Sonhos da vanguarda argentina
Novo livro de Sergio Miceli se debruça sobre o modernismo literário de 1930 na terra dos hermanos
O livro que escolhi para a crítica da semana chegou num período curioso, quando a resenha de Me Chame Pelo Seu Nome alcançou o maior público já visto nesta coluna e, consequentemente, levou muitos leitores a me procurarem. Entre as trocas de ideias, alguns perguntaram por que dou tanto espaço para títulos de não ficção, quando há tantas obras de literatura sendo lançadas e que merecem destaque. Preciso esclarecer que, com a liberdade que tenho no meu trabalho de crítico para a Bravo!, os livros não são escolhidos de acordo com seu gênero literário, mas sim conforme o interesse que despertam em mim. Como exemplo, cito a resenha anterior, de Forte Apache, novo livro de Marcelo Montenegro que me fisgou, ainda que eu não tenha costume de ler poesias. Ademais, acredito que, se por um lado, a literatura é fundamental para nosso entretenimento, para aguçar nossas sensações e inspirações, os livros de não ficção são de suma importância para entendermos o que se passa no mundo, através do olhar especializado do autor. O que seria da nossa história sem o trabalho primoroso desses estudiosos?
Foi com esse intento que encarei o desafio de falar sobre Sonhos da Periferia, novo livro de Sergio Miceli, professor titular do Departamento de Sociologia da USP. Na obra, ele se debruça sobre a história do modernismo argentino, ainda pouco conhecido no Brasil — se comparado ao que se sabe sobre Europa e Estados Unidos na hora de analisar nosso próprio modernismo literário. Como objeto de estudo do livro, Miceli focou na revista Sur, fundada em 1931 pela escritora Victoria Ocampo. Os contrastes daquela fase da vanguarda argentina com a brasileira são constantes e deixam o livro cada vez mais interessante, como já no início, quando ele fala que “enquanto no Brasil foi se configurando um regime de cooptação dos intelectuais pelo Estado, no país vizinho a inteligência subsistiu dependente do mecenato privado”.
“Sur logo se tornou o carro-chefe do establishment cultural e artístico sediado em Buenos Aires. Victoria Ocampo e os parceiros de mecenato privado — os irmãos Garaño, Oliveiro Girondo e os primos Bullrich, entre outros — integravam os quadros dirigentes de prestigiosos organismos da fração culta do patriciado argentino. A Associação Amigos del Arte, gerenciada por damas da alta sociedade, e o Teatro Colón, cuja direção artística fora assumida por Victoria Ocampo em 1934, constituíam espaços exclusivos da movida chic, que operavam em sintonia com a agenda de atividades promovidas por Sur (conferências, debates, cursos, exposições, concertos e espetáculos), cujos frutos — textos, transcrições de diálogos, críticas de artes plásticas, de música, de teatro, de ópera — provisionavam a revista”.
Lembro de uma entrevista concedida pela crítica literária argentina Beatriz Sarlo, uma das maiores referências mundiais em estudos de cultura de massas, vanguardas modernistas e papel dos intelectuais. No trabalho acadêmico de Alejandro Blanco e Luiz Carlos Jackson, Sarlo comenta:
“A oposição que Sur despertava no peronismo revolucionário de esquerda ou na esquerda intelectual de jovens, como eu era nesse momento, somente pode ser encontrada atualmente nos blogs. Era uma Argentina extremamente cindida, com o peronismo proscrito, com golpes de Estado cada vez que o peronismo candidatava-se às eleições. Nesse momento, circulava também a ideia — que discuti com María Teresa Gramuglio — de que Sur nunca vislumbrara qual era a literatura realmente contemporânea. A revista havia feito uma série de escolhas dentro de um campo estético amplo, que incluía Borges, mas não as vanguardas europeias. No entanto, o primeiro artigo publicado sobre Ulisses, de Joyce, apareceu em Sur. Mas o mais experimental não era celebrado pela revista. A respeito da literatura inglesa, preferiam Virginia Woolf a James Joyce. Eram os gostos de Victoria Ocampo, mas também de Borges e de Bioy Casares, que não podiam conceber um romance que destruísse o princípio narrativo e de trama como fazia Joyce em Ulisses. Eles se sentiam, sobretudo Ocampo, tão argentinos quanto cosmopolitas. Era o caso do argentino que fala francês na fazenda e que é criolo em Paris.
