É hora de baixar a fervura

Imbróglio do começo do mês envolvendo o PL das fake news expõe clima inflamado e perigoso nas instituições democráticas

João Vitor Castro
Revista Brado
10 min readMay 31, 2023

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Brasília (DF), 08/01/2023 — Golpistas invadem e depredam prédios públicos na Praça dos Três Poderes. Estátua da Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), coberta por fumaça. Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

Nos últimos meses, parte do debate público foi dominado pelo projeto de lei que visa redefinir as regras pelas quais as redes sociais são regidas no Brasil. O PL 2.630/2020, popularmente — e erroneamente — apelidado de ‘PL das fake news’, deveria ter sido votado pela Câmara dos Deputados no início deste mês, mas sua votação foi adiada sem previsão de nova data pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Esse debate, contudo, ganhou tons mais inflamados do que deveria. As empresas que são alvo da nova legislação moveram uma campanha para poluir o debate público, inclusive com desinformações sobre o texto. O Google, por exemplo, pôs em sua página de busca um link direcionando para um texto do seu próprio blog que descrevia como o projeto visava definir o que é verdade e o que é mentira. Já o Telegram enviou aos seus usuários uma mensagem na qual dizia, entre outras coisas, que o PL iria aplicar censura. Não é verdade — como veremos mais adiante.

Em resposta à campanha das empresas, o Supremo Tribunal Federal entrou em campo. Rapidamente, o ministro Alexandre de Moraes ordenou que as plataformas retirassem esses conteúdos e, no caso do Telegram, divulgasse uma nova mensagem se retratando. Essa ação do ministro não jogou lenha, mas querosene sobre a fogueira. Em uma canetada, Moraes saiu de sua função, ofereceu munição aos opositores do projeto e demonstrou a urgência de que o STF se desacostume com o papel que desempenhou nos últimos anos.

O assunto é complexo, então comecemos aqui desmistificando algumas questões acerca do PL 2.630 antes de avançar sobre os acontecimentos do começo de maio e seus significados.

A quem interessa regular as redes sociais?

Há um ano, em abril de 2022, publiquei um texto nesta coluna da Revista Brado intitulado “Elon Musk pode ser bom para o Twitter”. Na época, o bilionário sul-africano havia acabado de anunciar a compra da rede social e agitava o debate acerca dos benefícios e malefícios dessa aquisição — e, como sempre, esse foi um debate extremamente polarizado. Meu argumento se concentrava no efeito que essa aquisição poderia ter sobre os poderes legislativos de diversas democracias, incluindo a brasileira:

“A longo prazo, isso vai incentivar políticos, especialistas e juristas de todos os países a se mobilizarem para fazer o que já deveriam estar fazendo há mais de uma década: remodelar o entendimento sobre as gigantes da tecnologia e readequá-las às suas leis nacionais. O Estado vai reassumir o seu papel. Se no curto prazo as consequências tendem a ser negativas, no longo isso pode garantir que as decisões sobre o que eu e você publicamos na internet voltem a ser tomadas nos prédios de Brasília, e não mais nos escritórios do Vale do Silício.”

Esse é o debate mais importante do nosso tempo. O motivo é simples (e aqui vai um resumo muito superficial das ideias do texto de 2022): as bigtechs são a nova praça pública. É por meio delas que projetos de lei — como este de agora — são debatidos de forma mais ampla na sociedade; que eleições são definidas; que informações — e desinformações — se proliferam ao redor do mundo em milésimos de segundo; que nos relacionamos com amigos, familiares e desconhecidos; que forjamos — sobretudo os mais jovens — a nossa personalidade, nossos interesses, nosso entendimento de mundo, nossos ideais, nossa identidade, nossos grupos.

O problema é que isso não acontece de forma orgânica. Essas grandes plataformas de interação possuem algoritmos, que funcionam como editores de jornal, numa escala infinitamente maior e por meio de inteligência artificial. São eles que selecionam quais conteúdos — tweets, por exemplo — serão vistos por milhões de pessoas e quais simplesmente desaparecerão; para quem esses conteúdos serão mostrados; e a ordem segundo a qual os conteúdos aparecerão nas contas de cada usuário. Esses algoritmos tornam as redes totalmente personalizadas: nenhuma timeline é igual à outra.

Nós não sabemos com que base o algoritmo faz suas determinações, mas sabemos o seu efeito. As próprias plataformas já admitiram que seus algoritmos privilegiam conteúdos agressivos e ofensivos, embora afirmem não conhecer o motivo. Essa inteligência artificial que molda, hoje, boa parte das nossas vidas, por alguma configuração que não conhecemos, produz — de forma proposital — um ambiente de emoções extremas. A polarização e o extremismo políticos, os debates acalorados e raivosos, o comportamento de manada e a hiperexposição de adolescentes a conteúdos degradantes e autodegradantes não são obra do acaso, mas resultados da configuração de algoritmos programados no Vale do Silício para produzirem exatamente esse efeito.

