“Estamos requisitando o que é nosso”

Hélio Menezes, curador convidado de “Histórias afro-atlânticas”, fala sobre representação e representatividade negra nas artes

Andrei Reina
Revista Bravo!

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“Vilão” (2017), No Martins

Um sonoro basta foi dado à maneira como corpos negros são representados pela arte canônica e à ausência de obras de artistas negros nas paredes e no acervo de grandes instituições. Graças a uma articulação global — que envolve, além de criadores, intelectuais e ativistas — o debate sobre representação e representatividade se tornou incontornável. E viu crescer o número de interlocutores na casa dos milhões — uma cortesia de Beyoncé e Jay-Z, casal que ocupou o Museu do Louvre para o clipe de Apeshit.

No Brasil, o movimento vê a ascensão de artistas e curadores negros celebrados em mostras coletivas, como Agora somos todxs negrxs?, exibida no Galpão Videobrasil no ano passado, e Histórias afro-atlânticas, megaexposição em cartaz no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. São nomes como Rosana Paulino (vencedora do Prêmio Bravo! de Melhor Exposição Individual no início do ano), Sidney Amaral, Dalton Paula e Ayrson Heráclito, que desde os anos 80 têm transformado o que se entende por arte brasileira contemporânea.

Para compreender este cenário, a Bravo! conversou com Hélio Menezes, curador convidado de Histórias afro-atlânticas e mestre em Antropologia Social pela USP com a dissertação Entre o Visível e o Oculto: a Construção do Conceito de Arte Afro-Brasileira. Em entrevista realizada no café do Instituto Tomie Ohtake, Menezes comenta as escolhas curatoriais da exposição, contextualiza o embate conceitual em torno da arte afro-brasileira e apresenta o que está em jogo para artistas e curadores negros no debate contemporâneo. “É o momento político de entender que estamos em todas as partes, sempre estivemos em todas as partes e estamos requisitando o que também é nosso.”

“Penny Dreadful” (2017), Nina Chanel Abney

Por que Histórias afro-atlânticas?

Essa exposição vem sendo pesquisada há três anos. Eu entrei há um ano, quando ela ainda estava em uma transição do nome inicial. A exposição ia se chamar Histórias da escravidão e logo mudamos para Histórias afro-atlânticas, por entender que essas histórias estão muito além e aquém da escravidão. Esse nome ecoa dois importantes livros que orientaram muito de nossas pesquisas. É tanto uma relação próxima da ideia do Atlântico Negro, do Paul Gilroy, que mostra como o Atlântico é uma espécie de geografia sem fronteiras e de um tempo sem temporalidades marcadas, e como é preciso pensar a construção de culturas negras a partir das relações — os fluxos, os refluxos e os contrafluxos do Atlântico Negro — e não apenas de uma história nacional. Até então se fazia muito uma história das populações negras no Brasil, a história dos negros nos Estados Unidos, a história da escravidão em Cuba. São histórias que tem localidades e especificidades, sem a menor dúvida, mas que de alguma maneira encobrem uma rede de relações que continuam a se estabelecer. A ideia das Histórias afro-atlânticas é muito inspirada nesse conceito, assim como no ensaio do Alberto da Costa e Silva, Um Rio Chamado Atlântico, que tem essa ideia: o Atlântico foi e é um grande rio. Nesse sentido, não é um oceano, porque tem margens estreitas, muito conectadas desde o século 16 até os dias presentes.

Vocês estão trabalhando com um volume de material muito grande. Como fizeram para organizar o trabalho?

O tamanho dessa exposição ainda é pequeno diante da importância dos temas que ela aborda. A gente entendeu que num ano como 2018, dos 130 anos da abolição legal, incompleta e formal da escravatura não bastava fazer uma exposição pequena, envergonhada. É o momento. O Brasil e o mundo (especialmente o afro-atlântico) estão revendo suas chagas do passado — esse passado que não passou tanto assim, que se mantém muito presente. A gente fez uma longa pesquisa — que só conseguiu ser realizada graças a um avanço extraordinário nos últimos 30 anos de uma geração de historiadores não só no Brasil mas em toda a América e Caribe — para envolver tantos artistas e tantas obras, mas ela é muito fundamentada no desenvolvimento de outras pesquisas formais, historiográficas, antropológicas e sociológicas de todo o eixo afro-atlântico.

“Johnny Cool” (1967), Osmond Watson / “Boy and the Candle” (1943), Gerard Sekoto

E a divisão por temas?

As divisões se deram a partir de temas que nos pareceram muito caros para contar essa história. Obviamente é impossível recobrir todos os temas que envolvem as histórias afro-atlânticas. Diferentemente das Histórias mestiças — também curada pela Lilia Schwarcz e pelo Adriano Pedrosa há quatro anos atrás e que tinha um recorte muito brasileiro — essa exposição tem um recorte transatlântico e avança num debate à época ainda marcado por uma ideia complicada de mestiçagem. A exposição foi se montando a partir de temas transatlânticos que são importantes aos movimentos negros — como as reações à violência policial, a formação de terreiros como espaço de religiosidade militante e de resistência em todas as Américas.

E a divisão entre os museus?

Trata-se de uma exposição em duas instituições, acontecendo ao mesmo tempo, que se complementam mas também são uma espécie de exposição por si mesma. O nosso desejo e vontade é que os visitantes vão ao Masp e ao Tomie para complementar a experiência, ao mesmo tempo em que aquele que for às duas instituições em dias alternados tenha igualmente uma experiência completa em cada uma delas. Aqui no Tomie Ohtake os núcleos de Emancipações e de Ativismos e resistências abrigam dois grandes temas políticos. Toda exposição é política, mas essas duas salas em especial abrigam temas que tem demandado um espaço grande, onde pudessem ter um diálogo mais estreito. É uma construção em que uma sala cita a outra, dando essa dimensão desde o século 16 chegando ao 21 com temas que tem temporalidades muito flutuantes.

“Into Bondage” (1936), Aaron Douglas

Na exposição, há um diálogo proposto entre obras e artistas que raramente vemos lado a lado. Estava pensando, por exemplo, no Debret, que virou quase um pintor oficial do período escravocrata, pintado por ele num tom ameno. Qual a importância de colocar essas representações canônicas ao lado de outros olhares, sobretudo de artistas negros, sobre os mesmos temas?

De um lado é um desejo nosso mostrar como essas imagens do Debret, do Rugendas e de outros viajantes não são assim tão do passado. Elas ecoam ainda hoje e todos nós brasileiros as conhecemos, porque estão nos nossos livros didáticos de história e no dia a dia. Para tomar a cidade de São Paulo como exemplo, nos cafés daqui você encontra reproduções de telas do Rugendas com escravos colhendo café, além dos restaurantes e pousadas com o nome Senzala, que reproduzem gravuras do Debret e do Rugendas como se fossem ilustrações românticas da escravidão. Não são imagens desconhecidas do grande público, mas são muitas vezes naturalizadas ao nosso olhar. Elas são tão reproduzidas, muitas vezes ou quase sempre numa dimensão pouco crítica, que acabam entrando em um paradoxo: a gente vê mas não enxerga. A gente vê essas imagens, somos ultra-expostos a elas, mas não as enxergamos em sua inteireza, não só porque os artistas tinham um olhar complacente e romantizado da escravidão mas porque nós, sociedade brasileira, continuamos a romantizar a escravidão, de certo modo. Trazer essas imagens na exposição é colocá-las numa leitura marcadamente política e crítica, o que significa deslocar essas imagens de um certo senso comum, de uma certa naturalização da violência e das diferenças como desigualdade (a diferença vista como marca de inferioridade). É uma maneira de trazê-las ao debate político contemporâneo.

“A Permanência das Estruturas” (2017), Rosana Paulino

Daí a opção por colocá-las em fricção com outros olhares?

Essas imagens sozinhas demonstram um tipo de visualidade e de representação de corpos negros que vem sendo duramente relida e criticada, especialmente pela produção de artistas negros. Temos alguns trabalhos muito emblemáticos — como de Rosana Paulino, Sidney Amaral, Jaime Lauriano e Dalton Paula, aqui no Brasil, e de Titus Kaphar e Faith Ringgold, nos Estados Unidos — que se apropriam dessas imagens do passado, de artistas do 18 e do 19, e trazem-nas para o momento contemporâneo numa releitura crítica. Minha pesquisa de mestrado foi baseada na produção desses artistas contemporâneos, como eles de alguma maneira retiram dessas imagens a marca do tempo. Boa parte da produção negra contemporânea tem de fato se apoiado na reversão desses estereótipos visuais, na reconceituação de como se demonstra, como se pinta, como se representa corpos negros na arte. Na arte feita no Brasil, de um modo geral, os corpos aparecem reincidentemente em cenas de escravidão, de sevícia, de castigo, com corpos hiperssexualizados. Parte da nova produção tem trabalhado em cima dessas imagens traumáticas como um modo de encontrar uma espécie de cura (individual e coletiva) para os traumas da escravidão e do colonialismo. Contrapor esses artistas, que muitas vezes não aparecem juntos — um Debret ao lado de um Paulo Nazareth, um Rugendas ao lado de uma Rosana Paulino — , é uma homenagem a essa produção negra contemporânea que tanto tem se apoiado nas imagens do passado para tematizar questões do presente.

Na antologia de textos da exposição, você fala da arte afro-brasileira como um conceito em disputa. Em linhas gerais, qual seria essa disputa?

“Okê Oxossi”, Abdias Nascimento

No meu mestrado em Antropologia na USP, eu fiz uma pesquisa sobre exposições e críticos de arte afro-brasileira ao longo do século 20 no Brasil. Até onde pude retraçar, a primeira exposição de arte afro-brasileira no nosso país foi (muito provavelmente) a realizada em 1934 no Recife, no Teatro Isabel, organizada por Gilberto Freyre e Cícero Dias. A exposição se chamava Arte afro-brasileira e era composta basicamente de telas de artistas modernistas brancos do Sudeste, cujas obras foram levadas ao Recife e expostas ao lado de objetos afro-religiosos e de folguedos. Então já nessa primeira exposição estava marcada uma tônica que se reproduziria ao longo de quase todo o século 20 no Brasil. Quando se fala em arte afro-brasileira se fala muitas vezes em obras de artistas que não necessariamente são negros, mas que tematizam questões negras. Durante muito tempo, o foco no Brasil esteve na representação, ou seja, no conteúdo das obras, e não na autoria. Esse é um cenário tipicamente brasileiro. Quando se fala em arte afro-americana, está se falando de uma produção negra americana, é autoria o recorte, o que significa dizer que uma arte afro-americana pode ser tanto uma arte abstrata quanto uma obra de conteúdo político negro. Esse tipo de entendimento da arte afro-brasileira como um arte possivelmente feita por pessoas brancas, desde que tematizassem temas negros, se reproduziu em várias exposições ao longo do século 20. Mesmo Abdias Nascimento, com seu Museu de Arte Negra, nos anos 50, reuniu acervo composto por obras de artistas negros e também brancos. Então mesmo o nosso Abdias tinha um entendimento de arte negra que foi mudando ao longo do tempo e foi se politizando especialmente no seu auto-exílio nos Estados Unidos, quando começou a se aproximar de uma concepção de arte afro-americana e lá começou a pensar nas artes negras do Brasil como uma arte de autoria negra.

E quando isso começa a mudar no Brasil?

Vai ser 1988, no centenário da Abolição, que Emanoel Araújo organiza uma exposição chamada A mão afro-brasileira, que tomava a autoria negra como o critério definitivo desse campo artístico. Ou seja, é uma arte afro-brasileira aquela feita por artistas afro-brasileiros. Nessa concepção, entram tanto artistas que tematizam questões negras como artistas que fizeram suas obras dentro de um código bastante ocidental — os irmãos Timótheo da Costa, o Aleijadinho, o Mestre Valentim e uma série de outros artistas, do período colonial ao contemporâneo, que compartilham entre si o fato de serem negros, e não necessariamente uma tematização, uma técnica ou um suporte específico. Mas esse foi e continua sendo um conceito em disputa no Brasil, muito informada por um debate tipicamente brasileiro em que se une inclusão negra com exclusão. Muitas vezes o Brasil inclui produções culturais e artísticas de origem negra, mas exclui o produtor.

“O Menino” (1917), Arthur Timótheo da Costa / “Cabeça de Homem” (1891), Antônio Rafael Pinto Bandeira

E isso acontece ao mesmo tempo?

Geralmente ao mesmo tempo. Por exemplo, se pensarmos que a capoeira virou um esporte nacional, que o samba virou um ritmo nacional. Essa nacionalização de símbolos de origem negra sempre se deu num processo em que se inclui o produto e se exclui o produtor. Todos gostamos de capoeira, mas sabemos nomear mais de dois capoeiristas? Todos adoramos acarajé, moqueca, comidas de origem africana. Sabemos nomear mais de duas chefs negras, mais de duas baianas de acarajé? Esse processo que inclui um produto de origem negra ao mesmo tempo em que exclui o produtor informa muito essa conceituação ambígua do que é a arte afro-brasileira.

Você poderia citar um exemplo das artes plásticas?

Se você for ao Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, fundado pelo francês Pierre Verger no final dos anos 70, verá uma grande sala que mostra obras do artista argentino Carybé como uma espécie de grande nome da arte afro-brasileira. Esse é um tipo de configuração impensável, por exemplo, no contexto americano. Como um artista branco ocuparia a principal sala de uma exposição afro-americana? É inimaginável pensar, nos Estados Unidos, o Museu de Arte Afro-Americana representando artistas brancos estrangeiros. No entanto, no Brasil, nosso primeiro museu afro-brasileiro foi fundado por um francês para abrigar especialmente obras de um argentino. Esse tipo de inclusão pelo tema mas não pela autoria é um cenário muito brasileiro e é por esse motivo que eu nomeio que essa arte continua em disputa.

Essa questão da autoria vem mudando?

Ao menos desde o final dos anos 80, assistimos a uma produção robusta e crescente de artistas negros que têm reivindicado cada vez mais essa conceituação como algo específico de uma produção de autoria negra, guardada a sua enorme pluralidade e diversidade de interesses, temas, técnicas, suportes e diálogos com a história da arte.

As instituições estão acompanhando esse movimento?

“Memória” (2004), Sonia Gomes

De maneira ainda muito tímida. Esses artistas, apesar de fazerem grande sucesso no exterior, estão pouco representados nos nossos museus e galerias. Se pegarmos, por exemplo, o caso da Sonia Gomes. Ela vem produzindo há algumas décadas mas precisou expor na Bienal de Veneza pra começar a ter um reconhecimento devido aqui. O Brasil ainda vive essa espécie de sentimento de vira-latismo, como se estivéssemos sempre atrás, e não reconhece essa produção. As instituições estão num descompasso. Os museus brasileiros têm pouca verba, e dedicam pouco dessa verba à compra de obras — e muito pouco dessas compras são dessa produção negra. Essa exposição é uma tentativa de resposta a esse cenário em que esses artistas têm ditado uma produção contemporânea na arte no Brasil. Eles se tornaram absolutamente incontornáveis e ainda assim se encontram sub-representados nos museus e galerias. Eu vejo com esperança, sou otimista que esse cenário possa ser mudado daqui pra frente, mas ainda estamos num momento muito inicial.

Comparando com outros países — sobretudo os Estados Unidos e a Europa — ainda estamos atrasados nesse debate?

Se pensarmos que nos Estados Unidos, desde os anos 20 e 30, com o movimento do Harlem Renaissance, há uma preocupação em institucionalizar e musealizar a produção negra norte-americana; que hoje em dia há museus de arte afro-americana espalhados por todo o país; e que a última grande obra do governo Barack Obama foi a construção do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, vemos que o Brasil ainda está muito atrás nesse debate. Os Estados Unidos têm reconhecido e dado visibilidade à produção negra há muitas décadas e criado muitas instituições, de diferentes tamanhos, com diferentes materiais, suportes e temas. No Brasil, a primeira grande instituição museológica de arte afro-brasileira foi o Museu Afro-Brasil, em 2004, por iniciativa do Emanoel Araújo. Desde então não temos assistido a construção de novos museus. E mesmo exposições voltadas para esse tema, que tem crescido bastante nos últimos cinco anos, ainda são poucas, comparativamente com outros países, e não dão conta de cobrir a disparidade histórica.

“Harlem USA” (2004), Benny Andrews

Em exposições coletivas como essa, que reúnem artistas de diferentes países e períodos, não existe o risco de apagamento das particularidades estéticas de cada um deles?

Essas exposições são importantes e carregam muita ambiguidade. Ainda é necessário, no Brasil, afirmar que existe uma produção artística negra. É inacreditável termos que, em 2018, afirmar isso, mas vem daí a necessidade de exposições coletivas que tratem a autoria negra como um recorte curatorial importante. Mas eu diria que mesmo o nome, a ideia de uma arte afro-brasileira, é feita para ser desfeita, ou seja, é uma conceituação provisória. Eu considero esses artistas brasileiros. Eles são artistas negros, mas são sobretudo artistas brasileiros, fazendo uma arte contemporânea, em franca conversa com a história da arte e com outras linguagens. E não tenho a menor dúvida de que o mercado está muito atento para esse tipo de produção. Ele é muito rápido, por vezes, em rotulá-la e, aí sim, se perdem as particularidades, e se apaga a enorme diversidade da produção de artistas negros. Por outro lado, estamos num momento politicamente tão surreal no Brasil que ainda é necessário afirmar, quase como uma espécie de manifesto, que existe uma produção negra contemporânea de qualidade. Esse nosso país é muito perverso e ambíguo, de modo que na nossa história muitos artistas e artífices negros, desde a colônia, não entram nos nossos livros de história da arte, nos livros didáticos, e muitas vezes, quando entram, entram embranquecidos.

“Amnésia” (2015), Flávio Cerqueira (Fotos: Romulo Fialdini)

Como é esse processo de embranquecimento?

Se pensarmos que já no final do século 19, logo após a abolição, o Hino da República diz que “nós nem cremos que escravos outrora houvessem em tão nobre país”. Esse “outrora” era apenas um ano e meio depois da abolição. Então logo após o Brasil entrou num processo organizado de apagamento da escravidão e das heranças negras e em um processo organizado de branqueamento de personagens. Pensemos, só pra citar um grande exemplo, no Machado de Assis. O risco do branqueamento é tão grande quanto o risco de anular as particularidades individuais.

Essa exposição abre duas semanas depois que um clipe do Jay-Z e da Beyoncé colocou em escala massiva o debate sobre a representatividade na arte. Para onde estamos caminhando?

O clipe da Beyoncé e do Jay-Z demonstra que eles entenderam que museus importam, que representação importa e que representatividade importa mais ainda. Eles desvelam diante de um dos maiores ícones da alta cultura e da arte ocidental, que é o Museu do Louvre, como essa alta arte excluiu personagens negros das telas e igualmente excluiu autores negros das obras. A mensagem política do clipe me parece uma espécie de síntese do momento que estamos vivendo em todo o mundo — Histórias afro-atlânticas também é um uma espécie de reação, de produto do momento presente. Há um movimento forte nas artes, de militância negra e antirracista, em ao menos dois aspectos fundamentais. De um lado, questionar o modo como corpos negros foram retratados na história da arte, como eles aparecem nessas chamadas grandes obras. E de outro, um questionamento sobre a ausência de autores, pintores e artistas negros nessa mesma história da arte. Quem são os autores que entram nas grandes instituições e museus? Quem são os pintores que estão no Louvre? Este é um momento político e artístico muito interessante, em que novos nomes têm aparecido e que antigos nomes têm sido retirados do embranquecimento, da poeira do esquecimento da história. Estamos caminhando, quero acreditar, para um momento que leva a sério que só se pode falar em democracia com D maiúsculo se levarmos em conta que o terreno da arte e das representações da cultura é importante, está em disputa, informa consciências e gera imagens. Já passou da hora de superarmos que os corpos negros só podem entrar em museus se for em condições de subalternidade, na condição de trabalhadores do museu e quase nunca como artistas, curadores e diretores. Já passou da hora de superarmos a ideia de que corpos negros só podem aparecer nas obras de arte em situação de inferioridade. É o momento político de entender que estamos em todas as partes, sempre estivemos em todas as partes e estamos requisitando o que também é nosso. A contribuição negra, os aportes negros para as artes do mundo foram dados desde a Antiguidade, mas vêm sendo apagados. Está na hora de mudar esse esquema.

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