Lições chilenas

O que a reforma constitucional no Chile tem a ensinar aos brasileiros

João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado
6 min readMay 31, 2021

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Protestos pacíficos na capital Santiago no Chile em 10 de novembro de 2019. Foto: Carlos Vera/Colectivo2+

No último sábado (29), as maiores cidades brasileiras registraram protestos de grandes proporções contra o governo Bolsonaro e sua condução da pandemia do novo coronavírus. O movimento, que provavelmente terá continuidade nos meses seguintes, é mais um capítulo da crise política enfrentada pelo Brasil há quase uma década.

Neste texto, porém, vamos olhar para os recentes resultados dos protestos no Chile, pois é natural em situações como essa fazer comparações com casos semelhantes. Além disso, olhar primeiro para a América Latina é sempre interessante, tendo em vista nossas similaridades. No entanto, é importante ter em mente um pouco do histórico recente do país para tentar compreender os fatos que nos trouxeram até aqui e qual o seu real impacto sobre a sociedade.

Assim como o Brasil, o Chile foi um dos países da América Latina cuja transição de uma ditadura para a democracia se deu através de meios institucionais, ou seja, o próprio Estado encaminhou o processo de desmonte de suas estruturas de governo ao mesmo tempo que moldou a forma com a qual o novo regime democrático iria funcionar. Enquanto no Brasil esse processo resultou na elaboração de uma nova Constituição com algumas características progressistas e liberais — a despeito do “acerto de contas” dos militares com as classes políticas tradicionais — a transição no Chile foi feita de forma a buscar a legitimidade das ações anteriores e posteriores a este regime.

A ditadura se iniciou com um golpe de Estado violento em 1973, que pôs Augusto Pinochet no poder, mas já no final dos anos 1970 se inicia o processo de transição democrática. Em 1980 com a escritura de uma nova Constituição, garantiu-se a legitimidade das ações do regime, que somente em 1990, mais de uma década depois do início, teve seu fim.

Militares golpistas durante o bombardeio contra o palácio presidencial “La Moneda” em 11 de setembro de 1973. Foto: AFP

Ou seja, diferentemente do próprio Brasil e outros países do continente onde o regime democrático foi fundado como uma forma de romper, em maior ou menor grau, com o estado de exceção de antes, no Chile houve o processo de criar uma democracia herdeira do regime ditatorial. Em seu texto, a Constituição de 1980 e suas Disposições Transitórias autorizavam o Executivo a realizar censura, repressão, decretar estado de emergência ou catástrofe, prender pessoas, restringir o direito de reunião e liberdade de informação, proibir a entrada de indivíduos no território nacional e expulsar aqueles que defendessem ideais marxistas e de incentivo à violência.

Houve, ainda assim, tentativas de buscar a reconciliação entre a população e o Estado através da aplicação de justiça sobre os agentes repressores. O primeiro presidente eleito após o ditador Augusto Pinochet, Patrício Alwyin Azócar, criou através de um decreto a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación — em moldes bem similares à Comissão Nacional da Verdade no Brasil. Essa comissão avaliou as denúncias de crimes e abusos de direitos humanos do período entre 1973 e 1990, assim como outras comissões foram criadas em governos seguintes buscando cumprir este mesmo objetivo.

Apesar de terem sido passos em direção a um caminho de maior justiça, ao fim de todo esse processo, os mesmos instrumentos jurídicos que edificaram a política de julgamentos e execuções sumárias, perseguição e repressão permaneceram intocados. O tempo passou, mas como acontece frequentemente na América Latina, a conta sempre chega cedo ou tarde: assim chegamos aos eventos de 2019 e 2020 no Chile.

Nesse biênio, protestos explodiram na capital Santiago por conta do aumento do preço de passagens de metrô na capital. Com o aumento das tensões, o governo impôs um toque de recolher, decretou estado de emergência e pôs militares no comando da repressão. A essa altura, os protestos se espalharam ao longo do país e as reinvindicações tomaram um escopo maior, indo desde a insatisfação com as desigualdades sociais, a falta de acesso aos serviços básicos e a ausência de benefícios sociais até a violência policial e militar.

Em suma, uma questão que visava somente um problema local se tornou uma verdadeira revolta social generalizada, que expôs a pior face do Estado chileno ao se constatar a excessiva truculência com a qual ele lidou com a situação. A elaboração de uma nova Constituição, compreensivelmente, se tornou uma das reinvindicações primárias nestas manifestações.

Em 15 de novembro de 2019, após negociações entre o governo e a oposição, um plebiscito foi marcado para abril de 2020 para decidir se uma nova Carta seria ou não elaborada. Mesmo após ser adiada para outubro por conta da pandemia do novo coronavírus, a votação recebeu uma participação maior que a média das últimas eleições e teve sua proposta aprovada. Após novas postergações, a eleição dos constituintes foi realizada nos últimos dias 15 e 16 e o processo de elaboração de uma nova Constituição enfim começou. Foram 155 constituintes eleitos, havendo proporção igual entre homens e mulheres e com 17 cadeiras exclusivas para os povos indígenas.

Mulher confronta policial durante protestos violentos. Em sua mão, a bandeira do povo mapuche, uma nação indígena presente no Chile, que há séculos sofre com a opressão e exclusão no Chile e na Argentina. Foto: Carlos Vera/Colectivo2+

Não é objetivo deste texto tentar prever o que deve ou pode acontecer ao fim desse processo, mas é interessante constatar que essa caminhada parece se aproximar daquilo que ocorreu com a Bolívia em 2009. Nesse ano, o país vizinho ao Chile adotou uma nova Constituição que objetivava justamente solucionar questões similares às que essa no Chile parece tentar cumprir, em especial solucionar o problema da exclusão dos povos indígenas no processo político.

Essencialmente, a Constituição boliviana buscava refundar a república e suas instituições aos moldes de um Estado Plurinacional para se adequarem a um novo momento da vida política e social do país, de forma que os povos originais enfim possuíssem mais voz em seu Estado. Mesmo que a democracia boliviana não possa ser considerada perfeita, como evidenciado nos eventos dos últimos dois anos, é inegável que os bolivianos avançaram na direção certa com sua nova Carta Magna, e por isso merecem ser vistos como um exemplo de superação do passado autoritário e excludente.

Por fim, o resultado desse processo a longo prazo é, obviamente, incerto, mas sempre há uma lição a se aprender. No Brasil, a democracia é testada dia após dia por um governo que faz juras de amor com o passado autoritário, e nós brasileiros ainda passaremos pela maior provação de nossa Sexta República no próximo ano, com as eleições presidenciais. Se o Brasil despencará de uma vez para uma nova experiência autoritária nos próximos anos é impossível de ter certeza, mas ainda há tempo de criar consciência, organizar, preparar e resistir da forma que for necessária frente aos abusos, desmandos e absurdos de nosso Estado. Os protestos do último sábado servem justamente á este propósito.

Resgatar a experiência recente de nossos vizinhos chilenos, que obtiveram uma incontestável vitória na direção de uma sociedade mais participativa e com menos poderes tirânicos concentrados no Estado, é imprescindível para nós, que necessitamos de seguir em frente na mesma luta. Isso não significa que uma nova Constituição é o único caminho para a superação de nossos problemas — até porque nosso sistema é republicano, o problema está na leniência das instituições — somente que, qualquer que seja a solução que encontrarmos, ela virá da mobilização e da participação popular. Esta é a lição chilena para o Brasil e agora posso apenas torcer que a aprendemos á tempo de fazer a diferença.

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João Pedro Sabino Frizzera
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha | Colunista de Política da Revista Brado.