Fora da Ordem

"This Is America", de Childish Gambino, volta ao foco com as eleições americanas, mas como essa experiência audiovisual se relaciona com a nossa realidade?

Cacá Machado
Revista Bravo!
5 min readNov 12, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

Assisti tardiamente o clipe This is America, de Childish Gambino, lançado em 2018. Foi no final do ano passado quando surgiu o assunto numa mesa com amigos sobre Donald Glover e sua série “Atlanta” (Netflix). Ali fiquei sabendo que Gambino era a versão músico do ator e escritor Glover, mas acabei boiando na conversa sobre o clipe e a série. Corri atrás do prejuízo. Tudo muito impactante, mas fiquei com uma sensação residual de desconforto sobre o modo como Gambino operou no clipe as variações entre um determinado sarcasmo e a literalidade crua da denúncia do racismo na história recente dos EUA. Algo que lembrou alguns momentos, ainda que distante, o cinema do Spike Lee (Hora do show e Faça a coisa certa, por exemplo).

O clipe fez pensar, na realidade, em nós, no Brasil, e de como as coisas funcionam de um outro jeito por aqui. Não existe sarcasmo, por exemplo, em Mano Brown, Dexter ou Afro-X. O rap brasileiro se realiza fora da ordem dominante. Voltarei a este ponto adiante. Antes, vale contextualizar melhor Glover/Gambino.

Na semana passada, em determinado momento da contagem dos votos da eleição presidencial norte-americana, todos os olhos se voltaram para o Estado da Geórgia. Lugar historicamente racista e opressor, a cidade de Atlanta viu a diferença que fez a população afro-americana ir às urnas votar no democrata Joe Biden. Mesmo com a perspectiva da recontagem e com a diferença mínima de votos entre os candidatos, é evidente a força simbólica da voz ativa dos eleitores negros que abalou a supremacia branca do Estado sulista.

Não à toa, o clipe de Gambino voltou a circular nos feeds das redes sociais. Um post que apareceu no meu feed dizia: “Georgia, Black Lives Matter, derrotando os fascistas. O ponto zero dessa nova onda que chegou no ápice em 2020 para mim é esse aqui: This is América”. Muito já se falou sobre o clipe mas acredito que a jornalista da revista New Yorker, Doreen St. Félix foi precisa no nó da questão: “O vídeo já foi descrito com entusiasmo como um poderoso grito de guerra contra a violência armada, um poderoso retrato do existencialismo negro americano, uma poderosa denúncia de uma cultura que circula vídeos de crianças negras morrendo tão facilmente quanto vídeos de crianças negras dançando em grandes estacionamentos. São todas essas coisas, mas é também um documento fundamentalmente ambíguo. A verdade é que esse vídeo, e o que ele sugere sobre seu artista, é muito difícil. Muita gente negra odeia. Glover nos força a reviver traumas públicos e mal nos dá tempo para respirar antes de nos obrigar a dançar. Há um desdém inescapável costurado no tecido de This Is America. O próprio fato das cenas de dança já estarem sendo transformadas em pequenos gifs divertidos online, divorciando-as da brutalidade do vídeo, só serve para provar o seu ponto de vista”. (https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/the-carnage-and-chaos-of-childish-gambinos-this-is-america)

A questão que a jornalista da New Yorker apresenta é justamente a ambiguidade que o clipe carrega em expor a violência do processo do racismo norte americano dentro da ordem da indústria do entretenimento. Aí reside uma força ao mesmo tempo libertadora e limitadora. Glover, que por muito tempo tentou emplacar algum sucesso, conseguiu projeção internacional com “This is America”. Para a militância negra mais radical isso é negativo. Muitos não gostam de Glover. Para outros, como a própria jornalista negra Doreen St. Félix, a “carnificina e o caos” do clipe é estimulante. De todo modo, a questão racial nos EUA se faz dialeticamente dentro e fora da ordem dominante.

No Brasil é diferente. Sob a perspectiva do que hoje chamamos de racismo estrutural, por muito tempo os sujeitos negros e periféricos tornaram-se invisíveis ou representados de modo subjulgado pela lógica branca dominante. Muitos e importantes autores tratam do tema, mas Acauam Oliveira vem sistematicamente, nesta coluna que divide comigo, discutindo as diferentes perspectivas envolvidas — seja no afrofuturismo afirmativo e festivo de Jorge Benjor, na negação do reconhecimento literário de Carolina de Jesus, na complexa relação de Machado de Assis entre jogar o jogo do embranquecimento e o tabu de se revelar mulato, nos paradoxos de identidade do Rei Pelé enquanto falta ou, por fim, na voz ativa do rap. E aqui chegamos no ponto: o rap “dispensou” a indústria do entretenimento dominante e os intelectuais progressistas de classe média para criar a sua própria estrutura de pensamento e “mercado”, sem chancela de nenhuma ordem.

O clipe “Voz ativa” lançado neste ano por Dexter, DJonga, DJ Kl Jay, Coruja BC1 e DJ Will é a regravação da clássica faixa do segundo álbum dos Racionais MC’s, Escolha seu caminho (1992). Nas palavras de Acauam: “2020 reatualiza a seu modo o racismo predatório de 1992, destruindo vidas e desarticulando comunidades. A vitória do rap como tomada de consciência não está, portanto, na celebração acrítica de sua existência, mas na capacidade de reatualização de seu compromisso histórico com a coletividade negra periférica contra um modelo de sociedade que conduz a todos, mas sobretudos aos pretos, rumo ao apocalipse. Existe celebração — afinal, seguir vivo é uma vitória contra o sistema — mas a alegria nesse caso é também dotada de agressividade. É a alegria-capoeira, em que o que se celebra é a própria capacidade de lutar.” (https://medium.com/revista-bravo/a-voz-ativa-dos-negros-marcados-para-morrer-355c3b1d7a76)

Diferente de This is America (2018), não há lugar para ironia, ambiguidades ou sarcasmo em “Voz ativa” (2020). Aqui o papo é reto. Enquanto o rap americano de Gambino opera em certa chave alegórica e em tensão dialética com a ordem e a desordem do sistema dominante, o rap brasileiro de Dexter e dos Racionais MC’s operam fora da ordem. Constroem, em meio a um altíssimo custo de vidas pretas e periféricas exterminadas, o seu próprio sistema de resistência, afetos e historicidade entre os sobreviventes.

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