Diversidade sexual e neurodiversidade: como curar uma sociedade doente?

Passar a existir “fora do armário”, seja o armário LGBTQIAP+, seja o “armário autista”, pode ser uma alavanca para pensarmos outras maneiras de existir num mundo que nos quer abatidos, exauridos e, ouso dizer, sequer deseja que existamos

Marlon C. Silva
Revista Brado
7 min readJul 20, 2022

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Foto: Reprodução/Neurodivers/Facebook

Um astronauta ou uma figura com traje de mergulhador são dois dos símbolos que se vê com certa frequência em páginas da internet que discutem sobre a neurodiversidade. Esse é um termo guarda-chuva para as condições de pessoas com transtornos do neurodesenvolvimento, entre elas autistas e pessoas com TDAH. A figura nos pode fazer refletir sobre os pontos em comum entre a comunidade neurodiversa e outras comunidades formadas por grupos marginalizados, como a LGBTQIAP+. A diversidade humana, seja de neurodesenvolvimento, seja sexual e de gênero, pode nos ajudar a compreender tanto as nuances da interação social, quanto aquelas de nossas identidades, sempre em conflito, ou, por que não dizer, sempre em intersecção e relação.

Para o advogado comercial Tom Moran, entrevistado pelo portal da associação inglesa national autistic society, a experiência de ser um homem gay e autista é quase comparável à experiência de ter duas identidades. Em alguns momentos, as duas têm intersecções muito marcadas; em outros, não tanto.

Tom segue a entrevista dizendo que a experiência de existir na intersecção entre esses dois grupos pode ser menos satisfatória em ambientes como o do mercado de trabalho, em que políticas de inclusão para pessoas LGBTQIAP+ já alcançam determinado espaço, enquanto as políticas para inclusão de pessoas neurodiversas sequer existe, ou existe de maneira muito rudimentar.

De acordo com as pesquisadoras Lily Cresswell e Eilidh Cage, em artigo publicado na revista Journal of Autism and Developmental Disorders, o processo que conhecemos como aculturação se refere a mudanças culturais e psicológicas geradas pelos encontros entre culturas diferentes. Ainda segundo as autoras, mesmo que a palavra aculturação se refira tipicamente a processos de mudanças na identidade de indivíduos migrantes, é possível dizer que acontece um processo análogo à aculturação quando falamos dos processos para aprender a lidar com a própria identidade, como uma pessoa autista em um mundo neurotípico — compreende-se neurotípica a pessoa que não se enquadra em nenhum tipo de transtorno do neurodesenvolvimento, como autismo, TDAH ou outros.

É possível afirmar que dificilmente se encontrará algum grupo de pessoas que tenha uma experiência completamente monolítica, homogênea. Digo isso a você, caro leitor, para também dizer sobre uma característica importante — senão crucial — daquilo que chamamos Transtorno do Espectro Autista (TEA): o próprio nome dessa condição de neurodesenvolvimento aponta que ela é um espectro e que, portanto, não pode existir um grupo monolítico, completamente homogêneo, de pessoas com características autísticas. Isso posto, não é de se considerar, ao conhecer uma pessoa autista, que seja possível falar sobre todas as outras pessoas autistas. Você, lendo este texto, pode chegar à conclusão de que a afirmação anterior se aplica também às pessoas de maneira geral, não apenas a nós, pessoas neurodiversas, afinal, todas as pessoas carregam características únicas, ao passo que também têm pontos em comum com aqueles à sua volta.

O ponto que tento destacar, entretanto, é o de que ao se falar em grupos de pessoas que, além de serem tão diversas como qualquer outro grupo, têm também uma opressão em comum entre si, as suas identidades podem ser atravessadas não apenas pela singularidade inerente a todos os seres humanos, mas também pelas intervenções de um mundo que disputa as narrativas sobre tudo o que compõe a realidade, e isso inclui a definição de pessoa, de ser humano, e de qual é a pessoa que "merece" direitos ou não.

Pode ser que a disputa de narrativas citada acima se aplique tanto a pessoas neurodiversas quanto às pessoas LGBTQIAP+, mas vamos começar pelo primeiro grupo entre esses dois: segundo os pesquisadores Richard Woods, Damian Milton, Larry Arnold & Steve Graby, no artigo Redefining Critical Autism Studies: a more inclusive interpretation (2018), publicado na revista Disability & Society, a pesquisa científica de pessoas neurotípicas sobre o autismo conta com a falta do entendimento das identidades de pessoas autistas e frequentemente representa de maneira errônea a cultura desses indivíduos e os seus movimentos, de maneira geral.

Pensar sobre as intersecções entre as nuances de se existir no transtorno do espectro autista e na comunidade LGBTQIAP+, como dito anteriormente, pode levar a destacar ainda mais que vivemos em uma realidade de disputas e de grupos que se empenham em exercer um controle sobre os demais. Um ponto em comum, que destaca esses esforços de grupos reacionários neurotípicos-cishetero pelo extermínio de pessoas que não se encaixam em seus padrões de humanidade são as inúmeras propostas de “cura” para as condições de “queerness” e transtornos do neurodesenvolvimento.

O caso mais recente do tratamento desumanizado de pessoas neurodiversas foi noticiado em portais de notícias e jornais de todo o Brasil por volta de Dezembro de 2021: com manchetes ainda contendo termos ultrapassados — e amplamente rejeitados pela comunidade autista –, como “autismo severo”, a internet viu a notícia de que o tratamento de eletrochoque tinha sido sugerido pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), vinculada ao Ministério da saúde do governo federal vigente, para tratamento de pessoas autistas. Essas investidas, bem como a proposições charlatanescas de “cura” para o autismo, demonstram uma visão a ser superada, a de que a neurodiversidade pode ser tratada como uma doença e, como toda doença, deve ser extirpada.

O tratamento exposto acima é também ponto em comum entre neurodiversidade e diversidade sexual: mesmo tendo saído, em 1990, da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda em 2021 e 2022, o tema volta a aparecer e a causar discussão nos veículos de mídia tradicional e online, pondo em questão as condições de existência das pessoas queer como passíveis de cura. Chega o ponto em que podemos nos perguntar se faz sentido que a existência das condições e identidades de grupos inteiros sejam postas para discussão pública –ou juri–, em que se decidirá entre duas opções: ou essas pessoas merecem existir, ou então seu extermínio será operado através do tratamento de suas características naturais como doenças, por meio de métodos análogos à tortura.

No país que caminha a passos largos para o abismo e que se torna a cada dia o país do absurdo, urge dizer da necessidade por olhar as existências de pessoas LGBTQIAP+ e pessoas neurodiversas como inerentes à diversidade humana. Essa realidade entra para a lista de absurdos, uma vez que, do alto de nosso acesso à informação e à escolarização elevada, podemos acabar dizendo “é óbvio que essas pessoas têm direitos e individualidades”, e podemos nos surpreender ao perceber que o óbvio para nós pode não ser óbvio para todos. Poderíamos haver tido a ilusão de que progredimos muito desde as últimas décadas, mas podemos deparar com a realidade de que ainda estamos longe de completar nosso caminho até uma sociedade saudável, que trate todos os seres humanos como de fato humanos.

Como visto acima, a comunidade neurodiversa passa por um momento que poderíamos chamar peculiar, pelo fato de que a pesquisa sobre o neurodesenvolvimento avança, ao passo que ainda falta muito para o entendimento mais acurado e inclusivo das condições de neurodiversidade, por meio da consideração do input de pessoas neurodiversas na pesquisa e extensão sobre suas próprias existências. Ora, se a academia não desce de suas cadeiras altas para escutar e ver o que acontece para além de seus muros, torna-se difícil fazer com que sua produção de conhecimento se torne de fato uma contribuição para uma sociedade mais justa. Uma maneira, entre muitas outras, de se alcançar o que descrevo acima, pensando a pesquisa e produção de conhecimento sobre neurodiversidade, pode ser o acesso das pessoas neurodiversas à educação e à participação ativa na pesquisa científica.

Reitero: o momento pelo qual passamos é peculiar porque, ao mesmo tempo em que se faz necessário dizer sobre a necessidade da inclusão do discurso das pessoas neurodiversas e pessoas LGBTQIAP+ na produção de conhecimento sobre nossas próprias condições de existência, o que temos visto, a partir do avanço da ciência e, portanto, da medicina e da comunicação social, é um boom de jovens autistas ocupando plataformas de conteúdo digital.

O que se vê a partir dessa crescente visibilidade nos meios de comunicação social é algo facilmente relacionável ao processo para “sair do armário”, pelo qual passam muitas das pessoas LGBTQIAP+. O processo precisa acontecer várias vezes e se torna menos difícil ao passo que se vê outras pessoas à volta fazendo o mesmo.

Para pessoas neurodiversas, o termo que pode substituir a saída do armário é o “unmasking”, que pode ser traduzido como “desmascaramento”. O termo se refere ao movimento de deixar de esconder as características atípicas que nos caracterizam e que sempre estiveram lá. Entender os movimentos repetitivos, os interesses restritos, as sensibilidades sensoriais e as dificuldades na interação social — características autísticas — como características não necessariamente degradantes ou vergonhosas parece algo muito similar com o movimento de passarmos a nos orgulhar da bandeira do arco-íris, de nossas expressões de gênero dissidentes, de nossas sexualidades que destoam da cis-heteronormatividade.

Passar a existir “fora do armário”, seja o armário LGBTQIAP+, seja o “armário autista”, pode ser uma alavanca para pensarmos outras maneiras de existir em um mundo que nos quer abatidos, exauridos e, ouso dizer, sequer deseja que existamos. Passar a tomar parte no debate sobre nossas identidades e sobre nossas condições de existência, tanto como pessoas neurodiversas, quanto como pessoas LGBTQIAP+, pode abrir espaço para medidas afirmativas cada vez mais concretas, uma vez que o discurso e a participação por meio da conversa e do debate devem vir acompanhados de organização política e de novos projetos de sociedade.

As questões que os temas da neurodiversidade e diversidade sexual despertam não podem e tampouco devem ser abordadas em sua integralidade por meio de apenas um texto de algumas páginas em uma revista. Mesmo assim, a mensagem que pode ser vista em existir nessa intersecção entre a neurodiversidade e a diversidade sexual é, mais do que nunca, que a libertação vem da visibilidade de nossas ideias, de nossas palavras e de nossas identidades. E não pode ser posta em prática se estivermos dentro do armário.

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Marlon C. Silva
Revista Brado

🌈Queer | ♾ Autista | Ativista | Licenciado em Língua e literatura Inglesa| Colunista da Revista Brado