A bossa nova é samba?

No limite, questão é da mesma ordem aporética de outra polêmica mais antiga: afinal, teria Capitu traído ou não?

Acauam Oliveira
Revista Bravo!
12 min readDec 21, 2020

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1.

Em meu último texto publicado aqui mesmo nessa coluna, procurei questionar a ideia de que a bossa nova seria o melhor exemplo entre nós de apropriação cultural, problematizando a tese de que o movimento realizaria uma espécie de embranquecimento do samba a partir da consideração de alguns de seus aspectos formais, sobretudo no que diz respeito ao padrão estético desenvolvido por João Gilberto. O texto acabou por gerar algumas respostas bem interessantes, sobretudo no que diz respeito a uma de suas premissas que ocasionou as mais diversas reações, entre sóbrias e indignadas: a ideia de que “a bossa nova não é samba, mas sim um método de composição de tipo novo, que permite incorporar o samba, mas não apenas ele, como parte constituinte de sua linguagem”. Acredito que o argumento possa ter soado para alguns apreciadores como perigosamente próximo a ideia de que a bossa seria um tipo de samba de branco (i.e., inautêntico), justamente o ponto que o texto procurava relativizar.

Em suma, a tentativa de neutralizar a premissa básica da acusação de apropriação cultural (afinal, se a bossa nova não é samba, não faz sentido dizer que ela se apropria do gênero) resultou quando muito em seu retorno por outra via, como se fosse precisamente aí que se inscrevesse o nó da questão e a chave de resolução do dilema que, no fim das contas, é uma questão que ultrapassa o campo estritamente musical, remetendo ao próprio sistema de intersecção entre raças e classes no país. Afinal, se são relativamente poucos aqueles que questionam a qualidade da produção dos movimentos culturais ligados a setores intelectualizados de classe média, o mesmo não pode ser dito a respeito de sua autenticidade que, por outro lado, parece sobrar (por vezes em leituras excessivamente paternalistas) ao campo popular. A profunda desigualdade do país confere algo de ilegitimidade a esses movimentos , ainda que brilhantes, ou sobretudo nesses casos, como se algo da promessa utópica que encarnassem estivesse irremediavelmente assentada sobre fundo falso: daí o caráter melancólico inscrito na promessa de felicidade da bossa nova. Talvez seja possível dizer que a condição de verdade da utopia brasileira é essa atualização melancólica inscrita na versão de João Gilberto para Águas de Março.

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Caetano Veloso é um dos que defendem de maneira enfática a tese de que a bossa nova representou uma espécie de reencontro do samba consigo mesmo, ainda que não propriamente o mesmo samba dos terreiros, inscrito a partir de então em outro devir. A batida ao mesmo tempo simples e sofisticada de João teria promovido um retorno ao samba, que à época estaria se perdendo em meio a uma profusão de sambas canção abolerados, muito menos sincopados e vivos do que a batida envenenada de João. Nesse sentido, a bossa promoveria um retorno à contrametricidade típica da batucada de terreiro (Carlos Sandroni), a partir de relações não mais percussivas, e sim harmônicas. Vale aqui a citação de um trecho de Verdade Tropical: “A interpretação de João [da canção “Caminhos Cruzados”] é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir — com o ouvido interior — o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizaclas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (E o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman.) Quanto a mim, encontro nessa gravação de “Caminhos cruzados” por João um dos melhores exemplos de música de dança — e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada: eu de fato gosto de sambar ao som dessa gravação, e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba-samba que estava escondido num samba-canção que, se não fosse por ele, ia fingir para todo o sempre que era só uma balada”.

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Questão que anima os debates em torno do horizonte nacional-popular: o reencontro harmônico com essa mão negra aludida por Caetano nos redime culturalmente diante do mundo ou nos envergonha por sua dimensão de virtualidade fantasmagórica? Eis a matriz do sentimento geral de impropriedade, que cria um déficit social e um perverso sistema que Denise Ferreira classificou de “dívidas impagáveis”.

4.

