E veste a carapuça que lhe serve

Gui Amabis lança "Miopia", seu quarto álbum, que é ao mesmo tempo síntese e começo do fim de uma sonoridade

Paula Carvalho
Revista Bravo!
4 min readMay 29, 2018

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Foto: Julia Braga

É o fim de um ciclo para Gui Amabis. O músico e produtor, que teve a sua primeira composição gravada há dez anos no projeto Sonantes, por Céu, agora a coloca como protagonista do quarto álbum que lança, intitulado justamente Miopia. "Qual o grau de miopia necessário pra esse dia acabar de um jeito bom? / Apenas um a menos que me impeça de seguir nessa coleta de acidentes e paixão", canta, desta vez sem o arranjo latino da primeira gravação, numa versão minimalista apenas com Regis Damasceno no violão.

"É uma música pela qual tenho um carinho especial, por ser a primeira que compus. Tentei gravar nos outros discos, mas não encaixava, não conseguia achar um jeito de fazer e agora falei: vou fazer do jeito mais simples". Relançada em 2018, acaba por ganhar tons políticos em meio ao caos social que vivemos — assim como Todos os Dias, com Juçara Marçal ("Conforme os dados que chegam nem sei porque / Logo me soa um desastre"), O Inimigo Dorme, uma versão da canção de Siba do disco De Baile Solto, e Para Mujica ("Um segundo no planeta vai da fome à mais valia / No direito adquirido, meu querido estamos fritos").

"Para a minha geração, acho que é o momento político mais difícil que já enfrentamos", afirma, em meio a incertezas sobre o que pensar de Lava Jato, corrupção e forças financeiras por trás disso. "Eu não quis fazer um disco político, pra mim a música não deve ser panfletária, tem que ser honesta. Acho estranho querer falar uma coisa prática numa música. Mas se você consegue falar as coisas de um jeito bonito, poético, de modo a abrir a discussão, funciona".

Além de Miopia, outra canção que conhecemos pela primeira vez com seu autor é Contravento, parceria com Lucas Santtana gravada também por Céu no disco Caravana Sereia Bloom, de 2012. Da safra mais recente, duas músicas foram compostas quando passou uma breve temporada morando no Rio de Janeiro: Ar Condicionado e Mais Um Whiskey, talvez a com mais ares de Nick Cave, fumaça e fim de festa do álbum (embora Amabis diga que ouvia outro Nick, o Drake, durante as gravações).

Espírito Acrobático é, segundo Gui, uma homenagem aos amigos Dustan Gallas, que também faz parte da banda do disco, e Tony Gordin, que é irmão do lendário guitarrista Lanny Gordin. Em Quase Um Vinho Bom, parceria com Julia Valiengo, da Trupe Chá de Boldo, formam o coro Tulipa Ruiz e Rosa, filha de Gui.

O estilo de Amabis, refinado desde o primeiro disco, Memórias Luso-Africanas (de 2011), é de versos concisos, tonalidade menor (o que confere ar sombrio a boa parte das músicas), cheios de sabedorias com atmosfera ancestral. "E veste a carapuça que lhe serve / Já me disse um bom amigo, merece quem aceita" (de Merece Quem Aceita); "Tanto faz quem inicia a paz contato que ninguém volte atrás" (de Dois Inimigos); "E a gente riu quando percebeu que a tristeza passa e a vida ganha" (de Ruivo em Sangue) são alguns dos exemplos dos discos antigos, que agora ganham a companhia de "Sorrir é questão de vontade e chorar faz o mar crescer" (Ar Condicionado) ou "Trago no peito tudo menos o rancor / Rancor é coisa do diabo" (Todos os Dias).

Tudo isso, claro, é envolto pelo vozeirão grave e uma forma de cantar minimalista, mais próxima da fala, que sempre ganha nos contrastes com vozes como a de Tulipa e agora, pela primeira vez num álbum seu, Juçara. Desde o ano passado, com o projeto Sambas do Absurdo, a dupla tem feito shows (além deles, acompanha Rodrigo Campos) em que Gui, além da voz, pilota os samples — que é aliás um dos mais instigantes usos de programação para "comentar e contrapor" a canção tradicional.

Para o show de estreia de Miopia — marcado para 8 de junho no Sesc Bom Retiro — Amabis já prevê uma mudança total da sonoridade. Como queria um formato mais acústico, sem bateria, guitarra ou baixo ("Assim me ouço melhor no palco, consigo elaborar mais o canto"), ele chamou o cellista Bruno Serroni e Maria Beraldo, que tocará clarone e clarinete. Da banda que o acompanhava desde Trabalhos Carnívoros — cuja base é Dustan Gallas, Regis Damasceno, Samuel Fraga e Richard Ribeiro — , só restou Damasceno, que dividirá os violões (o seu de aço) com Gui. Quando estive na sua casa na semana passada para falar do trabalho, Gui me entregou todos os quatro CDs, num mesmo formato, que estarão à venda nos shows da turnê de Miopia. "É como se fosse meu TCC desses anos. É um disco de fechamento desse som com essa banda, do jeito de misturar samples com eles. É o disco em que cheguei no equilíbrio mais legal entre todos esses elementos, fechou, não teria porque eu fazer mais um disco com esse som". Que venham outras novas.

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Gui Amabis — Lançamento do álbum Miopia. Com Bruno Serroni (violoncelo), Maria Beraldo (clarone e clarinete) e Regis Damasceno (violão). Participação especial de Siba. Sexta, 08 de junho, às 21h. Sesc Bom Retiro. Ingressos R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 9 (credencial plena).

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com