A democracia vai à guerra

Quando o golpismo se aflora, o legalismo deve empunhar as suas armas

João Vitor Castro
Revista Brado
8 min readFeb 20, 2021

--

O presidente Juscelino Kubitschek em frente ao Palácio da Alvorada. Foto: AP Photo

Se a última década da política brasileira foi caótica, você talvez não conheça o ano de 1955. Entre os inúmeros eventos tortuosos que marcaram o Brasil pós-Getúlio Vargas, o ponto de maior tensão antes do golpe de 1964 deve ter sido a eleição presidencial que levou Juscelino Kubitschek ao poder.

Em outubro de 1955, a legislação eleitoral ainda não exigia a maioria absoluta (50% + 1) para que um candidato fosse eleito presidente da República, ou seja, não havia segundo turno. O candidato com mais votos seria eleito, independentemente do percentual. E foi assim que o “presidente bossa-nova” chegou ao poder, com apenas 36% dos votos. Seu baixo percentual — apenas 6% a mais que o segundo colocado — , somado à vitória do sempre estigmatizado João Goulart na vice-presidência, fez com que os ânimos se aflorassem no partido da oposição, a UDN, que passou a conspirar junto ao Exército para usurpar o poder legítimo de JK.

É nesse contexto de insurreição que o coronel Bizarria Mamede, no enterro de um importante militar da época, aproveitou-se do discurso para proferir ataques à ordem institucional vigente e insuflar os militares que até então sorrateiramente debandavam para o golpismo. Foi aí que o então ministro da Guerra, o marechal Henrique Teixeira Lott, o mais respeitado dos fardados e um democrata por convicção, resolveu que era hora de dar um basta na sedição.

O lendário marechal Henrique Teixeira Lott. Foto: Arquivo Nacional

Para punir o coronel, contudo, Lott precisava da autorização do presidente da República, Café Filho — vice de Getúlio que assumiu após seu suicídio — , que havia tido uma parada cardiovascular e teve de passar a faixa para o presidente da Câmara, Carlos Luz. Este, porém se recusa a autorizar a punição do militar golpista, em um gesto simbólico de demissão de Teixeira Lott, em 10 de novembro.

É nessa madrugada insone, na qual redigia sua carta de demissão, que o ainda oficialmente ministro da Guerra atende os conselhos de seu colega general Odílio Denys e executa a ordem há meses preparada de pôr as ruas o que entrou para a história como o “Golpe Preventivo”.

Nesse meio tempo, porém, a Marinha e a Aeronáutica, alinhadas ao governo golpista, já haviam se articulado para o golpe e o presidente Carlos Luz, seus principais ministros e o deputado Carlos Lacerda — o golpista dos golpistas — já estavam prontos para embarcar rumo a São Paulo, onde seriam acobertados pelo então governador Jânio Quadros para instalar o governo “fujão”.

As tropas de Lott tomam então o Rio de Janeiro e avançam os comandos para São Paulo em uma articulação sem precedentes na história brasileira. Por fim, o governo mais curto da história, encurralado, dá meia volta rumo ao Rio de Janeiro antes mesmo de chegar ao Porto de Santos. Na tarde do fatídico 11 de novembro de 1955, o presidente do Senado, Nereu Ramos, assume a presidência da República e os golpistas desembarcam rumo às suas respectivas casas e, no caso do sempre vexaminoso Carlos Lacerda, ao exílio voluntário. Em janeiro de 56, restaurada a normalidade democrática, Juscelino dá início a um dos governos mais marcantes da República.

A bordo do cruzador Tamandaré, além dos Carlos Luz e Lacerda, estava também o coronel Jurandir Bizarria Mamede. Foto: CPDOC/FGV

Reza a lenda que, quando se direcionavam para o Senado, os tanques e blindados de Lott frearam bruscamente no cruzamento das avenidas Rio Branco e Nilo Peçanha ao acender a luz vermelha do semáforo. Segundo o jornalista e escritor Flávio Tavares, em seu livro “O dia em que Getúlio matou Allende”, aquela súbita freada “é o primeiro sintoma do significado concreto da operação militar”, que se faz “para cumprir a Constituição e as leis (ou até o código de posturas municipais), não para ultrapassá-las ou soterrá-las”.

