Mulheres lésbicas e prostituição

Revista Entendidas
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14 min readMay 10, 2021

Marginalizadas pelo mercado de trabalho, lésbicas se tornam fetiche nas mãos de “clientes” e cafetões

Por Fúria Raiz

A noção de “escolha” das mulheres tem, historicamente, sido usada para justificar uma série de violências cometidas contra elas. Desde a feminilização [1] para a qual somos socializadas, passando pela heterossexualidade compulsória [2] até a violência doméstica, a mulher é quem “gosta”, a mulher é quem “quer” — isso é tão internalizado que, muitas vezes, acreditamos que queremos mesmo. Não é diferente com a prostituição.

A ideia de que a prostituição é, mais que uma escolha, uma expressão da sexualidade da mulher está cada vez mais popular na academia e nos movimentos de esquerda. Os prejuízos para todas as mulheres são muitos — em vez de lutar por políticas públicas de auxílio à saída da situação de prostituição, o liberalismo advoga que o fim do “estigma” que certamente atravessa mulheres em situação de prostituição seria suficiente para tornar a vida dessas mulheres saudável, mesmo permanecendo dentro da indústria do sexo. Mas quais são as consequências disso para mulheres que, além de estar em situação de prostituição, amam exclusivamente mulheres?

“Existem conexões entre lésbicas e ‘prostitutas’. Eu sei porque eu sou uma. Uma lésbica. Uma ‘ex-prostituta’. Eu vivi a conexão. Eu ainda convivo diariamente com os resultados”, diz Toby Summers* (1987) em Women, lesbians and prostitution: a workingclass dyke speaks out against buying women for sex (Mulheres, lésbicas e prostituição: uma lésbica da classe trabalhadora fala contra a compra de mulheres por sexo). Sheila Jeffreys, pesquisadora e feminista lésbica inglesa, em The idea of prostitution (A ideia da prostiuição), também discorre sobre essa relação:

“A prostituição teve um papel bastante diferente na história e na cultura lésbicas [em relação à cultura e à história de homens gays]. As mulheres têm sido, em vez de sujeitos, objetos na indústria do sexo — e isso não é menos verdadeiro para mulheres lésbicas, quando comparadas às mulheres heterossexuais. Lésbicas trabalharam como mulheres prostituídas, e mulheres prostituídas e lésbicas têm socializado e bebido juntas em bares, mas lésbicas não têm sido, historicamente, ‘clientes’.”

Pelo fato de as lésbicas passarem por tanto apagamento, esse é um contexto que não costuma ser abordado, apesar de fazer muito sentido. É claro que existem lésbicas na prostituição — lésbicas são marginalizadas, e a prostituição é um fenômeno milenar cuja gênese está no patriarcado e que se sustenta numa combinação deste com o capitalismo. Ela está fundamentada num sistema fortemente marcado pelo racismo e pela pobreza, constituindo-se na exploração de mulheres e meninas que são a parcela da população em situação de maior vulnerabilidade social e econômica. É claro que existem lésbicas na prostituição — inclusive, para a surpresa de muitos, lésbicas não feminilizadas.

A Revista Entendidas, para a construção deste texto, entrevistou Maria*, uma mulher lésbica que viveu em situação de prostituição por quatro anos. Maria nos confia um relato extremamente pessoal, e também político: ela começa explicando sua visão sobre a prostituição:

“Eu vejo a prostituição como um ato de desespero a que as mulheres mais pobres tendem a recorrer para sobreviver no mundo capitalista. Mesmo que existam mulheres de classe média que recorrem à prostituição para ganhar dinheiro, ainda é um ato de sobrevivência das mais pobres, as que fazem por escolha são minoria. Ninguém acorda um belo dia e pensa ‘vou me prostituir para ganhar a vida’, é a consequência de uma vida em que existiu alguma limitação, e 99% das vezes essas limitações são as mais básicas: comida, moradia e bem-estar. A mulher nasce com uma moeda de troca muito valiosa para o patriarcado, que anda de mãos dadas com o capitalismo. Tiram tudo dela, então ela usa essa moeda.”

