O cinema-predador de Megatubarão

Leonardo Lopes
Retroativo
Published in
6 min readAug 17, 2018

O guilty pleasure que se alimenta das tradicionais e renovadas referências de seu gênero.

Recheado pela megalomania de sua grandiosidade, ancorada sobre recursos técnicos e exacerbados efeitos visuais, “Megatubarão” não abandona o conceito do cinema de tubarão e, graças a isto, o recoloca em seu cenário original: o escalão das grandes produções norte-americanas. Isto porque o título inaugural do segmento, “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, é também responsável pelo surgimento do summer movie ou blockbuster, na definição que ainda hoje conhecemos:

“Tubarão apostou na criação de expectativa antes do lançamento, que aconteceria de uma vez só em todas as salas — em vez da corrida de resistência, seria uma corrida de velocidade. Com o tempo, o famigerado fim de semana de estreia passou a importar cada vez mais. Estava inaugurada a era dos blockbusters, os arrasa-quarteirões.”

- Érico Borgo, Marcelo Forlani e Marcelo Hessel,

“Almanaque do Cinema” (2009)

À sombra da obra-prima que o concebeu, todavia, o cinema de tubarão jamais voltou a, de fato, postular a elite do investimento cinematográfico hollywoodiano — ainda que não acumule grandes fracassos em seu currículo. Os caminhos excludentes do século XXI, sobretudo, relegaram este subestimado sub-sub-gênero (?) aos confins do trash — a exemplo da absurda franquia “Sharknado”, iniciada em 2013 — ou às produções menores — do ponto de vista do investimento -, voltadas ao drama da sobrevivência — como os ótimos e angustiantes (e subversivos da representação do ataque predatório) “Mar Aberto” (2003), de Chris Kentis, e “Pânico em Alto-Mar” (2006), de Hans Horn, e o recente “Águas Rasas” (2016), de Jaume Collet-Serra. Até este ano.

Escrito a seis mãos por Dan Georgaris, Jon e Erich Hoeber, ambos donos de trabalhos prévios pouco significativos, a partir do livro de Steve Alten (o que me soa surpreendente), Megatubarão propõe um tipo de criação de expectativa completamente diferente do clássico de Spielberg: aqui, impera a distinção do notável e grandioso, a ânsia pela representação visual do irreal e provavelmente absurdo. O que não o impede, porém, de ser fiel à herança da obra no que diz respeito a outro de seus pioneirismos:

“Tubarão foi o primeiro filme do tipo “high-concept”, que é um filme cuja história pode ser facilmente descrita em poucas palavras ou em uma simples imagem.”

- Livreto que acompanha a edição do blu-ray de colecionador de “Tubarão”, comercializada pela Universal em homenagem aos 100 anos do estúdio.

A descrição carregada de simplismo não pressupõe pobreza ou “antidetalhismo”; ao contrário, desenvolve uma solidez conceitual para sua cartilha de realização cinematográfica. Justamente por sustentar-se sobre o alimentar de um imaginário humano que, naturalmente povoado pelo medo, pela ameaça daquilo que não pode avistar cristalinamente, permanece sedento pela chance de vê-la, ainda que em suas forma mais inverossímil, representada numa narrativa — não à toa, o anteriormente citado “Pânico em Alto-Mar” desenvolve tensão apenas a partir do temor, não da presença, do folclórico predador dos oceanos.

A ampliação do conhecimento humano sobre os territórios anteriormente inexplorados nos encaminha à crença de que “já vimos tudo” e, portanto, empalidece a ideia do oculto como ameaça. A consciência disto é, precisamente, o que atesta a inteligência construtiva de Megatubarão, por buscar não apenas as mais consagradas referências, mas também o que há de novo para ser a bússola suas ambições.