A ideia de que a bossa nova não é samba tem, portanto, o potencial de tencionar tanto a noção de ruptura inscrita na ideia de apropriação, quanto a de continuidade imediata, desagradando os dois os polos - o que não deixa de ser uma qualidade a seu modo. Mas o fato é que essa maneira binária de apresentar a questão parte de uma simplificação que legitima até certo ponto o questionamento daqueles que defendem que a bossa nova é samba, como, aliás, é o caso do próprio João Gilberto. De fato, a percepção mais correta em relação aquilo que a bossa nova é deve ser necessariamente dialética. Nesse sentido, devemos sustentar uma perspectiva a princípio contraditória, e considerar que a bossa nova não é samba e, ao mesmo tempo, não é outra coisa senão samba. Mais exatamente, ela é uma forma — ou antes, um método — de entrar e sair do samba, método este que vai estar na base do que se convencionou chamar de MPB. Note-se que não se trata da simples justaposição de dois ou mais sistemas distintos, mas um modo orgânico de entrar e sair sem maiores conflitos desses padrões, de modo que ao final da fusão reste outra coisa, síntese dialética dos elementos que, no limite, rompe com a possibilidade mesma de delimitação estanque de gêneros. Em suma, uma contradição sem conflitos, na definição precisa de Walter Garcia.

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[WALTER GARCIA]“João parte do samba para retornar a ele: então o que ele faz é samba; e não é: pois sua batida não permanece no samba, ela vai e volta impulsionada por aquilo que o baiano acrescenta, aquilo que se convencionou chamar de bossa e que, formalmente, são os procedimentos jazzistas, nos ataques de acorde, em articulação com o baixo uniforme e regular, constituindo-se, nesse processo, células rítmicas binárias organizadas em padrões de dois compassos”.

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Cortemos para o ano 1899, quando um belo e promissor país enfim republicano veria surgir uma de suas maiores obras primas, responsável por outra polêmica cultural de grande fôlego, e cujo impacto se faz sentir até hoje. Afinal, teria Capitu traído ou não o pobre doutor Bento Santiago? Corrijo-me: o debate mesmo levou quase um século para se constituir enquanto tal, porque até então era daquele jeito, mulher acusada, mulher culpada. Ainda mais quando a denúncia partia de um distinto cavaleiro, homem de família, culto, de formação europeia, “capaz de citar de Dante a Montaigne” e, obviamente, branco. Em suma, um partidão. Somente após anos de conivência entre pares é que o plano ardiloso arquitetado por Machado para seu romance veio a ser descortinado. Dom Casmurro assumia a forma e a estrutura do romance de adultério, produto típico da época, mas não era propriamente um. Ele subvertia o modelo padrão para criar uma forma narrativa de tipo novo, cujo interesse se concentra muito mais nos modos de organização estrutural do ciúme assentados sobre a impossibilidade objetiva de responder a pergunta que a princípio lhe fundamentaria, do que na resolução — no mais, impossível — do enigma. A inversão estrutural da obra é uma verdadeira sacada de gênio, ao revelar que a culpa ou inocência de Capitu não são um dado de realidade, e sim efeitos do discurso, cujo fundamento consiste não nos fatos, mas nas relações de poder que no caso do romance estão colados a figura do narrador, no mais, respeitável homem de Letras e de Lei. Note-se que é até certo ponto possível afirmar que Machado constrói um romance de adultério, porque todas as principais características do gênero estão ali, mas dizer isso é claramente insuficiente, pois Dom Casmurro subverte sua estrutura no momento mesmo em que a desenvolve, criando todo um campo novo de possibilidades que só a partir de então tomariam forma.

7.

Podemos dizer que com a bossa nova ocorre um movimento similar. De fato, é possível encontrar diversos elementos do samba em sua estrutura, ainda que modificados em aspectos fundamentais que podem ou não ser considerados em termos de descaracterização, a depender da perspectiva adotada. Mas de todo modo, é perfeitamente possível afirmar, como Caetano, que aquilo que João Gilberto toca, regrava e persegue é o samba. Entretanto, dizer isso não é dizer tudo, pois existe o outro passo - assim como em Machado - e que inaugura algo novo na música popular brasileira (lembrando que “inaugurar algo novo” não significa de forma alguma inventar a roda a partir do nada, mas instaurar-se de forma específica no interior de um sistema). Esse algo novo é, em grande medida, um método, base do que virá a ser conhecido como MPB.