Maria nos conta que se assumiu lésbica aos 16 anos, quando teve seu primeiro relacionamento. Paralelamente, diz que sua situação financeira era muito difícil. Cresceu em um ambiente “muito complicado” e viu sua mãe ser prostituída durante toda a infância, até ela completar 14 anos. Moraram em muitas periferias e alguns assentamentos do Movimento Sem Terra (MST). “Passamos muitas dificuldades, chegamos a catar lixo no aterro sanitário de Campinas para comer, porque era o que tinha mesmo”, relata. Foi aos 17 anos, com a oferta de ganhar quinhentos reais para passar uma noite com o advogado da loja onde trabalhava — e ganhava 480 reais por mês — que viu a oportunidade de ajudar em casa e não ver sua mãe e irmã mais nova passarem necessidade. Então, entrou em situação de prostituição.

O que significa, para Maria, dizer que prostituição é uma escolha? Quando fala sobre a moeda de troca com que nós mulheres nascemos, suas palavras evidenciam o que muitas crescemos sabendo, de uma forma ou de outra: se nossa sexualidade é transformada em produto pela sociedade patriarcal, que escolha temos? Se a alternativa é passar fome e assistir às pessoas que se ama sofrerem também; se o desespero de uma vida de necessidade é tudo o que podemos ver; se somos alienadas de nossas próprias vontades e nos é introjetada a ideia de que existimos para servir aos homens, onde está a agência em entrar para a prostituição?

Afirmar existir agência para a situação específica de mulheres na prostituição não passa de liberalismo, pois é apostar no poder individual em detrimento do coletivo. Seria como afirmar que uma pessoa tem o poder de “escolher” a prostituição, mas que a sociedade não tem o poder de mudar a situação das mulheres prostituídas. A suposta voluntariedade da mulher na prostituição existe como uma retórica desconexa a fim de torná-la o agente principal do sistema prostituinte, isentando de responsabilidade a demanda por prostituição e a cafetinagem. Por isso é tão difícil debatermos prostituição com pessoas que não conseguem sair da chave de interpretação de que mulheres elegem essa prática para suas vidas voluntariamente.

A chave que nós, feministas, usamos é a de que o patriarcado criou a indústria do sexo, e os homens são os principais beneficiados por ela, portanto, são os “clientes” e donos de casas de prostituição e bordéis, agenciadores, quem devem ser responsabilizados. Para nós, prostituição é exploração sexual [3] — ela se difere da exploração laboral na medida em que o que se consome não é o resultado de um exercício de trabalho, pois ele não se externaliza em relação ao corpo da mulher prostituída. O que se “consome”, na verdade, é o próprio corpo em si, repetidamente violado, parte integrante de sua existência. O esforço para emplacar a comparação entre trabalho exploratório e prostituição é mais uma forma de naturalização desse fenômeno patriarcal como inevitável dentro da nossa sociedade. Prostituição não é um trabalho.

Para essa discussão, é importante evidenciar que sexo não é um direito humano, o que significa dizer que ele não deve ser oferecido pelo Estado nem regulamentado por instituições garantidoras de direitos. Além disso, em termos de trabalho, quando nos referimos a ofertas de serviços e a produtos reais no sistema capitalista, os pretensos consumidores são interpretados como público-alvo ou, mais recentemente, com o empreendedorismo em destaque, o consumidor torna-se a persona que se deseja atingir, a quem queremos oferecer nosso serviço, quem gostaríamos de alcançar. O consumidor está em primeiro plano, ele precisa ser visto, interpretado e considerado. Quando falamos de prostituição, o “cliente”, o agente da demanda torna-se um sujeito invisível. Ele não é conhecido, ele se esconde, ele precisa ter sua privacidade oculta. Ou seja, não é uma relação como outra qualquer, na ordem da oferta e da procura. É para este sujeito invisibilizado, forjado numa sociedade patriarcal e capitalista que o sistema prostituinte trabalha a fim de garantir a manutenção de seus “desejos” e suas perversões sexuais.

Ser lésbica prostituída

Para Maria, estar em situação de prostituição, enquanto lésbica, era um paradoxo com o qual não conseguia lidar: “Depois disso as coisas ficaram muito conturbadas na minha vida, aí eu meio que ‘voltei atrás’ e me assumi bissexual (…). Eu era vista como lésbica por todas as pessoas com quem eu convivia, mas eu não conseguia sustentar a minha sexualidade por estar inserida na prostituição”. Toby Summers (1987) também nos conta sobre o preço que a prostituição cobrou em sua sexualidade:

“Considere o fato de que eu aprendi o que sexualidade significava a partir da perspectiva de ‘clientes’ e cafetões antes que eu pudesse descobrir o que significaria com a garota que eu amava. Essa lição não é apagável. Meu corpo lembra de tudo. Parece que os corpos aprendem no corpo, fisicamente como o sexo deve ser sentido, não apenas feito ou vivido. Digo aos meus leitores que essa não foi uma boa experiência para essa menina, essa jovem lésbica, ter logo no início de sua vida sexual.”

