Beatles e Tarot (2): O Rei Sol e a Travessia

Da ilusão do mundo material à transcendência meditativa, do emocional ao mental, da criação coletiva ao enfrentamento das suas individualidades, com o fim do quarteto

Isabella Lígia Moraes
revista Capitu
6 min readJan 14, 2016

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[Leia a primeira parte do artigo]

Não é à toa que muitos estudiosos de sistemas esotéricos afirmam que o Tarot é um livro. Afinal, ele realmente conta uma história, em que O Louco (carta zero ou 22, a depender do baralho) é o protagonista. O caminho percorrido por ele e os encontros com os arquétipos humanos ocorridos em sua trajetória, que o iniciam nos grandes mistérios da vida, são conhecidos como A Jornada do Louco. Esta é, na verdade, a jornada de cada ser humano no caminho do autoconhecimento.

E foi em busca de autoconhecimento que, em 1968, o fabuloso quarteto dos Beatles, acompanhados de suas esposas, empreenderam uma viagem à Índia e conheceram sistemas de meditação orientais com o mestre Maharishi Maheshi Yogi. Durante a viagem, eles compuseram a maior parte das canções que integrariam o disco popularmente conhecido como The White Album, do qual as conturbadas gravações seriam decisivas para o processo de dissolução do quarteto, que se daria entre 1969 e 1970.

McCartney, Lennon, Harrison e Starr com o mestre Maharishi Maheshi Yogi.

Algumas músicas compostas no período passado na Índia, com destaque para George Harrison como compositor, entraram na estrutura cuidadosamente planejada do último álbum dos Beatles a ser gravado, Abbey Road (1969). Esse álbum aponta profeticamente para o fim do quarteto, encerrando-se com a música “The End”, que fecha o álbum antes da “faixa escondida”.

As canções do Lado A, de “Come Together” a “I Want You”, foram gravadas individualmente, enquanto o Lado B apresenta séries de músicas interligadas, que formam conjuntos mais ou menos significativos com músicas curtas que não são interrompidas. É relevante o primeiro conjunto de canções, formado por “Here Comes the Sun”, “Because”, “You Never Give Me Your Money” e “Sun King”, gravadas nesta ordem. Apesar da aparente incoerência entre as temáticas desse conjunto de canções, vemos uma evidente semelhança entre a primeira canção e a última, que apresentam a temática do Sol.

A canção que abre o conjunto, “Here Comes the Sun”, trata de um longo inverno que parece ter durado anos, mas que agora é sobrepujado pelo Sol que vem, deixando tudo bem e trazendo os sorrisos de volta para os rostos.¸

Little darling, it’s been a long cold lonely winter (…)

Little darling, the smiles returning to the faces
Little darling, it seems like years since it’s been here

Here comes the sun, here comes the sun
And I say it’s all right

A canção, de acordo com o próprio Harrison em sua autobiografia de publicação póstuma I Me Mine, foi composta em um período de conflitos de interesse com a gravadora Apple, mais exatamente em um dia em que George decidiu não ir ao estúdio de gravação e se dirigiu à casa de Eric Clapton, em cujo jardim passeou e compôs a canção. O manuscrito da letra traz o desenho de um sol sorrindo. O papel em que a letra foi escrita é ilustrado com temas indianos e traz o mantra “om” desenhado por Harrison após o título.

Manuscrito da letra de “Here Comes The Sun”, composta por George Harrison.

Já “Sun King”, composta por John Lennon, fecha o conjunto e apresenta a mesma temática. Nessa letra, o rei Sol vem e traz sorrisos e felicidade às pessoas. O trecho final traz uma miscelânea de palavras soltas em diversos idiomas, formando frases nonsense.

Here comes the sun king
Everybody’s laughing
Everybody’s happy

Sabemos que, especialmente após a viagem à Índia, os Beatles estavam cada vez mais envolvidos nos estudos das culturas orientais. O conhecimento místico nos permite associar essa imagem do sol que nasce e dissipa o inverno e os problemas ao 19º arcano do Tarot de Rider-Waite: O Sol.

Arcano 19 — O Sol, no tarot de Rider-Waite.

A representação desse arcano traz uma criança montada em um cavalo branco, com um penacho vermelho na cabeça e expressão de alegria. Há uma flâmula vermelha e girassóis ao fundo, enquanto o sol brilha soberano sobre a cena. Essa carta traz a ideia de renascimento ao final de um ciclo ou período conturbado, luz, clareza, intuição, razão. As cartas em que aparece a imagem do sol estão sempre relacionadas a essa ideia de renascimento e clareza.

Arcanos maiores em que aparece a figura do Sol, no tarot de Rider-Waite.

Esse arcano vem logo após A Lua, 18º arcano do Tarot. A Lua representa um período de ilusões, a noite confusa, dispersa em seguida pelo nascer do Sol.

Conhecendo o simbolismo das duas músicas que abrem e fecham a sequência de quatro canções ininterruptas, restam-nos as duas canções entre os sóis. “Because”, composta por Lennon e McCartney, expressa uma atmosfera difusa, como um sonho, melancólica.

Because the world is round, it turns me on
Because the world is round…

Because the wind is high, it blows my mind
Because the wind is high…

Love is old, love is new
Love is all, love is you
Because the sky is blue, it makes me cry

O vento confunde a mente, o mundo parece girar, enquanto velho e novo, particular e universal, o amor e a melancolia se fundem. Assim, essa canção traz a representação da confusão e indefinição, oposta à solução e clareza das canções solares que emolduram a sequência: “Because” associa-se, nesse sentido, ao arcano A Lua. Essa carta apresenta um lago do qual sai um lagostim ou caranguejo,e frente ao qual um cão e um lobo uivam para a lua que brilha no céu estrelado. Relaciona-se com as águas profundas do inconsciente e com a ilusão.

Arcano 18 — A Lua, no tarot de Rider-Waite.

A relação dessa canção com o arcano 18, A Lua, fica ainda mais evidente ao notarmos que a base da canção é a “Sonata ao Luar”, de Beethoven, tocada ao contrário. Conta-se que, certa vez, Yoko Ono tocava essa composição ao piano, quando John Lennon teve a ideia de pedi-la para tocar os acordes invertidos. Gostando da melodia resultante, compôs “Because”.

A canção seguinte, “You Never Give me Your Money”, trata de conflitos com a gravadora e fala da falta de dinheiro. Está também associada à confusão inerente ao arcano Lua, pois ele traz a ideia de mundo visível, realidade material enquanto reflexo, aparência e ilusões. Em um jogo de Tarot, A Lua, quando aparece, inspira a mudar a direção que se segue.

Esse conjunto de quatro canções, duas que tratam de aspectos solares ao lado de duas que abordam aspectos lunares, simbolizam uma travessia na Jornada dos Beatles. Da ilusão do mundo material para a transcendência meditativa, do plano emocional para o mental, da criação coletiva para o enfrentamento das suas individualidades, com o fim do quarteto. A própria capa do álbum traz o quarteto atravessando a rua em uma faixa de segurança. Jornada mágica, misteriosa travessia.

Isabella Lígia Moraes é mestre em literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel e licenciada em letras pela mesma instituição. Atua principalmente com os seguintes temas: mitologia, epopeia, poesia da modernidade, Cláudio Manuel da Costa, literatura e filosofia.

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