Há quem diga que um produto só é de graça porque, na verdade, o produto é você. Para além dessa simplificação, as redes sociais não são gratuitas: nós as pagamos a todo momento com os nossos dados. A cada clique, revelamos aos algoritmos os nossos interesses. Quanto mais tempo passamos nas redes e quanto mais cliques damos nelas, mais dados entregamos às suas IA’s. Com base nesses dados, os algoritmos operam para nos bombardear com publicidades — essas sim muito bem pagas aos seus CEO’s.

Junte o último parágrafo com o anterior e a resposta está dada: o algoritmo privilegia conteúdos que nos tiram do nosso estado natural porque, como uma droga, a descarga hormonal desses conteúdos sobre nossas mentes nos mantém presos às redes — viciados. E, quanto mais presos, mais dados fornecemos, mais publicidade consumimos e mais dinheiro entregamos a essas empresas que já possuem os maiores valores de mercado da história — maiores que o PIB de todas as economias do mundo com exceção das 20 primeiras.

Se isso não fosse grave por si, o resultado objetivo dessa comunicação extremada produzida e incentivada pelas redes sociais é a crise enfrentada por praticamente todas as democracias do mundo. Afinal, no ambiente cada vez mais polarizado das plataformas, não há espaço para moderação; apenas para os extremos.

A invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 foi um dos momentos em que o mundo assistiu ao poder destrutivo da radicalização fomentada em bolhas sociais. Foto: Tyler Merbler/Wikimedia Commons

Por isso é tão importante regulamentar essas gigantes da tecnologia. Em uma democracia liberal, é inconcebível que uma empresa tenha mais poder do que o Estado, a ponto de ditar — porque é isso que fazem tanto os algoritmos quanto as políticas de moderação de conteúdo das redes sociais — o que vale e o que não vale no debate público, ou quem pode e quem não pode se manifestar. A nossa comunicação, há quase uma década, tem sido deliberadamente manipulada por grandes plataformas de mídia sediadas nos Estados Unidos, na China e em outros países, para conversarmos sobre o que os seus algoritmos determinam e sob o prisma que eles privilegiam. Isso é tão inconcebível que o mundo democrático inteiro tem — finalmente — se debruçado sobre esse tema.

Em sua obra “A era do capitalismo de vigilância”, a professora de Harvard Shoshana Zuboff defende:

“Essas empresas que floresceram nas últimas duas décadas, com quase nenhum impedimento legal, agora têm um poder profundo e inexplicável: controlar de forma absoluta os sistemas e infraestruturas de informação dos quais a nossa civilização atual, a civilização da informação, depende. Por isso, as iniciativas de diversos países para adequar a atuação das redes sociais às práticas democráticas têm uma importância transcendente”.

Eles querem nos censurar

Iniciei o texto afirmando que o PL 2.630 é erroneamente apelidado de ‘PL das fake news’. Explico: ele sequer trata de fake news. Claro, esse seria um tema muito mais espinhoso, e quando chegou a ser discutido na Câmara dos Deputados, alguns anos atrás, foi rechaçado por jornalistas e profissionais de fact-checking. Isso porque nem entre nós há ainda uma definição clara do que sejam fake news, desinformação e outras nomenclaturas similares. E se nem os profissionais da área têm uma definição clara sobre o assunto, é claro que os parlamentares também não têm. E, se por acaso a propusessem novamente, tenha certeza: ela não teria o aval da imprensa.

Parlamentares contrários ao PL 2.630/2020 durante coletiva no salão verde da Câmara (02/05/2023). Foto: Lula Marques/Agência Brasil

O que o PL aborda é o que conclamo no texto sobre Elon Musk e o Twitter: uma nova definição sobre o que são, afinal, as redes sociais. A legislação que as rege atualmente no Brasil é o Marco Civil da Internet, de 2014, uma lei bem aceita na época, que visava a blindar as plataformas de processos judiciais abusivos e garantir a liberdade de expressão por meio delas. Foi uma legislação bem aplicada para aquele momento, em que as redes realmente se apresentavam como ainda se definem: plataformas de tecnologia. Contudo, a partir do momento que seus algoritmos passaram a agir como editores de jornal, elas deixam de ser plataformas de tecnologia e se tornam meios de comunicação. É sobre isso, em primeiro lugar, que o PL se debruça, pois só a partir de uma definição clara sobre o que são essas empresas, podemos decidir o que fazer com elas.

Além disso, naturalmente, o projeto de lei define novas regras para a operação dessas empresas no Brasil e as punições previstas àquelas que descumprirem essas regras. Nenhuma parte do texto se refere ao conteúdo que eu e você publicamos. O cerne do projeto é sobre transparência em relação às suas operações, aos seus algoritmos e às suas regulações internas. Nenhum trecho aborda censura ou qualquer ataque à liberdade de expressão, pois — veja só! — isso é inconstitucional.