Jeffreys e Toby também mencionam o adormecimento, ou dissociação: o fenômeno de se desligar do que está acontecendo com o seu corpo, entrar em negação e fugir da própria realidade quando esta é intolerável, experienciado com muita frequência por mulheres em situação de prostituição ou vítimas de tortura. Elas apontam que não é um mecanismo facilmente superável, gerando relações tóxicas dessas mulheres com a própria sexualidade, pois torna-se um reflexo incontrolável. Para Jeffreys, esse processo prepara mulheres para mais abuso, na prostituição ou em qualquer outra situação. Maria nos conta que, em sua experiência, esse fenômeno era impulsionado pelo uso de drogas, pois ela “não conseguia” enfrentar aquela situação de cara limpa: “Eu tomava banhos longos. Eu encarnava personagens. Eu fingia que era tudo um grande teatro”. E, quando perguntada sobre o contraste entre as relações afetivas entre mulheres com o estupro que sofria nas ruas, ela responde que “existia um contraste enorme, mas chega um momento que você nem sente mais a parte ruim, fica anestesiada. Quando não estava me prostituindo, nem amizade com homens eu mantinha, não conseguia ficar muito tempo no mesmo ambiente”.

Não é à toa que esse é um reflexo também recorrente em vítimas de tortura. A vida na prostituição é, nas palavras de muitas mulheres que a vivem ou viveram, muito difícil [4]. E isso não é meramente fruto do estigma ou do tabu em torno do tema, como muitos costumam dizer, mas é, sobretudo, fruto da violência intrínseca à atividade. Além de ser exploração sexual, e portanto inerentemente violenta, a prostituição coloca mulheres em situação de alto risco. Maria nos relata que sofreu três estupros violentos durante os quatro anos em que esteve na prostituição — e que foi acolhida pelas namoradas que teve durante esse tempo. Sobre esses momentos, ela expõe: “O afeto que eu recebia de mulheres que eu amava era o que me mantinha viva de verdade”. Ela nos conta inclusive sobre a troca de afeto entre mulheres em situação de prostituição: “É impossível você não se envolver romanticamente com mulheres que passam 24 horas por dia, sete dias na semana com você. Tive uma namorada e várias outras ficantes, eu realmente não conseguia viver sem ter o afeto de uma mulher depois de uma noite exaustiva fazendo programas”. De acordo com Maria, havia uma espécie de endeusamento em relação a lésbicas nas relações com outras mulheres prostituídas por conta da carência de afeto que sentiam.

Na cafetinagem, a lesbianidade de Maria era uma oportunidade de fazer mais dinheiro. Ela conta que foi muito explorada por boates em função de sua sexualidade. “Uma boate de Minas em que fiquei por alguns meses ganhou muito dinheiro com um show de sexo ao vivo que eu fazia com uma outra garota”. Toby também nos relata que muitos homens gays sentiam prazer em “comprar sexo” de uma mulher lésbica não feminilizada, numa espécie de fantasia distorcida de irmandade entre pessoas de sexualidades desviantes e minoritárias. A fetichização da sexualidade lésbica é exacerbada na prostituição; mas isso não impediu Maria de sofrer algumas tentativas de estupro corretivo.

A prostituição também minava seus relacionamentos com pessoas de fora da indústria. Maria relata, sobre uma namorada que teve de forma duradoura, que tinham muitos problemas de relacionamento, ciúmes e falta de confiança: “Foi um relacionamento muito conturbado, mas ela sempre esteve do meu lado nos momentos mais difíceis”. Mesmo hoje, fora da prostituição há anos, as sequelas emocionais e o estigma que acompanha a mulher que foi prostituída ainda dificultam alguns aspectos da vida amorosa de Maria. A esse respeito, ela revela: “Tive um relacionamento muito abusivo que durou três anos, não há muito tempo, que ela usava do meu passado para me atacar”. Como Jeffreys apontou, abuso prepara mulheres para mais abuso. A prostituição deixa uma marca de vulnerabilidade emocional que, Maria reforça, não conseguiu desfazer ainda, mesmo depois de muita psicoterapia: “Hoje eu tenho consciência de tudo o que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu… Mas é difícil esse reencontro, porque você fica sem saber quem é você realmente por muito tempo”.

