mesma, enfim, diversos aspectos para não cair em esquemas. Mas devemos lembrar que pessoas caem em esquemas de todos os tipos, não somente no mundo cripto, muitas vezes inclusive envolvendo bancos grandes.

5) NFTs prejudicam o meio-ambiente.

Este é um argumento clássico entre as pessoas que criticam os criptoativos em geral. Sim, blockchains que operam com um mecanismo de consenso chamado de Proof-of-Work, como Bitcoin e Ethereum, de fato consomem bastante energia, pois é o poder computacional que permite a mineração de seus blocos. Como o grande volume de NFTs ainda é emitido em Ethereum, a crítica é até pertinente — apesar de termos diversos outros tipos de negócio bem menos amigáveis ao meio-ambiente que passam imunes às estas críticas. Porém, há redes blockchain em franco crescimento dentro do universo de NFTs, como a Solana e a Tezos, que operam em outro mecanismo de consenso, chamado de Proof-of-Stake, que não se utilizam de poder computacional; logo consomem muito menos energia (leia mais sobre Proof-of-Work vs Proof-of-Stake aqui). Ou seja, é mais do que possível emitir NFTs sem contribuir para a destruição do planeta.

6) Os arquivos dos NFTs não são armazenados na blockchain e sim em servidores de terceiros, logo é possível que estes servidores um dia deixem de existir ou sejam atacados por hackers, o que faria com que os tokens passassem a ser vazios.

De fato, muitos NFTs têm seus dados (inclusive os arquivos que representam) armazenados fora da blockchain. Neste caso, este token é registrado na blockchain com um apontamento que leva para o servidor onde o arquivo está hospedado. É o chamado NFT off-chain (se o arquivo é registrado dentro da blockchain ele é permanentemente imutável e chamado de NFT on-chain; este artigo explica em detalhes as diferenças). Existe mesmo um risco, caso o servidor aonde o arquivo e os dados do NFT são guardados seja centralizado, pois um ataque hacker ou mesmo uma falha nos servidores faria com que este NFT deixasse de exibir a imagem e passasse a ser “vazio”. Porém, apesar de ser uma questão que precisa ser aprimorada, há como mitigar este problema armazenando esses dados em uma estrutura descentralizada, como o IPFS.

Se informar é preciso

Estas são as críticas mais comuns, repetidas por basicamente todo mundo que fala mal dos NFTs. Grande parte delas foca bastante nos projetos que são puramente artes e colecionáveis digitais, como se os tokens não-fungíveis fossem apenas isso. Mas estão longe de ser; na verdade eu diria que essas aplicações foram apenas as que deram o start em uma grande revolução que será a web3. Particularmente, acredito muito mais nos projetos que atrelam utilidade, seja no mundo físico ou no mundo virtual, do que simplesmente nos colecionáveis ou nas artes digitais. Inclusive já escrevi quatro artigos sobre outras possibilidades de aplicações no esporte que você pode ler aqui, aqui, aqui e aqui. Você também pode ler sobre algumas iniciativas que fiz durante meu período como head de inovação do Clube Atlético Mineiro, os acertos, erros e aprendizados. Porém, repito, gostos e percepção sobre o que tem ou não valor são coisas pessoais, e não podemos desprezar a quantidade de pessoas que coleciona artes e outros itens digitais.

Para finalizar, é importante falar sobre a Lei de Amara, citada no título do artigo. Roy Amara foi um cientista e futurista americano que falou uma frase perfeita para definirmos o que estamos vivendo com os NFTs agora: “Nós tendemos a superestimar os efeitos de uma tecnologia no curto prazo e subestimar os efeitos no longo prazo”. Como parece que estamos no auge (ou próximos do auge) do hype dos tokens não-fungíveis, é normal o entusiasmo que está acontecendo e as elevadas expectativas sobre o potencial da tecnologia. E acaba sendo normal também o fato de termos pessoas decretando sua completa inutilidade futura. Porém, como supracitado, trata-se de algo muito novo — o primeiro grande projeto de NFTs completa cinco anos no próximo mês de junho. Naturalmente muita coisa vai evoluir, muita gente que entrou nessa pela moda vai sair e ir para a próxima moda, muito projeto vai ficar pelo caminho (no começo da web1 e web2 foi assim também) e acredito que os projetos bacanas — que já existem — vão continuar e crescer, mesmo que tenham que se adaptar. Críticas são sempre bem-vindas, claro, mas é preciso que tenham fundamentos. E quem critica também deve ter a mente aberta para estudar e entender melhor sobre os fatos; não só é uma oportunidade de aproveitar novas possibilidades que a web3 trará, como aprendizado nunca é demais.

--

--

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro