O que é o transtorno da personalidade narcisista?

Após eliminação histórica da rapper Karol Conká do BBB21, é necessário rever alguns conceitos antes de corroborar com a cultura do cancelamento.

Carolina Miôtto Castro
Revista Brado
6 min readMar 3, 2021

--

Foto: Reprodução/BBB21/TV Globo

É de conhecimento geral o mito de Narciso, um jovem extremamente belo, filho do deus Cephisus e da ninfa Liriope, que jamais julgou ninguém digno de seu amor, a não ser sua própria imagem refletida em um lago, local no qual definhou até a morte.

A partir dessa história surge o termo narcisismo, que apesar de popularmente significar o amor excessivo por si próprio ou pela autoimagem, na realidade, configura-se como um transtorno de personalidade. Como comentado em um texto anterior¹, esses transtornos são caracterizados pela alteração da personalidade, ou seja, uma mudança no padrão de pensar, sentir e agir do indivíduo, capaz de gerar conflitos e/ou prejuízos significativos à vida dessa pessoa e de outros ao seu redor. É uma condição relacionada ao desenvolvimento humano, portanto normalmente tem início na adolescência ou no começo da fase adulta, quando passa a ser possível o diagnóstico.

John William Waterhouse, Eco e Narciso (1903), óleo sobre tela.

Convém também relembrar a diferença de possuir um transtorno da personalidade e apresentar traços de personalidade, que nada mais são do que padrões persistentes de pensamento, percepção, reação e relação, que não constituem uma doença em si. É comum, por exemplo, que algumas pessoas sejam mais sociáveis e extrovertidas e outras mais retraídas, uma vez que cada um apresenta características próprias de sua identidade. Entretanto, a partir do momento que esses traços se tornam pronunciados, inflexíveis e mal adaptativos (ou seja, mesmo sabendo das repercussões negativas de suas ações, eles não mudam seu padrão de resposta à situação; não se adaptam às circunstâncias), além de causarem prejuízo e sofrimento ao paciente, estamos, de fato, lidando com o transtorno.

Foto: Austrian National Library / Unsplash

Quais são as características do transtorno da personalidade narcisista?

O indivíduo narcisista apresenta fundamentalmente uma busca exagerada por atenção, um senso aguçado de autoimportância, falta de empatia e sentimentos de grandiosidade, em contraponto à sua autoestima frágil e vulnerável a críticas.

São pessoas que apresentam desconforto em situações nas quais são não são o centro das atenções (exigindo constante valorização de suas ações); exibem mudanças rápidas e expressão superficial das emoções; gostam de usar a aparência física para atrair a atenção para si; têm um estilo de discurso que é excessivamente impressionista e carente de detalhes; mostram autodramatização, teatralidade e expressão exagerada das emoções; têm uma sensação grandiosa da própria importância (exagerando conquistas e talentos para serem reconhecidos como superiores); apresentam um sentimento de possuir direitos (como expectativas irracionais de tratamento especialmente favorável ou que estejam automaticamente de acordo com as próprias expectativas); são exploradores em relações interpessoais (tiram vantagem de outros para atingir os próprios fins); relutam em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e as necessidades dos outros (ou seja, não são empáticos); são frequentemente invejosos em relação aos outros ou acreditam que os outros o invejam; além de demonstrarem comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes.

E onde entra o Big Brother Brasil 2021?

Muito se tem comentado sobre a rapper Karol Conká, participante do BBB21 eliminada com o maior índice de rejeição desde a primeira edição do programa, e para além de hates e “cancelamentos”, alguns profissionais da saúde identificaram traços de personalidade narcisista na cantora durante a participação no reality.

Após compreender as principais características dessa condição, é simples ao observar falas e atitudes dela dentro do programa que corroboram com esse pensamento, principalmente quando vemos que ela protagonizou muitos dos highlights do BBB, seja por interesses amorosos, provas e debates de pautas, seja por brigas e até mesmo humilhação de outros participantes.

No decorrer do reality, não foram poucos os momentos que Conká enaltecia suas próprias conquistas e engrandecia seu “eu”:

“[…] eu sei a potência de mulher que eu sou e o que eu represento para muitas mulheres lá fora.”