Fogo alto pode provocar queimaduras

Com tudo que já foi exposto, fica claro que as mensagens divulgadas pelo Google e pelo Telegram às vésperas da votação do PL na Câmara eram absolutamente mentirosas e buscavam manipular seus usuários para exercerem pressão sobre os parlamentares, levando à rejeição da proposta. Dito isso, mentir não é crime. Uma empresa forçar uma interpretação sobre um projeto de lei que diz respeito diretamente aos seus interesses para convencer seus usuários a pressionarem deputados a seu favor não é crime. Apesar de antiético, está no campo do debate público, e cabe ao debate público desmentir, contra-argumentar, convencer.

A decisão de Alexandre de Moraes de determinar a exclusão das mensagens e a divulgação de uma nova no lugar extrapola suas funções como ministro. Um juiz do Supremo Tribunal Federal não é um árbitro do debate público. Não cabe a Alexandre de Moraes e a nenhum outro magistrado definir o que é verdade e o que é mentira — como sequer ousa fazer o próprio projeto, mais uma vez, erroneamente apelidado de PL das fake news — , menos ainda mediar o debate sobre um projeto em andamento no Legislativo.

A atuação do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, sobretudo de 2020 em diante, foi crucial para a manutenção da democracia brasileira, e aqui cabe menção de destaque a Alexandre de Moraes — conforme já defendi nesta mesma coluna. A questão é que na democracia momentos distintos exigem posturas distintas dos ocupantes do poder. O STF agiu corretamente utilizando-se de forma mais dura e deliberada dos seus poderes constitucionais para coibir atentados à democracia quando a democracia sofria uma ameaça concreta, com um presidente que planejava um golpe de Estado à luz do dia. O STF age de forma correta, hoje, ao tratar com inclemência os golpistas de 8 de janeiro.

Contudo, novamente, momentos distintos exigem posturas distintas, e hoje as figuras mais poderosas do país não oferecem risco à manutenção do estado democrático de direito — e aqueles que o ameaçam estão distantes do poder. Embora os ânimos sigam exaltados e as instituições estejam longe do seu funcionamento normal, o risco iminente de um golpe assou, e com ele a necessidade da postura vigilante e inclemente do Judiciário.

O que parece é que tanto o STF quanto parte da elite política, da imprensa e até da sociedade civil se acostumaram com o clima bélico que perdurou nos últimos anos e ainda não perceberam que é hora de baixar a fervura. O que o momento pede, agora, é moderação e parcimônia.

Na obra fundamental que tantas vezes já citei nesta coluna, “Como as democracias morrem”, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que todos os agentes políticos possuem atribuições que podem, mas não devem utilizar, e que se todos se valerem de seus poderes até o limite, temos um estado de “jogo duro constitucional”, que inflama a democracia. Nos últimos anos, as instituições democráticas tiveram de alargar o uso de seus poderes para conter o golpismo do Poder Executivo. Vivemos, nesse período, um estado de jogo duro constitucional. Contudo, passada a ameaça, é hora de recolher as armas.

Palácio do Planalto sofre destruição nos atos golpistas do dia 08 de janeiro. Ao fundo, o prédio do STF, também atacado. Foto: Cadu Gomes/VPR

Não podemos permitir que as acusações dos golpistas que atentaram contra o país em 8 de janeiro sejam legitimadas, com o Supremo Tribunal Federal extrapolando seu papel de guardião da Constituição e se tornando um mediador — ou censor — do debate público. Não podemos permitir que as instituições que protegeram a democracia brasileira se tornem, agora, a sua ameaça. E nesse estado de inflamação permanente, o PL das redes sociais é apenas um em um conjunto de eventos.

O texto do PL 2.630 está longe de ser perfeito e ainda não foi debatido como precisa no seio da sociedade e entre os especialistas envolvidos nessa questão tão complexa e importante — reitero: o mais importante debate do nosso tempo — e nem dá sinais de que será tão cedo. Por isso, é hora de baixar a fervura, para que essa discussão possa se aproximar do que foi a discussão do Marco Civil, há quase dez anos, num tempo em que ainda não havia a enxurrada de desinformação e a polarização de hoje; num tempo em que o Judiciário se envolvia menos em questões legislativas; e num tempo em que o Legislativo era menos contaminado pela necessidade de aparição nas redes de parlamentares mais ativos no Tik Tok do que no Parlamento.

O excesso de mentiras que envolve o PL 2.630 e ações como a do Google, a do Telegram e a de Alexandre de Moraes escancaram a urgência de regulamentar as redes sociais, como é necessário regulamentar qualquer mercado novo e disruptivo em uma democracia. Mas também é preciso cuidar para que, neste ímpeto, não sejam atacados os princípios basilares dessa própria democracia. Em nome dela, é hora de baixar a fervura.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).