A esquerda já era: a falência da oposição ao governo Bolsonaro

Disputas internas, ausência de programas, brigas de ego e falta de foco: o retorno da receita que sempre faliu oposições

João Vitor Castro
Revista Brado
6 min readOct 14, 2020

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No último dia 8, a advogada, professora e youtuber Gabriela Prioli publicou um vídeo em seu canal, chamado “Por que a esquerda se mantém ineficaz contra Bolsonaro?”, cuja capa expõe fotos de Ciro Gomes, Fernando Haddad e Marcelo Freixo com a pergunta: “A esquerda já era?”. No vídeo, Prioli afirma que a oposição precisa concentrar seu foco em fazer de fato oposição, suprimindo divergências internas em nome da chamada “frente ampla” pela democracia, e em apresentar programas e valores que resgatem novamente o eleitor, unindo setores diferentes do pensamento de centro e esquerda.

Bastou isso para que setores “progressistas” das redes sociais entrassem em polvorosa, menos pelo conteúdo do vídeo e mais por sua capa, reafirmando exatamente o que a comentarista afirma e respondendo à pergunta: sim, a esquerda já era. Mas este texto não é sobre Gabriela Prioli, YouTube e redes sociais, e sim sobre a falência da oposição.

Imagem: Reprodução/Twitter

Há um tempo que pretendo escrever sobre a falta de articulação da oposição, e a agitação de parte da esquerda nas redes sociais nos últimos dias, embora em escala pequena, calhou como o momento mais oportuno para isso, pois foi justamente em uma peça de opinião sobre a desarticulação e a escassez de estratégia que essas mesmas desarticulação e escassez de estratégia se provaram reais.

Antes de tudo, precisamos refletir sobre o papel da oposição em uma democracia. Apesar de ser uma das coisas mais básicas da política contemporânea, poucos de fato o entendem — e não podemos julgá-los, pois somos ensinados a não saber esse tipo de coisa, tanto pela falta que faz um modelo educacional que ensine o que é e como se faz a política, quanto por um sistema político com raízes profundas na antidemocracia, no golpismo e na violência. Essas origens, que ainda deixam suas marcas no fazer político brasileiro, geram inúmeras distorções interpretativas.

O candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2014, Aécio Neves, imediatamente passou a questionar o resultado das urnas e apontar fraude eleitoral, mesmo sem qualquer evidência. Ali, a caixa de Pandora foi aberta. Foto: Andressa Anholete / AFP

A maior delas, e mais viva no atual momento, é o entendimento de que a oposição serve para atrapalhar ou derrubar governos. Fruto de uma política belicista, na qual rivais se põem como inimigos, e de oposições que, sobretudo a partir de 2014, de tudo fizeram para chegar ao poder, esse pensamento se torna cada vez mais comum em todos os núcleos políticos e sociais. De um lado, os governistas acreditam que seus opositores são, na verdade, figuras fisiológicas dispostas a romper a democracia em benefício de seu projeto particular; de outro, muitos opositores interpretam sua atuação como um boicote generalizado a qualquer projeto advindo do governo, com o objetivo final de retomar para si o poder.

Na verdade, o papel real da oposição é o de fiscalizar o governo e exercer pressão contra projetos que extrapolem os princípios democráticos, exercendo o equilíbrio de forças antagônicas e se postulando como um dos freios e contrapesos necessários à democracia, cuja função é conter o poder dos que controlam o Executivo e fazer a voz das minorias do momento ser ouvida. Portanto, a oposição é indispensável para o pleno exercício democrático — bem como o governo.

Além disso, é papel da oposição formular estratégias, programas, propostas bem desenvolvidas e um claro plano de ação em busca da tomada — ou retomada — do poder, por vias eleitorais, ao fim do mandato daquele que ocupa a chefia de governo. Não é crime buscar o poder: na política, é o mínimo que se espera de qualquer um. Política é luta, em última instância, pelo poder e sua manutenção — resguardadas as regras do jogo.