Dom Casmurro por assim dizer suspende a questão elementar que lhe serviria de fundamento (traiu ou não traiu) para nos revelar o que há por trás e no entorno desse ponto — um método de investigação do ciúme enquanto discurso. A bossa nova também suspende sua questão fundamental (é samba ou não é) para nos oferecer um método de produção musical orientada por um princípio que se adequa perfeitamente bem ao novo momento de desenvolvimento da indústria fonográfica e que envolve nacionalização, substituição de importações, novas tecnologias e modelos outros de articulação de conceitos tais como autor, obra e público. Em ambos os casos, a questão sobre o fundamento da forma se torna princípio de organização estética.

8.

Em termos menos abstratos, podemos dizer que a bossa nova é precisamente esse momento em que se torna discursivamente possível (de forma sistêmica) que um sujeito se dedique quase que exclusivamente ao samba ao longo de sua carreira e, ainda assim, não seja considerado um sambista. Ou seja, alguém que toma o samba como matéria, mas não se insere dentro dos seus códigos mais estritos — que, a propósito, não são exclusivamente formais — sem que isso seja necessariamente interpretado em termos de ‘falta’ ou ‘traição’ (nesse sentido, não deixa de ser sintomático que tais acusações pesem muito mais sobre os bossa novistas do que sobre o pessoal mais ‘linha dura’ da MPB). Em suma, é a bossa nova que constrói a possibilidade estrutural de um Chico Buarque ou um João Bosco.

A esse propósito, há de se notar que um compositor como Dorival Caymmi, que já levava o samba a direcionamentos estritamente pessoais a partir das possibilidades técnicas advindas com o LP em suas Canções Praieiras, é classificado com certa tranquilidade como sambista (ainda que não sem polêmicas). João Gilberto, por sua vez, em cujo repertório o samba tem inconteste hegemonia, instaura a dúvida. Em certo sentido, o samba na bossa nova é um resultado ao qual se chega, mais do que o lugar de onde se parte, resultante de uma percepção distinta de forma e de possibilidades outras de produção no interior da indústria fonográfica.

9.

(É claro que a coisa toda se complica quando consideramos certa dimensão constitutiva do próprio samba, sua capacidade contínua e ininterrupta de reinvenção, que desloca incessantemente seus pressupostos estruturais mais elementares. O que seria mais inventivo que Os 8 batutas, Moreira da Silva, Fundo de Quintal, Ismael Silva, Dona Ivone Lara? Como faz questão de frisar o mestre Spirito Santo, não existe pureza no território francamente ecumênico (e negro) do samba, uma de nossas linguagens mais inovadoras e vivas. Basicamente uma epistemologia negra que se constrói via certa gramática dos tambores (Luiz Antonio Simas) produzido um devir a um só tempo específico e plural. Assim, a(s) diferença(s) do samba em relação a bossa nova estaria menos em um princípio formal em particular do que em um deslocamento estrutural de ordem mais geral, que reorienta os códigos do próprio sistema de compreensão e classificação da música popular como um todo. Ou seja, não faz sentido pensar no samba como uma forma ‘tradicional’ em oposição a ‘modernidade’ da garotada de Ipanema. O samba é já uma diáspora moderna, negra e brasileira, em contínuo movimento, a qual a bossa contrapõe uma episteme diversa, ainda que organicamente relacionada).

10.

Um ensaio do crítico musical e pesquisador Tulio Vilaça publicado no recém lançado Sobre a Canção ilustra bem esse debate. O ensaio em questão se chama A Tropicália Vai Passar? e aborda entre outras coisas a relação conturbada do Tropicalismo com certa concepção mais ‘estreita’ de engajamento e mobilização popular (ou ainda, nos nossos termos, autenticidade) por meio da música popular. Em determinado momento, o ensaio analisa a canção Vai Passar, de Chico Buarque, extraindo daí diversas consequências interessantes. Da perspectiva de um samba enredo tradicional, com seu conjunto específico de códigos orientados para o desfile, cujo fundamento último é a complexidade rítmica da bateria, Vai Passar é uma canção que fracassa. Chico Buarque não consegue levar multidão pra avenida — graças a Deus, porque provavelmente, faria a escola ser rebaixada. O ensaio procura extrair o sentido mais geral desse movimento, que atravessa todo o imaginário cultural nacional popular: “O intuito era levar a ideia da obra coletiva e anônima, oriunda de uma força popular quase mítica, a um altíssimo nível de elaboração, para depois devolvê-la ao povo, que, a partir da escuta de uma obra inte­lectualmente mais densa, seria elevado a outro patamar de entendimento. A música originada do próprio “povo” a ele retornaria sublimada, com um segundo nível de elaboração”. Caminhando e cantando e seguindo a canção. Dessa perspectiva, a canção, obviamente, fracassou. Mas — eis a lição tropicalista — seria esse fracasso, de fato, retumbante, ou é o político da arte que está (sempre esteve) em outro lugar? Pois enquanto canção significativa da poética buarquiana, desvinculado de ritos próprios e sistemas de organização que lhe são alheios, Vai Passar é um grande sucesso (em termos de construção artística). No limite, é da noção moderna de autonomia estética que se trata (e que no campo da música popular faz emergir de pronto a pergunta: para quem?). De todo modo, com a invenção desse maneira específica de entrar e sair do samba, do qual nem todos podem usufruir, uma canção pode se estruturar como samba enredo e ser avaliada não a partir de sua relação com os códigos do gênero, mas sim por sua diferença, sem que isso constitua perda de qualidade ou descaracterização. Muito pelo contrário, afinal, não é mais da Avenida que se trata. Vai Passar é e não é um samba enredo, e sua força estética (inclusive como substrato material para o conteúdo político das letras de Chico, que dizem não dizendo) se realiza a partir da negociação dessa distância.

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O ‘problema’, portanto, está menos naquilo que a forma efetivamente realiza do que no sistema de atribuição de sentido. Caso a perspectiva adotada seja a da festa, do rito e do Carnaval, obviamente que Vai Passar aparece sob o signo da descaracterização. Do mesmo modo, um samba que prescinde do rito, da batucada e, no limite, do corpo, também pode ser lido a partir dessa falta fundamental, como um fracasso. Por outro lado, caso a perspectiva adotada seja simpática a noção pós-MPB de autoria, é o samba enredo, sobretudo em suas feições mais contemporâneas, que parece excessivamente engessado e preso a um conjunto de ‘funções’ que lhe ferem a autonomia. Dessa perspectiva, Vai Passar seria um samba superior justamente por ser mais ‘autoral’, o que obviamente diz mais a respeito do sistema de valores dos sujeitos em questão do que sobre as condições de possibilidade da forma: Foi um Rio que Passou em Minha Vida, por exemplo, consegue se dar bem em ambos os critérios, superando assim o método buarquiano, dentre outras coisas porque Paulinho da Viola é um sambista muito superior.

Daí que volto a um ponto fundamental do texto anterior: para aqueles que consideram a bossa nova uma descaracterização branca de uma linguagem originalmente negra, é preciso lidar com o fato que o gesto da bossa torna estruturalmente possível a articulação de outros métodos de estruturação de linguagens negras como as de Jorge Ben e Gilberto Gil. Não como desdobramento direto, obviamente, mas como inscrição de um devir outro. Em suma, que a MPB — como desdobramento do princípio metodológico inaugurado com a bossa — permite a articulação estrutural de novos modelos negros de linguagem, o que tenciona a noção de exclusão ou apropriação que, por outro lado, não é uma miragem alucinatória do movimento negro, pois de fato se faz presente no interior desse movimento. Por outro lado, os que consideram que a bossa faz, sim, samba, defendendo uma suposta autenticidade de sua linguagem, precisam se haver com o fato de que é a própria noção de autenticidade que sofre um deslocamento fundamental no interior do gênero, dizendo respeito não mais a determinados conjuntos de códigos coletivos, e sim a parâmetros de uma subjetividade própria que reorganiza a linguagem da canção a partir de princípios estruturais de uma construção autoral específica. Em suma, uma noção outra de autoria, que cria novos parâmetros de hierarquização que atualizam as desigualdades de sempre, como por exemplo o deslocamento da força negra que se inscreve diretamente no samba, mas apenas indiretamente na bossa (haja vista seus agentes), o que é um dado social, mas também efeito performativo da linguagem.

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Em suma, se atentarmos para as dimensões sociais inscritas na própria forma (a bossa enquanto linguagem), ao mesmo tempo em que a consideramos como constituída por meio das relações sociais (a linguagem enquanto conteúdo sócio-histórico), os elementos em discussão (racismo, apropriação, autenticidade) emergem como aspectos estruturais mais profundos e historicamente dinâmicos.

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Acauam Oliveira
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Enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha.