A avaliação de risco de violência doméstica e familiar contra a mulher

Novo formulário, antigas dúvidas

Cartas do Litoral
Palavras em Transe
3 min readMar 24, 2020

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A Resolução Conjunta CNJ-CNMP N. 5 de 3 de março de 2020 institui novo formulário de avaliação de risco de violência doméstica e familiar contra a mulher. Com ela se resolve a estranha situação na qual dois formulários diferentes foram propostos e implementados com o mesmo objetivo: um pelo Conselho Nacional de Justiça; outro pelo Conselho Nacional do Ministério Público. No último caso, contudo, não teria havido apreciação pelo respectivo Plenário.

Uma das perdas a serem lamentadas na versão atual é a da metrificação proposta pelo formulário original do CNMP. O CNJ entendeu que isso poderia induzir a avaliações equivocadas. Vale recordar que o documento proposto pelo CNMP foi baseado no utilizado em Portugal. Nesse, que estima o grau de risco segundo métrica que pondera as respostas oferecidas, é apontado que:

Os resultados deste instrumento não constituem uma avaliação definitiva do risco, a sua reavaliação é essencial, assim como a experiência do elemento policial que pode identificar outros fatores de risco que não estejam aqui contemplados. [ênfases adicionadas]

Da citação deduz-se outro elemento importante: em Portugal o formulário foi elaborado levando-se também em conta quem está na ponta do atendimento, seja quanto ao preenchimento, seja quanto à tomada de decisão. Isto é, as avaliações iniciais implicam decisões e orientações tempestivas que não se confundem com aquelas a serem adotadas no nível judicial. Como comentado anteriormente, esse não aparenta ser o entendimento no Brasil. Isso porque o formulário atual e os anteriores têm juízes e promotores de justiça como destinatários exclusivos de seus resultados, pode-se dizer. Outro fator de diferença importante: um formulário enfatiza a necessidade de reavaliação; o outro, não.

Sem algum tipo de metrificação é difícil a apreensão integrada das dimensões do caso, sobretudo ao se considerar que o uso do documento não é feito necessariamente por especialistas. Além disso, o número de questões não objetivas, mais do dobro daquelas de mesmo gênero utilizadas em Portugal, é potencial obstáculo ao seu preenchimento correto e claro.

Será interessante acompanhar se a falta de metrificação não redundará em determinações judiciais de elaboração de documentos adicionais que venham sintetizar os dados do formulário, produzindo informação a partir da massa de dados ali reunida. Ou mesmo se o formulário será utilizado de modo expressivo. Sem um padrão de medida, passa-se de quadro no qual a tradução inicial ocorreria de modo normalizado, para outra na qual ela ocorrerá de modo aleatório, a depender de quem preenche ou lê o documento. Comparações tornam-se impossíveis.

É importante ter em perspectiva que o formulário será utilizado preferencialmente pela polícia civil [artigo 3o]. O maior montante de registros de ocorrências dos casos é feito em delegacias não especializadas. Ou seja, em estabelecimentos que não têm a violência doméstica e familiar como tema central. Assim, o policial que lida com diferentes casos dispensará parte não desprezível de tempo para a aplicação do formulário que, especialmente em sua parte 2, exige cuidado no manuseio e certo nível de proximidade com a causa, averiguando-se, inclusive, o eventual risco de suicídio da vítima.

Outro ponto de interesse é que o formulário seja aplicado no primeiro atendimento [artigo 3o]. Em Portugal, os procedimentos associados ao documento, que conta com instruções e manual, preveem que o grau de risco corresponda a uma agenda de acompanhamento, a qual se associa formulário próprio, diferente do utilizado inicialmente. No formulário brasileiro não há instruções, manual, tutorial. Constata-se que a falta de instruções e de manual compõe outra diferença significativa entre a experiência brasileira e a portuguesa.

Eventuais pesquisas poderão apontar como o formulário estará sendo utilizado pelas autoridades judiciais e demais atores envolvidos. As informações daí advindas permitirão avançar um pouco mais sobre as dinâmicas institucionais envolvidas no fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher, incluindo os profissionais que dele participam.

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