Após uma eleição plebiscitária sobre a prisão de Lula, o Partido dos Trabalhadores abandonou por completo a prática de oposição, concentrando todas as suas forças na campanha pela soltura do ex-presidente. O papel de que deveria ter sido cumprido desde o início pelo maior partido de esquerda do país só foi retomado após a liberação de Lula, e iniciado por ele próprio. Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Hoje, entretanto, faltam as duas coisas à oposição: o papel de se opor de fato e a estratégia de conquista dos corações e mentes do eleitorado. Os partidos e bancadas opositores, sobretudo à esquerda, parecem misturar as duas coisas: fazem campanha quando se deve fazer política e fazem política quando se deve fazer campanha.

E que fique claro que fazer oposição de fato não é implodir quaisquer propostas oriundas do governo, mas analisá-las criticamente, buscar torná-las melhores e, quando for necessário, derrubá-las. A oposição não deve jogar contra o governo; mas em favor do país. Ora isso significará votar com o governo, ora contra. É preciso saber identificar esses momentos.

O que se vê hoje, entretanto, é que boa parte dos políticos de oposição têm utilizado de seus momentos de votação e debate em prol de discursos colossais e inflamados contra o governo e seus apoiadores, enquanto os momentos mais hábeis para tal resultam em posições mornas e frustrantes, quando não em completas abstenções da palavra e dos gestos.

Embora muitas das pautas levantadas por setores políticos minoritários, sobretudo os mais liberais (à esquerda e à direita), sejam sim importantes e relevantes, falta estratégia e percepção de prioridades. Quais são as verdadeiras urgências do momento? Foto: Henry Milleo

Enquanto isso, a massa de eleitores mais ativos à esquerda segue com a subversão de prioridades¹ típica dos últimos anos, debatendo leis de drogas com operários e luta de classes com o empresariado, tecendo críticas a governos de esquerda que, ao invés de construírem ciclovias, deram aos pobres a oportunidade de comprar carros, em um distanciamento da realidade similar ao da internauta que criticou Gabriela Prioli por “resumir” a esquerda a “3 homens brancos héteros cis”.

E assim, em meio a essa turbulência, em que todos se detestam e questionam o real posicionamento político dos “adversários não tão adversários assim”, alguns poucos setores e figuras da esquerda, do centro e de parte da direita, que cumprem com fidelidade seu papel de opositores, são boicotados e implodidos por suas próprias bancadas.

Celso Russomano (Republicanos) lidera com vantagem as pesquisas eleitorais em São Paulo. Atrás dele, há pelo menos 11 candidatos opositores ou independentes do bolsonarismo: 7 de esquerda; 3 de direita; e um de centro. Foto: Ettore Chiereguini/AGIF

Essa inversão tem se mostrado profundamente presente e danosa nos debates eleitorais das grandes cidades do país. Em uma tosca tentativa de tornar as cidades palcos da política federal, candidatos de centro e esquerda têm se pulverizado em muitas chapas, com coalizões que beiram a individualidade, em uma clara disputa entre quem é mais antibolsonarista. O resultado: candidatos bolsonaristas, em geral profundamente aventureiros, incapacitados ou corruptos, lideram as pesquisas em diversos municípios, e levarão, sem dúvidas, uma ampla gama de cidades.

E assim será daqui a dois anos, a menos que se mude por completo a forma de se fazer política nos núcleos de oposição. Mas, para isso, precisamos nos perguntar: onde estão os projetos de oposição? Onde estão os projetos realistas, verdadeiros, adequados aos novos tempos e não mais aprisionados em um passado distante, que façam sentido e sejam capazes de fisgar o eleitorado?

Sem projetos, sem campanhas, sem adequação, unidade, coalizão e compromisso, a oposição como um todo já era.

Nota de rodapé

¹Clique aqui para ler o texto “Um Brasil sem sentidos”, do também colunista de Política da Brado Anderson Barollo, que discute a crise identitária que marca a esquerda e a direita na atualidade.

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João Vitor Castro
Revista Brado

Jornalista, editor-chefe da Revista Brado e autor de “Refluxo” (Pedregulho, 2023).