A priori, a produção dirigida por Jon Turteltaub — é uma pena, aliás, que Nicolas Cage, seu parceiro habitual, não faça parte do elenco — cumpre a necessidade de inserção a um contexto de exploração humana sobre as profundezas marítimas, ao levar suas personagens à plataforma flutuante de pesquisa — que remete, imediatamente, ao galhofa e divertido “Do Fundo do Mar” (1999), de Renny Harlin — e, enfim, a um submarino. A obsessão por alcançar níveis cada vez mais profundos para testar a crença de que eles podem ocultar espécies e territórios desconhecidos — obviamente — acaba por provocar a “Mãe Natureza” — o personagem de Jason Statham (Jonas Taylor), acreditem, chega a proferir especificamente este termo — e, sem mais delongas, “chamar ao mar” ao menos um remanescente do Megalodonte, espécie de tubarão gigante absolutamente mortal e, acreditava-se, extinta.

Observe dois pontos básicos da premissa:

  1. A intensiva exploração científica do ser humano sobre o planeta no qual habita, quando munida de intenções capitalizadas e obscuras — não à toa, o investidor do projeto, Morris (o espetacular Dwight Schrüte, digo, Rainn Wilson), demonstra-se escuso quanto às suas ambições, ainda que a narrativa jamais tenha o tato suficiente para expor com sutileza este aspecto -, dispara uma voraz e violenta vingança da natureza por meio de suas forças, neste caso, animais.
  2. Esta vingança é executada pelo inesperado regresso de uma espécie extinta e muito mais ameaçadora do que aquelas com as quais convivemos — e que nos preservam no suposto “todo da cadeia” -, dotadas de características possivelmente evoluídas em relação à sua existência original.

Dezoito anos após “Tubarão”, o mesmo Steven Spielberg revitalizou, novamente, o cinema de monstros — animais, enquanto ameaça da trama, também o são — com “Jurassic Park — O Parque dos Dinossauros” (1993), pioneiro na utilização, justamente, dos elementos descritos acima — e, no caso da mencionada possibilidade de evolução, a continuação “Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros” (2015), de Colin Trevorrow, com o seu Indominus Rex. Acertadamente, Megatubarão produz um cinema de monstros guiado por aquilo que foi acrescentado no repertório do segmento e, ainda assim, não se entrega à cópia — afinal, usa os recursos já experimentados e oferecidos sem, com isso, abdicar de produzir um contexto no qual eles sirvam à entrega do absurdo e abracem os excessos que atribuem organicidade à narrativa, tornando-a inconsequentemente divertida. Mais do que isso, propõe-se a fazer um esforço necessário de adaptação do cinema de tubarão às tendências da indústria cultural contemporânea — a exemplo da necessidade de intensificação da ameaça — para recolocá-lo, de fato, nela.

Não obstante, conforme antecipa o parágrafo inicial deste texto, o arrasa-quarteirão assume sua origem e evoca, eficientemente, o que há de mais marcante nesta categoria cinematográfica. A quebra climática, que jamais nos dá direito à tranquilidade nos momentos de calmaria e descontração — lembre-se da sequência do barco, na qual o grupo acredita ter eliminado o último Megalodonte — e, pelo contrário, agrava o risco ao qual as personagens estão sujeitas, está lá, bem como o “cheiro de isca” que ronda qualquer um que ouse ficar de costas para o mar ou subestimar a capacidade predatória do predador marinho. Por sua vez, a condenação sádica, na qual figuras que praticam o egoísmo e prejudicam seus pares sofrem mortes estúpidas — o ganancioso Morris ou o sujeito que, numa daquelas bolas flutuantes, atropela os outros banhistas -, é uma divertida e perspicaz absorção de outras escolas do cinema de horror — também utilizada pelo mais recente episódio da série “Jurassic World”.

Ao decidir por levar seu gigante antagonista às áreas mais rasas e humanamente ocupadas do mar — filmando-o em planos que parecem esfregar as mãos e se deliciar diante do potencial de sangue que aquela situação pode produzir — para o clímax de sua destruição, contudo, é que a narrativa abraça definitivamente o absurdo de sua natureza e assume outro de seus ícones referenciais: o cinema trash, como não poderia deixar de ser — ainda que adaptado às condições de uma grande produção -, e conforme a construção visual dos créditos finais reitera, para que não se possa negar. Alimentando-se das férteis e variadas referências que o oceano de seu gênero, linguagem e contexto lhe oferece, Megatubarão abraça sua identidade para consolidar-se como um predador eficaz.

À altura da publicação deste texto, o filme está em exibição nos cinemas brasileiros.

17/08/2018.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.