O futuro é trans

Em Campinas, Feverestival encerra sua 15ª edição com apologia aos futuros desejáveis

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
6 min readFeb 14, 2020

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A atriz e transpóloga Renata Carvalho em Manisfesto Transpofágico © Cecilia Lucchesi

Há exatos 20 anos eu fui pela primeira vez a um festival de artes. E foi uma experiência TRANSformadora: um horizonte amplo, colorido, diverso, feliz e solidário surgiu à minha frente.

Ano passado, escrevi para a Bravo! um breve relato do início da minha carreira jornalística que — advinhe só! — também começou em um festival. Desde então, trabalhei, participei e/ou fiz cobertura de mais de uma centena de festivais. São eventos capazes de refletir a pluralidade e a vastidão do Brasil de norte ao sul.

O Feverestival chegou até mim por uma inusitada — budistas entenderão — relação de causa e efeito. A seguir, remonto os principais episódios da jornada para descobrir o significado do tema futuros desejáveis.

Elenco da peça Negra Palavra — Solano Trindade e público do Teatro Castro Mendes na noite de abertura do Feverestival realizada no sábado (8/fev) © Nina Pires

Dezembro 2019
A produtora cultural Cynthia Margareth, que por 14 edições trabalhou no Feverestival, recomendou ao coordenador de comunicação Victor Ferrari e o assessor de imprensa Miguel Von Zuben a participarem de um dos meus cursos de Marketing Digital. Durante as dinâmicas e mentorias, percebi que havia uma pulsão muito forte na nova geração que se preparava para assumir a organização das atividades do maior festival de teatro da cidade de Campinas.

Eu nem poderia imaginar que o mais surpreendente ainda estaria por vir.

Janeiro 2020
Convidado para o lançamento da programação, Cynthia e eu combinamos de ir juntos até Campinas. No caminho, em uma ensolarada manhã de verão, enquanto dirigia, ela resumiu como foi sua dedicação nestes 17 anos. Explicou o motivo de seu afastamento da direção do festival. Contou ainda como estava fluindo a fase de TRANSição da liderança dos antecessores para os jovens coordenadores. E confessou:

“Combinamos que hoje vou ler uma carta de despedida que até agora não consegui escrever”.

Ela mirou profundamente no horizonte da rodovia. Vi quando seus olhos iniciaram a produção de lágrimas.

Chegamos ao Vitória Hotel com bastante antecedência. Pois havíamos nos apressado para abandonar o centro expandido de São Paulo antes do início do rodízio veicular. Cynthia quis opinião para escolha entre duas opções de “look do dia”, pediu um café, abriu sua caderneta e fez anotações.

O evento começou e conheci boa parte da “nova e jovem” equipe, que reúne em si mesma um futuro desejado há anos por tanta gente que defende e batalha por uma sociedade mais igualitária. A começar pela coordenação geral exercida por Bruna Schroeder, que, com gravidez avançada, não perde o pique e se mostra muito precisa nas ações e na fala diante de cerca de 50 colaboradores.

Dentre eles, estão 17 estudantes da Unicamp, que recebem uma bolsa de R$ 400 para atuar em diferentes departamentos do festival de meados de janeiro a meados de fevereiro. A verba é oriunda de convênio com a própria universidade. E o Feverestival, como sinalizou Ferrari, é uma forma de promover a profissionalização.

A manauense Cacompanhia de Artes Cênicas, que é a representante da macrorregião do Norte, se apresentou na tradicional Casa de Cultura Tainã © Chun

Dandara Lequi, que compartilha a coordenação de produção com Dudu Ferraz e Vini Silveira, foi bem realista quando questionada sobre os desafios frente ao orçamento de R$ 150 mil, captados via ProAC, para a realização de sete dias ininterruptos de programação. “Por mais que a curadoria tenha insistido para que fossem incluídas mais peças, mantivemos a proposta inicial de ter um trabalho representando cada macrorregião”.

Helena Agalenéa, que integrou o time de curadores com Bell Machado, Carlos Gomes, Cynthia Margareth, Dandara Lequi e Isis Madi, confirmou a postura irredutível, alegando que das 374 inscrições de artistas de todo o país, conseguiram extrair temáticas urgentes, sobretudo a discussão cênica proposta pela atriz Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico.

Cynthia, que nesta edição é coordenadora da ação pedagógica, fez uma “passada do bastão” emocionante. Lembrou que iniciou com a mesma idade de seus novos colegas. Destacou como os grupos Lume, Matula e Barracão são importantes para a manutenção da cena artística e sobrevivência do Feverestival. E tornou público o seu conselho aos novatos. “Eu sempre disse a eles que para fazer um festival é preciso escutar a cidade”.

E, de fato, houve uma escuta atenta.

Só me restava ver in loco a efetivação da TRANSição. Já no alinhamento do meu presente desejável com o assessor de imprensa Von Zuben, o Feverestival me recebeu em seus dois primeiros dias. Também pude viver a experiência — até então inédita — da famosíssima e tradicionalíssima hospitalidade de Barão Geraldo (distrito de Campinas onde há grande concentração de universitários, artistas e veganos). E que tem a tradição de receber os que chegam para ver, estudar ou desenvolver atividades nas Artes Cênicas.

Eu e o assessor de imprensa e anfitrião Miguel Von Zuben © Nina Pires

Fevereiro 2020
No sábado (8/fev), fui para Campinas. No palco, a peça carioca Negra Palavra — Solano Trindade, do Coletivo Preto e Companhia de Teatro Íntimo, fez uma irretocável abertura para o Feverestival. Embora a estratégia de aproximação com o público se dê a partir da exposição caricatural sobre o homem negro no Brasil, um traço da poética de Trindade, há eficiência em “dar o recado’’ sobre o combate ao racismo pelas vias da promoção da autoconfiança e do amor. Comove esta manifestação na cidade onde se perpetua o mito — já refutado — de ter sido a última a abolir a escravidão. Com direção de Orlando Caldeira e Renato Farias, a pesquisa pode expandir seguramente seu potencial musical, pois está ainda muito contida. É como uma semente que guarda dentro de si uma vida. Ao germinar, sairá dali um baobá.

Assisti também O Palhaço de La Mancha, da Cacompanhia de Artes Cênicas, de Manaus. Nada de especial. Porém, o ponto mais interessante é a reflexão sobre a falta de protagonismo feminino no clássico romance de Cervantes.

Na sequência, a campineira Cia. Laleoni se apresentou com A Vaqueira. A palhaça Papoula, alimentada pela atriz Pamela Leoni, tira sarcasmo — como quem tira leite de uma vaca — para abordar as tragédias ambientais e sanitárias decorrentes das políticas públicas que favorecem inescrupulosamente o agronegócio e a pecuária. A conexão da palhaça com a plateia é magnética.

A programação contou com Coletivo Passarinha e Núcleo Fuga!, ambos de Campinas; a mineira Companhia Catibrum Teatro de Bonecos; o brasiliense Teatro de Concreto; o cearense Manada Teatro; e a catarinense La Luna Cia de Teatro. A presença internacional ficou com os mexicanos do Vaca 35 Teatro.

O encerramento apoteótico da utopia em fase de realização está sob responsabilidade de Manifesto Transpofágico, no qual a atriz Renata Carvalho, dirigida por Luiz Fernando Marques, expõe com eloquência parte de sua pesquisa-vivência sobre sua transpologia (termo usado como equivalente à antropologia). Sobre esta peça, recomendo a leitura do artigo do Renato Gonçalves publicado na Bravo! e, evidentemente, que você também vá ao teatro para desmistificar o mistificado.

Notemos o próprio futuro desejável da Renata Carvalho: permanecer viva. Aos 38 anos, ela celebra ter ultrapassado a média da expectativa de vida para pessoas trans no Brasil, que em média vivem 35 anos, a metade do restante da população.

Essa edição do Feverestival se mostrou e se provou de uma estupenda coerência entre discurso e prática. Curadoria, equipe, convidados e público que não apenas representam a diversidade: são a própria diversidade. E são pessoas que se esforçam verdadeiramente para oferecer acessibilidade. Pois é justamente a ausência dela, em quaisquer de suas acepções, que de fato se cria as mais brutais das violências.

O futuro é TRANS. Só há futuro porque o tempo presente se entrega à TRANSformação. Quer a gente deseje isto ou não.

15º Feverestival. 8 a 14 de fevereiro. Campinas, SP.

Manifesto Transpofágico, com Renata Carvalho. 14 de fevereiro (sexta). 20h. Teatro Municipal Castro Mendes. 60 min. 18 anos. R$ 10 a R$ 20. Ingressos promocionais à venda na bilheteria Sympla com o código #TeatroParaTodes

Para saber mais: www.feverestival.com.br

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