Reações a ataque terrorista na Nigéria mostram que ainda não aprendemos nada sobre o fundamentalismo religioso

O falso conhecimento que nos torna reféns de uma verdade única nunca foi tão nocivo para uma discussão como é hoje

Gustavo Dantas
Revista Brado
6 min readDec 17, 2020

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Imagem dos corpos vedados no atentando. Foto: Reuters/Ahmed Kingimi

No dia 28 de novembro, o grupo extremista Boko Haram fez um ataque a um campo de arroz na vila de Koshobe, no nordeste da Nigéria, mais precisamente no estado de Borno. Esse ataque foi marcado pela brutalidade do grupo que executou o ato com tiros, explosões e degolamentos resultando em 110 mortos.

Atentados como esse são feitos constantemente pelo grupo para mostrar o seu poder e disseminar o terror. Mas o que me motivou a escrever esse artigo foram comentários feitos na página da notícia por alguns leitores, tais como estes:

O que me deixou com uma pulga atrás da orelha foi justamente as pessoas aplicarem o que se passa aqui, no Brasil, como regra geral para o que se desenvolve no mundo — o que está longe de ser cabível. Baseado nisso decidi explicar de uma maneira simples o que acontece no país africano e o porquê de as políticas aplicadas aqui não se aplicarem lá.

A Nigéria possui uma história parecida com a brasileira no quesito colonialismo — porém lá por parte dos britânicos. Assim, a religião usada como base para a criação das leis nigerianas foi a cristã, o que conflitou fortemente com o local de maioria muçulmana. Por isso, a região Sul, de maioria cristã, é beneficiada pelo governo, enquanto a região Norte, de maioria muçulmana, ficou à margem da sociedade. Com isso, o Norte se tornou cada vez mais violento e os níveis de mortalidade aumentaram abruptamente — de forma inversamente proporcional ao nível de escolaridade. Isso foi crescendo em larga escala até os dias de hoje.

Com o advento da democracia, em 1980, e a passagem das regiões a estados, emergiu ainda mais o uso da religião para fins políticos. O que aumentou ainda mais essa lacuna social de desigualdade foi a implementação da Lei Sharia nos estados do Norte, que fez com que essa região fosse governada nos parâmetros islâmicos — porém eram poucos os subsídios disponibilizados pelo governo a eles e não havia uma rigorosidade na lei. Entre 1980 e 1999 o país passou por duas intervenções militares: a primeira em 1983 e a segunda em 1985. Esse último regime durou até 1998; com a morte do ditador, seu sucessor adotou uma nova constituição em 1999, que previa eleições multipartidárias no país, voltando com a “democracia”.

Em 1999, com o regresso da democracia na Nigéria, o povo esperava o fim da corrupção generalizada com uma distribuição mais correta das riquezas. Assim, queriam maior rigorosidade na Lei Sharia, fator que fez com que algumas pessoas tomassem um rumo mais politizado e questionassem as escolhas do governo. Dessa forma, Mohhamed Yusuf (líder espiritual de uma seita que mais tarde viria a ser o Boko Haram) fazia sermões em mesquitas para atrair pessoas e politizá-las sobre o que estava acontecendo no país — claro, sempre sob sua ótica –, criando uma legião de admiradores que queriam a qualquer custo espalhar o Islã no país e iniciar uma jihad (guerra santa).

Imagem tirada de vídeo divulgado pelo Boko Haram

Essa era uma forma de protesto contra o governo e uma forma de se organizar contra as mazelas da sociedade. Lá, todos que entravam para a seita eram ajudados e criava-se uma “família” com os mesmos ideais.

O movimento de Yusuf tinha um caráter revolucionário. Esse ideal, que aproxima a população mais nova, está intimamente ligado ao fim da Guerra Fria, pois, nas Universidades, também insatisfeitas com a política vigente e vendo como o mundo se comportava com medidas autoritários, procuravam um sistema alternativo, no socialismo e no comunismo, por exemplo. Assim, cada vez mais a seita crescia e ia tomando um rumo autoritário. Eles tinham a premissa de que o Estado é corrupto e, portanto, precisavam de um novo Estado, que seria “mais justo”.

Yusuf era o principal líder político da região. Seus cultos e sua presença em eventos eram sempre ovacionados pela população. Ele, acima de tudo, era paciente, e não tinha muitas intenções de começar de forma abrupta a Jihad, apesar de deixar bem claro ser esse um de seus objetivos. Porém, em 2009, após uma ação da polícia que rendeu a cidade por uma semana e levou à execução de Mohhamed Yusuf em praça pública, Abubakar Shekau, braço direito do ex-líder, assumiu o comando e deu início à guerra. Ao longo do tempo, o Boko Haram foi passando por diversas formações, se tornando cada vez mais militarizado.

Em 2013, depois de diversos ataques e sequestros, principalmente de meninas em universidades, que para eles não possuíam o direito de estudar, o grupo foi declarado como terrorista por alguns Estados europeus e pelo Departamento de Estado norte-americano, que via esse grupo como uma “nova Al Qaeda”.

Boa parte do território nigeriano, principalmente a região nordeste, já foi dominado pelo grupo, levando algumas cidades a declarar estado de emergência desde 2013. A versão do islã seguida pelos membros da seita proíbe que os muçulmanos participem da vida social e política, por isso eles impedem a participação em eleições e já executaram alguns líderes políticos. Além disso, impedem que a população receba uma educação secular, livre de qualquer religião.

O desenvolvimento do Boko Haram explicita fortemente os problemas da Nigéria. A comunidade muçulmana, sem uma orientação e com divisões sociais gritantes, em comparação à cristã, fomenta uma competição de interesses na qual os muçulmanos contestam a liderança do Estado e a interpretação do Islã. A incapacidade contínua da Nigéria de alcançar um crescimento econômico sustentável dá brechas a novos movimentos revolucionários que clamam por uma mudança, gerando um ciclo que pode não ter fim.

O Estado subestimou muito a força do grupo. Milícias criadas para combate-los serviram mais de ajuda do que obstáculo para eles; a desorganização das forças usadas para contê-los lhes renderam ainda mais armamento bélico, e assim o grupo praticamente assumiu o nordeste do país.

De 2010 a 2016, a Nigéria vivia o terrorismo do grupo praticamente diariamente. Visto o real perigo do Boko Haram, alguns Estados como França, EUA e Reino Unido buscaram estratégias para combater o grupo na Nigéria. Essas diminuíram muito o poder bélico e territorial, mas não o exterminaram. Hoje, o grupo está muito mais enfraquecido em comparação a 5 anos atrás, porém ainda extremamente perigoso. O evento ocorrido em novembro mostra bem isso. Mesmo que fora da mídia internacional, a busca incessante pelo poder continua e fará mais vítimas no decorrer do tempo.

A problemática nigeriana com o terrorismo vai muito além de uma disputa entre “capitalistas e comunistas”, ou “esquerda e direita”. A temática social aflige muito mais a população do que a própria ideologia. Se ater a uma perspectiva doméstica e ignorar fatores externos conflitantes gera um pensamento errôneo e deturpado como o dos comentários feitos no site da notícia. O massacre promovido pelo grupo terrorista é visto como uma forma de dominação e demonstração de força ao terror.

Nada justifica o ato, mas para uma discussão mais honesta o contexto inserido faz toda diferença. Há muito preconceito sobre o Islamismo, mas é preciso que nunca se generalize, sobretudo sem o devido estudo do contexto e do histórico do fato. O fundamentalismo religioso não surge do nada; há uma base sólida que constrói um pensamento extremista e a história mostra muito bem essas raízes.

Em meu último texto na Brado falo um pouco sobre o fundamentalismo islâmico e cristão estadunidense. Você pode conferi-lo clicando aqui.

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Gustavo Dantas
Revista Brado

Estudante de Relações Internacionais, colunista da revista Brado