Dinheiro, dinheiro e dinheiro: a web3 pode e deve ir muito além se quiser ser de fato disruptiva

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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9 min readApr 12, 2022
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Semana passada li este tweet do Jarrod Dicker. Suas palavras me fizeram começar a olhar para a nova era da internet de maneira diferente.

Porque a web3 importa

Sim, sigo acreditando piamente que a web3 é muito promissora, principalmente pela ideia de descentralização. As grandes plataformas da web2 — Facebook, Instagram, TikTok, LinkedIn, Youtube e outras — construíram seus negócios centralizando o poder. Vejam bem, elas foram e são importantes, pois permitiram que pessoas e marcas das mais diversas pudessem ter voz na internet de maneira muito mais fácil e sem custos; permitiram que elas criassem suas identidades e audiências publicando seus próprios conteúdos. Porém, como já sabemos bem, “se você não está pagando pelo produto, então o produto é você”. Isso vale tanto para usuários quanto para criadores. Não se engane. Você, criador, não é o dono dos conteúdos que posta, não é o dono dos seus seguidores, nem da sua identidade nestas plataformas. Simplesmente porque você não consegue deixá-las e levar consigo tudo que construiu para alguma outra. Você teria que fazer tudo de novo, do zero. Mais, ao não estar no controle, você está sujeito a quaisquer mudanças nas regras vigentes, afinal o dono é quem manda. Não se sabe como funcionam os algoritmos e nem que impacto alterações nos mesmos terão na forma como seus conteúdos são filtrados e exibidos aos usuários. Fica-se exposto a possíveis suspensões ou banimentos, muitas vezes sem justificativa plausível. Até perder seu username pode acontecer quando uma dessas empresas achar que é o momento — como ocorreu com o antigo dono do perfil @meta no Instagram, quando Mark Zuckerberg decidiu que o Facebook passaria a se chamar Meta. Imagine se seu ganha-pão depende de alguma dessas plataformas. Você pode nunca ter parado para pensar nisso e pode inclusive achar que é alarmismo da minha parte, mas estar numa posição em que você não tem o controle nunca é confortável.

A web3, pelo menos em teoria, promete algo diferente. Pelo fato de ser open-source por natureza e ter em seus princípios a ideia de interoperabilidade, um desenvolvedor consegue de forma simples construir uma nova aplicação em cima do código de uma aplicação existente e permitir que todos esses ativos (identidade, conteúdo e audiência) sejam transportados entre diferentes plataformas. Isto impede que as empresas de web3 “prendam” seus usuários dentro de ecossistemas fechados. O Lens Protocol, por exemplo, é um protocolo que permite o desenvolvimento de redes sociais descentralizadas. Stani Kulechov, fundador da Lens, em entrevista ao Cointelegraph, explicou que, quando um usuário de uma aplicação construída sobre o protocolo cria um perfil, este perfil se torna um NFT, que pode ser visto em uma carteira cripto ou em um marketplace, como a Opensea. Sempre que um perfil segue outro perfil, também é criado um token não-fungível dessa relação, que, como tal, não pode ser alterado nem retirado da carteira cripto que se encontra, a não ser pelos donos da mesma. Ou seja, o controle está na mão do usuário.

Este controle sobre identidade, audiência e conteúdos é apenas parte do que torna a web3 tão atrativa. Talvez até a menor parte, pelo menos no entendimento atual. A questão financeira é que a mais tem sido propagada (o que é perigoso, como desenvolverei adiante). Novamente, não dá para negar a importância das plataformas de web2 no surgimento da economia da criação. Se antes a possibilidade de se passar uma mensagem para milhares ou milhões estava limitada a poucos veículos de comunicação, Youtube, Instagram e afins deram voz a criadores de todos os tipos, permitindo que estes desenvolvessem seus negócios em torno de seus conteúdos. Todos nós que temos redes sociais nos tornamos criadores de conteúdos, querendo ou não. Mas não se engane, são poucos, muito poucos, que conseguem viver disso. Aqueles com grande número de seguidores e inscritos de fato monetizam bem indiretamente, por meio de publi posts, parcerias e vendas de merchandising, mas enquanto estes pouquíssimos privilegiados fazem milhões, as plataformas fazem bilhões vendendo anúncios justamente para a audiência que nelas se encontram para consumir conteúdos feitos por aqueles criadores. Estima-se que, em média, um Youtuber com cerca de 1 milhão de inscritos faça em torno de US$60 mil por ano em ads e que apenas 0,2% dos mais de 8 milhões de artistas no Spotify façam mais de US$50 mil ano em royalties. E isto porque estamos considerando plataformas que pagam algo aos criadores. A maioria reparte zero da receita.

A promessa da web3 é de inverter esta lógica. As plataformas ficam com o menor percentual e a maior parte da receita gerada vai para o criador. E se o criador estiver insatisfeito e outra plataforma oferecendo condições melhores aparecer, ele pode simplesmente migrar seus conteúdos e audiência para lá, de forma simples e rápida. Isso já acontece hoje se você mintar um NFT. Uma vez que você o faz, você pode escolher em qual marketplace vai colocá-lo à venda e, se quiser mudar, basta “delistar” de um e “relistar” em outro, desde que as plataformas sejam compatíveis com a blockchain que o token foi mintado. E as taxas de transação são infinitamente menores, geralmente entre 2% e 2,5%, com a possibilidade de se cobrar royalties sobre negociações futuras sobre o seu trabalho. Há ainda outro elemento de destaque, que é tirar o intermediário da jogada (ou diminuir seu papel para ser de fato um intermediário e não o dono da bola) e permitir um relacionamento direto entre artistas/marcas e fãs/consumidores. Assim, artistas e marcas se tornam as plataformas. Isto é muito poderoso. Permitir uma relação em que pessoas podem ser mais do que apoiadoras, podem ser investidoras de artistas, atletas, produtos, marcas, profissionais dos mais diversos ramos… Teoricamente, tudo pode ser tokenizado e todos podem ganhar com isso. O próprio Jarrod Dicker tem outros tweets com ótimas sacadas com as diferenças entre web2 e web3.

A web3 tem a capacidade de ser a camada de propriedade da internet e esse conceito de que todos podem comer um pedaço da torta é bastante atraente. Falar em dinheiro muitas vezes é malvisto, porém vivemos em um mundo capitalista e seria dissimulação ignorar não só sua importância, como sua influência sobre o comportamento das pessoas. Não há nada de errado nisso e de fato essa é uma das grandes vantagens da web3. Porém, a partir do momento que ela se torna SÓ isso, aí sim temos um problema. E é o que hoje mais tenho visto.

O problema de se focar somente no dinheiro

Basicamente tudo o que sai de reportagem relacionada a web3 atualmente tem como foco o dinheiro. Não interessa se é uma obra de arte, uma música, um novo Avatar Project, um meme, um programa de membership, um novo restaurante… O destaque é sempre o dinheiro. E a culpa não é somente dos jornalistas que escrevem as matérias. As nomenclaturas vão todas nesta linha: play-to-earn, learn-to-earn, move-to-earn… Tudo é “to-earn” e tenta passar a impressão de geração de riqueza fácil. Outro dia em um grupo de Whatsapp li algo interessante. Em tom irônico, uma pessoa escreveu que “esses jovens precisam descobrir o conceito de work-to-earn”. Brincadeiras a parte, é impossível todo mundo ganhar. E muitas dessas aplicações, especialmente os games play-to-earn, funcionam como um esquema de pirâmide: enquanto tem gente entrando, quem já estava segue ganhando. Mas uma hora a fonte seca, novos entrantes desaparecem e tudo desmorona, fazendo com que a maioria perca dinheiro.

Os próprios criadores de projetos e as pessoas que trabalham no meio usam praticamente apenas métricas financeiras para mensurar sucesso e fracasso. Se vendeu tudo como se esperava, sucesso. Se não vendeu tudo, fracasso. Até o volume de transação no mercado secundário logo após um lançamento virou sinônimo de algo bem ou malsucedido. Ora, se a métrica principal do seu produto web3 nos primeiros dias ou semanas após colocá-lo no mercado é o quanto as pessoas o estão renegociando, então na verdade para você pouco importa a qualidade deste produto, seu foco está somente em ganhar dinheiro às custas das pessoas que os compram. Se o seu produto é financeiro, tudo bem, agora se você é uma marca e seu discurso é de criação de comunidade, de ter uma relação mais próxima com o cliente, de se apostar no longo prazo, me desculpe, mas você mentindo para a sociedade, para seus clientes e para você mesmo — e como diria Renato Russo, “mentir para si mesmo é sempre a pior mentira”. Veja bem, a existência do mercado secundário é uma das características mais importantes da web3, mas o aquecimento do mesmo deve ser natural, com o tempo, a partir da percepção das pessoas que possuem o produto que ele é realmente útil, de que vale a pena tê-lo, vale tanto que quem não o tem quer pagar mais caro para comprar. Utilidade, não especulação. Especulação não é sustentável. Todos os projetos que focam no dinheiro no curto prazo tendem a atrair especuladores cujo interesse é puramente lucrar. Eles vão comprar seu produto, vão ajudar a elevar o hype, só para vender na alta, realizar o lucro e partir para a próxima, deixando o valor do seu produto no chão e aqueles que o seguraram insatisfeitos, ainda mais se não houver utilidade para o mesmo. Pior, se o floor price não aumentar, aqueles que compraram somente por isso vão pressionar, pressionar e pressionar por mudanças no roadmap. É a criação das expectativas impossíveis de serem alcançadas, como escreveu bem Roy Zeneca na thread abaixo.

Eu também já me peguei dando mais atenção do que deveria à receita. Em alguns projetos em minha passagem como head de inovação do Clube Atlético Mineiro, apesar do objetivo principal ter sido aprendizado e não grana, é inegável que o dinheiro, neste caso, “trazia felicidade”. Seria muita hipocrisia da minha parte dizer que o sucesso financeiro de um projeto não é importante. Óbvio que é. Mas o ponto central aqui é outro. É que se estamos pensando na construção de algo duradouro, consistente, a receita gerada não pode ser a única nem mesmo a principal balizadora entre sucesso e fracasso, a não ser, repito, que o produto seja financeiro. Como escrevi no meu texto analisando o lançamento da coleção de NFTs do Liverpool FC, há um movimento já começando a acontecer de projetos que são colocados no mercado sem cobrar nada dos consumidores, somente a taxa de gás de mintagem dos tokens. O foco está no longo prazo, em construir uma comunidade forte de early adopters, que vão evangelizar o produto, fazendo com que, mais a frente, o mesmo gere receitas de royalties de mercado secundário, de outros drops e outros produtos adjacentes.

Há ainda outra questão ainda mais importante para que foquemos menos no dinheiro e mais nas aplicações, e que tenho discutido bastante com meu amigo João Pedro Novochadlo. Já vivemos em um mundo onde uma grande desigualdade existe, não só financeira, mas de acesso. Acesso à internet de alta velocidade, acesso a equipamentos, acesso até à eletricidade. A web3, pelo menos com as complexidades de seu estágio atual, estabelece uma outra camada de dificuldade, mesmo para quem tem grana, mas não tem conhecimento de como operar uma carteira cripto, por exemplo. Se criarmos ainda mais uma barreira financeira, com produtos baseados em especulação, onde os valores restringem o acesso a poucos, aumentaremos ainda mais a distância entre os pouco favorecidos e os muitos desfavorecidos. Vitalik Buterin, fundador da rede Ethereum e talvez a figura mais importante e respeitada do universo de web3 hoje, compartilha das preocupações. Em entrevista recente à revista TIME, na qual foi destaque na capa, ele contou por que tem sido cada vez mais vocal sobre o assunto:

“Se não mostrarmos nossa voz, as únicas coisas que serão construídas serão as que geram lucros imediatos. E estas estão geralmente longe de serem o que é o melhor para o mundo. O objetivo principal com cripto não é jogar games com figuras de macacos que valem milhões, é fazer coisas que consigam ter efeitos impactantes no mundo real”.

Talvez o foco no dinheiro seja fruto da tecnologia blockchain ter sido apresentada por meio da publicação do white paper do Bitcoin, o dinheiro digital. Porém, mais de uma década se passou e a evolução da tecnologia já mostrou e tem mostrado outras aplicações que não necessariamente busquem o lucro, pelo menos não como objetivo primário. Cabe a nós, que de alguma forma trabalhamos ou queremos trabalhar com web3, entendermos a importância do nosso papel e buscarmos desenvolver produtos que resolvam problemas reais, de pessoas reais ou entreguem utilidades reais para pessoas reais. Só assim a nova era da internet será de fato disruptiva para todos e não para um seleto grupo de privilegiados.

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro