Padrão de beleza: um olhar colonizado sobre corpos femininos

O conceito atual de beleza, não coincidentemente, perpetua o privilégio de uns sobre outros

gabriela brito
Revista Brado

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“A ‘beleza’ não é universal, nem imutável, embora o mundo ocidental finja que todos os ideais de beleza feminina se originam de uma Mulher Ideal Platônica. O povo maori admira uma vulva gorda, e o povo padung, seios caídos.” — Naomi Woolf em “O Mito da beleza”.

“As Três Graças”, obra de Peter Paul Rubens.

Cabelos lisos, nariz afilado e pele bronzeada — porém branca. Magra, com a cintura fina, os seios fartos e o quadril largo. Com poucas variações, essa é a representação da mulher brasileira na mídia — e assim somos cobradas para ser. Entretanto, tal representação comumente se contradiz com a realidade material, que, ao invés de generalizadamente ocidentalizada — branca, magra, alta e jovem — é, sobretudo, latina e demasiadamente miscigenada — indígena, preta, amarela, gorda, velha, e tantas outras coisas.

Em uma rápida pesquisa no Google, vê-se que padrão pode ser definido como um modelo para medidas, uma norma determinada e até mesmo um nível de qualidade. Falar de padrão de beleza é, portanto, falar de uma norma estética que determina quais são as características consideradas belas, tendo em vista cor de pele, peso, curvatura do cabelo e traços.

Porém, antes de tudo, ao tratar de padrões, é imprescindível falar sobre quem o estabelece. Afinal, não é coincidência que o olhar de todos nós identifique o que é belo exatamente da mesma forma. Na verdade, ao evidenciar quem o determina, se elucida toda a questão: o padrão de beleza é designado pela classe vigente no poder hegemônico.

Na esquerda, parte da obra O Nascimento de Vênus, pintada por Sandro Botticelli entre 1485 e 1486. Na direita, a estatueta Vênus de Willendorf, estimada como esculpida entre 28 000 e 25 000 anos antes de Cristo.

Não é novidade para ninguém que os padrões de beleza se reformularam diversas vezes através da história, provando-se um conceito não só subjetivo, mas efêmero e produto de um contexto social. No Renascimento, por exemplo, as mulheres representadas nas obras de arte esbanjavam formas mais avantajadas e curvas voluptuosas. Isso porque, em um contexto sem meios de conservação de alimentos, o acúmulo de gordura era sinônimo de fartura e, logo, indicava a classe social. Os quilinhos a mais eram um status e uma forma de distinguir as classes.

Outro exemplo é do período pré-histórico. Em um contexto onde o alimento era escasso, as formas voluptuosas não só sinalizavam fartura como também fertilidade, especialmente em figuras femininas, justamente pelas suas capacidades reprodutivas. Em ambos contextos, a figura admirada é a figura da classe dominante. A lógica é: você é bonito se esbanjar poder aquisitivo.

Resultado da busca “Rica Vírus”, no Google Imagens. A brincadeira popularizada na internet sugere que celebridades contaminadas pelo vírus da riqueza, não coincidentemente, tornam-se belas. Foto: Reprodução/Google Imagens

Ora, olhemos para os padrões definidos atualmente e vejamos qual classe é detentora de tempo, dinheiro e energia para alcançá-lo. Quem é que pode investir em academia, nutricionista, dermatologista e os milhares de tipos de procedimentos estéticos? Qual classe, geralmente, mora próxima à praia ou possui residência com piscina, podendo passar longas horas se bronzeando? Falando, inclusive, de uma esfera global, e considerando o nosso padrão estético como branco, magro, alto e com cabelos lisos, pensemos: quem, no mundo, possui essas características sem muitos esforços?

O nosso padrão de beleza é eurocêntrico. Em vários aspectos, a nossa sociedade é influenciada por essa lógica, que possui raízes no colonialismo europeu do século XVI e que toma a cultura europeia como medida universal, ignorando a nossa subjetividade enquanto país latino, miscigenado e multicultural. Tal lógica se manifesta na forma como interpretamos a realidade de outros países fora da Europa, a negando e criando estereótipos — e não é diferente com a concepção de beleza.

Dito isso, vale refletir: será possível encaixar um molde tão restrito em um país com realidades tão diversas?

“Enquanto vivermos em uma sociedade em que capitalismo, racismo e misoginia se retroalimentam em constante simbiose, toda aparente inclusão custa caro.” — Nathália Gouveia em seu texto “Sofisticação dos procedimentos estéticos”.

É óbvio que o padrão de beleza é algo que atinge também a classe masculina, visto que, como abordado, atravessa questões de classe e raça. Entretanto, é inegável que mulheres são mais afetadas por essa superestrutura. A busca feminina incansável pelo ideal de beleza é conveniente ao patriarcado na medida em que coloca a apreciação masculina como uma importante meta feminina — acima de fatores financeiros e acadêmicos, por exemplo. A partir do momento em que a sua busca e manutenção se torna uma prioridade, o padrão de beleza faz-se um dos tantos mecanismos de controle da capacidade feminina, dado que se gasta demasiado tempo, energia e dinheiro — que, vale lembrar, é menor do que deveria — em algo que, sejamos sinceros, em nada acrescenta a ninguém.

Dessa forma, mulheres estão mais focadas em rotinas de skin care, maquiagem e coleções de sapato do que em suas carreiras, por exemplo — tornando-se concorrentes menos expressivas para os homens e, às vezes, dependentes financeiras de seus parceiros. Tampouco sobra tempo e energia para estudar e se politizar, de fato, sobre a realidade patriarcal, para, quem sabe, transformá-la — e aqui se encontra o perigo do feminismo liberal¹, ao esvaziar o movimento feminista e o transformar em “compre esse salto alto e se empodere!”. Além disso, vale destacar o quão lucrativo é o estabelecimento desse padrão para toda uma indústria.

Considerando, então, que o padrão de beleza é determinado pela classe dominante e que se trata de um mecanismo de controle da capacidade feminina, como fica a realidade da mulher abrangida por ambas interseccionalidades? Como garantir que uma mulher negra, gorda e pobre consiga viver sem ter que escolher entre ter sua autoestima massacrada diariamente ou submeter o próprio corpo à busca inalcançável por um padrão de beleza que não a contempla?

Não raramente, a busca pela aparência perfeita é defendida por mulheres, até mesmo feministas, sob o argumento de que se trata de uma questão subjetiva e individual. Alega-se que feminismo é a liberdade de fazer o que quiser, incluindo as modificações do próprio corpo a fim de alcançar uma aparência desejável. Defende-se até que essa é uma forma de alcançar uma maior autoestima, contribuindo para o empoderamento feminino. Eu concordo com a parte da liberdade de se fazer o que quiser, mas discordo de que essa liberdade seja plena.

Só existe liberdade para escolher quando há liberdade no querer. Em uma sociedade fortemente influenciada por uma indústria de massa, onde a publicidade está cada vez mais presente através das redes sociais, e cada vez mais ritos de beleza são criados e incentivados, não é possível afirmar que nossas vontades são genuínas. Isso sem nem abordar a socialização feminina — tema para um próximo texto — que impõe a aparência física como um valor importante para as mulheres desde muito cedo.

Sobretudo quando esse ideal não é feito para a nossa realidade. Diante de um contexto onde 55,7% da população brasileira adulta possui sobrepeso e 57,3% é não-branca, esse padrão é, simplesmente, inalcançável para muitas. A “liberdade para fazer o que quiser” reflete em mulheres sendo divididas em dois grandes grupos: algumas sendo sempre categorizadas como inferiores — coisa que ninguém quer ser — e outras numa constante busca por uma estética que agrada o olhar masculino e causa inveja no feminino.

Veja, meu objetivo não é dizer que deve-se proibir mulheres de realizar procedimentos estéticos ou prezar pela própria aparência, até porque eu mesma o faço. Já afirmei em outros textos e provavelmente seguirei repetindo: a opressão não acaba porque tomamos consciência dela.

Além disso, é verdade que o processo se torna agradável. Mesmo em um lugar demasiado privilegiado, ser uma mulher dentro do padrão de beleza me fez ser refém dela. Desde que me entendo por gente, aprendi que minha aparência estaria sendo patrulhada e ser elogiada quando considerada bela passou a ser satisfatório. Muito cedo descobri que isso me daria vantagens sociais. E é justamente por saber quão confortável é estar nesse lugar de submissão que vejo hoje quão danoso é ter como meta algo que não só é inatingível — me destinando a uma eterna frustração — como também é inútil.

É algo que, durante todo o período entre pré-adolescência e início de juventude, me fez perder tempo a ser utilizado para estudar, me entreter, descansar ou só ser criança, para pesquisar sobre o que poderia ser feito para consertar tal defeito ou melhorar tal atributo físico. Tempo que poderia ser investido em qualquer coisa que me valorizasse enquanto ser humano, de fato. Meus talentos e aptidões. Ao invés de, voluntariamente, sentir satisfação em, eu mesma, me colocar em um lugar de objeto² — afinal, desde a Grécia Antiga, pasmem: beleza é coisa para objeto. Temos casas bonitas, roupas bonitas, obras bonitas e, homens, possuem mulheres bonitas.

Logo, diante de uma sociedade que coloca a beleza como o principal atributo feminino, recompensando mulheres que buscam incansavelmente um ideal de beleza e desaprovando as que contrariam essa expectativa, é preciso, ao menos, olhar criticamente e reconhecer que a submissão diária aos rituais de beleza não é uma mera escolha individual. Não há como falar em liberdade se a outra opção não é apresentada como uma possibilidade, de verdade.

Por fim, destaco que o caminho não é criar um padrão que inclua mais pessoas, mas buscar a não existência de um padrão. É, mais do que tudo, lutar contra uma estrutura que sistematicamente coloca a aparência como a principal virtude das mulheres; uma estrutura que nega a naturalidade do corpo feminino — como os pelos, o rosto lavado e o corpo não torneado — e que faz com que meninas de 4 anos se sintam insatisfeitas com a própria imagem.

O longa Pequena Miss Sunshine (2006) acompanha a pequena Olive, uma menina fora dos padrões esperados, mas que sonha em ser vencedora de um concurso de beleza. Foto: Little Miss Sunshine/Fox Searchlight Pictures

Devemos estar atentas e pensar sempre se a consequência dessa “liberdade para fazer o que quiser” se manifesta em indústrias mais ricas e homens mais satisfeitos. Que empoderamento é esse que faz com que mulheres comprometam tantos fatores, como a situação financeira e a saúde mental, em detrimento da apreciação masculina?

Qual a vantagem em suprir uma autoestima que se baseia não no fortalecimento das próprias capacidades, sejam elas científicas, artísticas ou empresariais, mas em ser esteticamente agradável? Que se baseia numa lógica de consumo em que poucos têm acesso? Que se baseia em privilégios de um grupo sobre outros?

Que não incentiva a aceitação do próprio corpo, da própria ancestralidade e da própria etnia?

Quem, de fato, está ganhando com isso?

“Se lhe ensinarem a detestar o próprio corpo, como poderá amar o corpo de sua mãe, que tem a mesma estrutura que o seu? — Ou o corpo da avó, ou das suas filhas também? Como poderá amar o corpo de outras mulheres e homens próximos que tiverem herdado o corpo dos mesmos antepassados? No fundo, a agressão ao corpo da mulher é uma agressão de longo alcance que atinge tanto os que vieram antes dela quanto aos que chegarão depois.” — Clarisse Pínkola em “Mulheres que Correm com os Lobos”

¹ O texto Precisamos refletir sobre o feminismo liberal, da também colunista de Mulheres na Revista Brado Mylena Ferro, aborda os perigos dessa vertente do feminismo. Clique aqui para acessar.

² Meu texto A objetificação do corpo feminino não se limita às propagandas de cerveja, também para esta coluna na Revista Brado, que discorre sobre as graves consequências da banalização da imagem da mulher. Caso se interesse pela leitura, clique aqui.

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