“Pela primeira vez na História, um general havia comandado uma intervenção militar para fazer abortar um golpe de Estado, restaurar a Constituição e garantir a decisão do povo nas urnas. Pela primeira vez, um golpe de Estado em favor da democracia — algo insólito, contraditório e paradoxal, mas inteiramente verdadeiro”. (Flávio Tavares, “O dia em que Getúlio Matou Allende”).

O ministro do STF Alexandre de Moraes em sessão na Corte. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O curioso desenrolar do Golpe Preventivo de 1955 é uma ótima ilustração para o caso que tomou os noticiários na última semana: em um vídeo feito sob medida para sua fiel base de eleitores — ou torcedores — no último dia 16, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) desferiu ofensas e ameaças a ministros do STF e às instituições democráticas, bem como à ex-presidente Dilma Rousseff. Entre inúmeros impropérios que estariam mais bem alocados em um filme pornográfico do que em um artigo de opinião, o parlamentar xingou e ameaçou fisicamente o ministro Alexandre de Moraes, fez alusão ao Ato Institucional nº 5 (AI-5) e dirigiu ofensas homofóbicas aos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.

Silveira teve a prisão decretada no mesmo dia por Alexandre de Moraes e mantida no dia seguinte pelo STF em decisão unânime. Na sexta-feira (17), o plenário da Câmara decidiu por manter a prisão do deputado por 364 votos. Nos próximos meses a Casa deve decidir ainda se o mandato do parlamentar será cassado ou não.

O bolsonarista de carteirinha teve sua prisão decretada com base na Lei de Segurança Nacional — controverso legado da ditadura militar — e no argumento de que, devido à manutenção do vídeo nas redes sociais, o caso se enquadraria em flagrante delito de crime inafiançável, único caso no qual um parlamentar em exercício pode ser preso.

Desde então, iniciou-se um intenso debate nos meios jurídico e político quanto à constitucionalidade da prisão decretada por Moraes. Muitos juristas a consideram legal sob o ponto de vista de que as leis escritas em outro contexto tecnológico devem ser interpretadas e aplicadas tendo como base a atualidade, e não o momento de sua formulação; outros discordam, argumentando que o caso não se aplica ao flagrante delito e que, por isso, o deputado deveria ser solto e caberia então à Câmara tomar as devidas providências quanto ao seu futuro.

Este texto, porém, não se arriscará pelos mares revoltos do Direito, mas analisará a questão sob a seara de sempre: a política.

Daniel Silveira se defende por videochamada diante de seus colegas deputados (19/02/2021). Foto Michel Jesus/Câmara dos Deputados

Embora o imaginário popular ainda preserve a figura dos golpes de Estado típicos do século XX, com tanques nas ruas e bombardeios, como o almejado por Carlos Luz e Lacerda, esse assombroso capítulo do golpismo foi enterrado junto do legalista Teixeira Lott, pelos idos de 1980. Hoje as insurreições tirânicas são muito mais sofisticadas e pacientes que o movimento brancaleônico dos tenebrosos Carlos de nossa história. Hoje os golpes não apenas se estendem por anos ou até décadas¹, como na Venezuela de Chávez e Maduro, como também são feitos dentro dos limites legais e constitucionais.

O que isso significa? Simples: que os golpistas de hoje reconhecem seus limites e dentro deles arrumam brechas para ir lentamente enfraquecendo as instituições democráticas. Mais que isso: os golpistas aplicam constantes testes às instituições, para medir sua disposição e seu estado de alerta. Portanto, a soltura de Daniel Silveira, na mesma semana de sua prisão, significaria pura e simplesmente que ataques às instituições de nossa democracia permanecerão impunes.

O então deputado Jair Bolsonaro vota pela admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro dedicou seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, notório torturador da ditadura. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O próprio Bolsonaro já aplicou testes sobre a democracia inúmeras vezes: quando, ainda deputado, sugeriu golpe de Estado, fechamento do Congresso, guerra civil e fuzilamento em massa; quando homenageou, na casa da democracia, um notório torturador; quando, em campanha, aludiu a perseguição, exílio e, novamente, fuzilamento de opositores; quando, já presidente, participou de atos antidemocráticos e atentou, inúmeras vezes, contra a saúde pública; entre outras situações. Em todos esses casos, o capitão, indisciplinado tal qual seu fiel presidiário, saiu ileso; e assim as instituições lhe deram o sinal verde para seguir em frente.

As democracias mais sólidas, quando testadas, respondem com veemência aos ataques — não com notas de repúdio, mas com prisão e cassação de mandatos. As democracias mais frágeis precisam responder com veemência ainda maior, ou serão rapidamente solapadas. Teixeira Lott reconheceu isso em 1955. Hoje, o único que parece reconhecer é Alexandre de Moraes.

Mais uma vez, que o mérito jurídico das ações do ministro seja julgado por quem couber. E que, caso considerada imprópria sua ação, seja devidamente revogada ou editada — afinal, ao contrário do que deseja o inexpressivo deputado, não vivemos em um Estado de exceção. Mas o ponto é: o recado oferecido por Moraes, apesar de consideravelmente atrasado, é crucial para a proteção da democracia brasileira. O recado de que as instituições estão alertas e dispostas ao confronto em nome da proteção do Estado democrático de direito é fundamental e deve ser dado de forma contundente e inflexível.

O filósofo austro-britânico Karl Popper oferece às democracias modernas uma teoria já amplamente discutida e trabalhada, mas que ainda pouco parece ser posta em prática: o chamado “paradoxo da tolerância”. A ideia de Popper é que se uma sociedade tolerar a intolerância, os intolerantes podem fugir de controle e subverter a sociedade, transformando-a em uma sociedade de intolerância, capaz de cometer inúmeras atrocidades. A base de uma sociedade tolerante, portanto, passa por não tolerar o intolerável, a fim de proteger a própria tolerância.

O deputado federal Daniel Silveira quebra placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco em ato de campanha, em 2018, junto do deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ) e do ex-governador Wilson Witzel (PSC-RJ). Foto: G1

A democracia é um constante exercício de limitação do intolerável. É intolerável que um deputado exalte um ato institucional que suspendeu o habeas corpus, que instalou a censura prévia, que permitiu o fechamento do Congresso, que suspendeu direitos políticos, que generalizou a tortura e o assassinato de dissidentes políticos. É intolerável que um parlamentar exalte um torturador na casa da democracia e saia impunemente, rumo ao Palácio do Planalto. É intolerável que figuras empossadas pela democracia sujem seus prestigiosos cargos em bravatas criminosas que escarram sobre a sociedade e a Constituição que juraram proteger.

Quaisquer que sejam os méritos ou os desdobramentos de suas recentes ações, ao empunhar suas armas constitucionais e decretar a prisão de um golpista declarado, Alexandre de Moraes não se iguala, mas se aproxima de Teixeira Lott em coragem e dedicação para proteger as instituições democráticas. E que triste a percepção de que há novamente um solitário nessa missão crucial de defender os muros do Estado democrático.

Após o fim da estadia de Jair Bolsonaro no Planalto, é crucial que os congressistas se dediquem a uma ampla reformulação das leis que protegem a nossa democracia, seja com uma atualização razoável e embasada da Lei de Segurança Nacional ou por meio de emendas à Constituição ou ao Código Penal, a fim de não mais tolerar o intolerável. As democracias modernas precisam, com máxima urgência, se debruçar sobre o desenvolvimento de mecanismos mais eficazes de identificar e retirar do baralho as cartas contaminadas pelo golpismo e pelo autoritarismo.

Enquanto isso, celebremos a coragem dos poucos democratas que vão além das notas de repúdio.

Nota de rodapé:

¹Em meu último texto, “A democracia em frangalhos”, destaco os riscos que a democracia brasileira corre e explico algumas características dos golpes que ameaçam as democracias modernas. Clique aqui para acessar.

--

--

João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).