"Outro aspecto relevante relaciona-se com o significado de Sur, não apenas a revista, mas também a editora, como instrumento de tradução, modernização e conversão cosmopolita de uma cultura, algo muito estudado por Patricia Willson. Lolita, romance de que Victoria Ocampo não gostava muito, saiu em Sur. Sem dúvida, Ocampo gostava mais de Huxley do que de Nabokov. Era uma mulher formada no fim do século 19, inclinada às formas culturais da modernidade mas não às formas experimentais. Identificava-se com a clássica moderna de Picasso, Stravinsky, Woolf, Huxley. Mesmo assim, Lolita saiu em Sur quando esse romance era um escândalo. Portanto, o que vemos em Sur é a realização mais ponderada do esquema de mescla que funciona de maneira sempre tensa e conflituosa em Borges. De tal maneira, Sur é a revista da modernização, o que as revistas de vanguarda como Martín Fierro ou Contra não podiam ser, pois não buscavam modernizar, mas fechar um ciclo para implantar outro. E foi o que ocorreu, porque Borges, sem suspiros, passou das revistas de vanguarda a Sur, na qual publicou todos os seus textos clássicos”.
Enquanto a primeira parte de Sonhos da Periferia se dedica completamente à Sur, a segunda metade tem como cerne as trajetórias de Horacio Quiroga e Alfonsina Storni, cujas “colunas nas revistas La Nota e La Nación abordavam os tópicos candentes da agenda feminista da época e discutiam os impasses então enfrentados pelas relações de gênero, no âmbito doméstico, no mundo do trabalho, na vida amorosa e no espaço político. A força persuasiva de Alfonsina se apoia em materiais autobiográficos e no recurso contumaz aos faits divers, às manchetes do noticiário, à cobertura do cotidiano”.
Exatamente por tratarem de assuntos que não eram compatíveis com o grupo da Sur, com a elite intelectual da época, Quiroga e Alfonsina foram rechaçados por Borges e seus congêneres. Felizmente, com o passar dos anos e a evolução dos estudos literários argentinos, a dupla passou a ser reconhecida pela grandeza de sua obra. Sobretudo por sua coragem, refletida tanto em seus escritos quanto em sua liberdade de viver, de decidir o que fazer e como encerrar a própria vida [ambos se suicidaram entre 1937 e 1938].
Sonhos da Periferia não é uma obra fácil. A linguagem extremamente acadêmica — principalmente na primeira metade — dificulta a leitura rápida, apesar de só ter 184 páginas. Outras publicações com o mesmo palavreado, e até com centenas de páginas a mais, foram concluídas e resenhadas nesta coluna de maneira mais rápida. O livro de Sergio Miceli exigiu algumas semanas para ser lido por completo. E levaria outras semanas, se fosse necessário. Como eu disse, não é uma leitura simples. Porém, o que deve ser considerado mais relevante neste caso é o quanto se faz um registro histórico indispensável para entusiastas, leigos e especialistas nos estudos de literatura, jornalismo cultural e vanguardas modernistas na América Latina.
É um livro que me faz reafirmar a importância de dar espaço na mídia e na crítica literária para obras de não ficção. Elas são guardiãs de tudo que o mundo passou e, na maioria das vezes, ajudam a compreender como chegamos até aqui, e porque vivenciamos tanta coisa nos dias atuais. Cito novamente Beatriz Sarlo, viajante inveterada e autoridade em pesquisas culturais, que em 2015 afirmou ao jornal El País: “Os livros me parecem uma fonte tão importante quanto as viagens. É diferente quando se trata de arte: ver uma representação teatral ou escutar um concerto, uma banda de jazz ao vivo, é diferente da sua reprodução técnica (Benjamin já falou a respeito). Acho que certas coisas se aprendem ‘ao vivo’, mas têm mais a ver com experiências estéticas que com experiências socioculturais”.
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Sonhos da Periferia, de Sergio Miceli. Editora Todavia, 184 páginas. R$ 59,90.