Não esquecendo também de sua emblemática frase:

“Respeita a mamacita”

Karol Conká posa para primeira foto após o BBB21 — Foto: Reprodução/ Gshow

Além disso, foi nítida a escolha de uma “vítima da semana”, que teria tido uma atitude socialmente não aceita, como uma expansividade na conversa, magoar profundamente alguém, dar em cima de uma pessoa ‘comprometida’, entre outras, portanto, era papel dela esclarecer e corrigir tais atitudes, exaltando os erros e rebaixando os outros participantes, para posteriormente ser reconhecida como autoridade dentro da casa.

Outro ponto relevante foram as histórias criadas pela própria rapper, que, por exemplo, afirmava que o participante Arcrebiano Araújo teria tido interesse amoroso e corrido atrás dela por conveniência (sendo que foi ela quem demonstrou interesse desde a primeira semana, forçando com ele uma relação). Depois inventou que Carla Diaz estaria interessada nele, criando uma grande discussão com a atriz ao trazer à tona seu lado ciumento. E, após conversas e distanciamento de Arcrebiano, lhe afirmou:

“Você que estava me desejando e eu cedi pois você insistiu”

Além disso, é evidente em várias falas dela tais traços, a exemplo de quando ela se nega a ter uma refeição com Lucas Penteado, e o expulsa da mesa:

“Quero comer na paz do Senhor, entendeu? Não quero que você fale enquanto eu estou na mesa comendo. Obrigada, me respeita, valeu, não quero, não estou a fim…”

A gota d’água foi em seus últimos dias da casa, quando, após uma discussão com a participante Camilla de Lucas, na qual afirmou que a influencer queria incentivar competição entre mulheres pretas, Karol não teve seu ego confortado ao recorrer aos seus aliados, que foram contra sua fala (que ainda negou totalmente ter dito isto).

Não faltam exemplos que possam enquadrar Karol Conká num provável diagnóstico de transtorno da personalidade narcisista. Entretanto, não se pode afirmar que alguém apresenta um transtorno mental apenas observando filmagens em um programa. Não é possível (nem moral) rotular uma pessoa apenas com base em tão escassas “provas”, pois a partir daí já estaríamos criando um pré-conceito errôneo e infundamentado. Mais que isso, são necessárias consultas psiquiátricas e testes diagnósticos específicos, processo muitas vezes demorado, mas fundamental para o devido seguimento.

Além disso, o indivíduo não escolheu ser assim. Ele pode nascer com uma tendência genética a desenvolver certo transtorno de personalidade, porém as relações ambientais (seja por experiências vividas, ambiente de criação, convivência próxima com pessoas com algum transtorno de personalidade, entre outras) podem inibir ou ampliar essa predisposição. Por isso, só é possível esclarecer um diagnóstico quando o paciente atinge a vida adulta. Lembrando também que as atitudes tomadas por eles funcionam como um mecanismo de defesa, porém eles não apresentam atitudes de mudanças, mesmo reconhecendo as repercussões negativas.

Karol Conká foi a vilã de edição?

Talvez. Contudo, o BBB é apenas um jogo, um reality show, onde tudo é produzido de forma a aflorar os ânimos e produzir embates entre os participantes. Não é justo que, após ter suas ações dentro da casa julgadas pela eliminação, um participante continue sendo atacado no mundo real. Nosso papel hoje é reconhecer que o transtorno de personalidade existe, não é uma escolha, não é uma maldade intrínseca; é uma condição médica que necessita de um reconhecimento e tratamento adequado e eficaz com psiquiatra e psicólogo, e que infelizmente, muitas vezes é complexo e prolongado, já que o paciente precisa “abandonar seus mecanismos de defesa”.

Que não usemos isso para rotular ou diminuir o outro, mas que esse caso sirva como holofote para a sociedade compreender de fato como esse transtorno funciona e cessar quaisquer estigmas que ainda possam prevalecer.

Nota de rodapé

¹ O texto “A saúde mental por trás das obras de Van Gogh”, também publicado por mim na editoria de Saúde da Brado, aborda o Transtorno Bipolar. Clique aqui para ler.

Referências

  1. Compêndio de Psiquiatria — Kaplan & Sadock 11ª edição.
  2. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).

--

--

Carolina Miôtto Castro
Revista Brado

Estudante de Medicina pela Universidade Vila Velha | Colunista da Revista Brado