Ambas Toby e Maria nos contam sobre a expectativa que suas parceiras sexuais criam ao descobrir seu passado na indústria, de que o sexo deverá ser “muito bom” — o que faz parte do constructo social em torno da mulher em situação de prostituição enquanto “educadora sexual” e do qual mulheres que se relacionam com mulheres não estão isentas. Maria diz que, por conta disso, espera para compartilhar essa parte de seu passado; Toby, por sua vez, conta que essa expectativa inclusive cega mulheres para os traumas que marcam sua sexualidade e que ela inevitavelmente traz para suas relações sexuais:

“Eu me pergunto o que significa que tantas amantes mulheres tenham dito que nosso ‘fazer amor’ foi ‘o melhor de todos os tempos’, quando o que eu tinha no meu corpo era esse abuso inconcebível. Uma vez puta, sempre puta? Quero dizer, como elas poderiam não sentir o que estava acontecendo? Eu fingia tão bem? Também não estou falando de fingir orgasmo. Estou falando sobre como foi o orgasmo. Como a própria sexualidade era sentida. Destruir o meu caminho para o céu com milhões de orgasmos e parceiras amadas de verdade não ‘curou’ o abuso. Na verdade pode ter aprofundado a dinâmica sexual aprendida; isto certamente causou confusão entre essa dinâmica e qualquer respeito e consideração que tínhamos uma pela outra.”

Não à toa, mulheres inseridas na indústria do sexo desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em proporção similar ou até maior que veteranos de guerra [5]. Elas possuem altos índices de vícios em drogas, como Maria nos relatou, e depressão muito maiores do que o resto da população. O sofrimento psíquico que a prostituição produz, mesmo depois da saída da indústria, quando se consegue sair, perdura o resto da vida. Toby chega a dizer que não acredita numa “cura”.

Se prostituição é estupro — e nós, feministas, sabemos que é — , para lésbicas esse estupro é corretivo [6]. Marginalizar lésbicas ao ponto de sua única opção ser a prostituição é, mais uma vez, submetê-las ao acesso sexual masculino que tanto negam e a que tanto resistem. É mais uma das inúmeras formas pelas quais lésbicas são violadas pela sociedade patriarcal a ponto de enlouquecer. Precisamos saber disso; precisamos conhecer essas vivências; precisamos estar preparadas para defender essas mulheres. Voltamos à pergunta inicial: o que significa, para mulheres lésbicas, dizer que prostituição é escolha? Significa negar o lesbianismo enquanto resistência patriarcal. Significa relativizar a sexualidade lésbica. Significa colaborar com o estupro corretivo de lésbicas.

Lésbicas jamais serão homens

Jeffreys aponta que a indústria do sexo, como máquina patriarcal que se reinventa, criou um nicho focado em mulheres lésbicas enquanto “clientes”. Toby, inclusive, aponta que mulheres lésbicas estão na indústria enquanto prostituintes. Jeffreys nos conta que o feminismo abominava a fetichização de lésbicas na indústria, o que torna a criação de um nicho lésbico um retrocesso:

“No início do movimento feminista lésbico, essas representações de lesbianismo foram rejeitadas como estereótipos hostis. Feministas estavam clamando por uma sexualidade ‘autodefinida’ para mulheres que foram definidas como o exato oposto da versão masculina projetada para o consumo de homens na indústria do sexo. Foi, portanto, uma considerável e perturbadora surpresa para feministas lésbicas que fosse criada uma indústria do sexo para lésbicas, apoiada por e inspirada precisamente naquelas que aprenderam sua sexualidade a serviço de homens, e que reciclaram o limitado repertório do lesbianismo na pornografia para homens, principalmente em torno do sadomasoquismo e do cumprimento de papéis”.

É urgente que nós, enquanto feministas, saibamos apontar a reprodução de violência patriarcal séria que é a prática de comprar ou vender mulheres, sendo mulheres. Precisamos barrar esse novo nicho da indústria, educar nossas semelhantes, que cresceram vendo pornografia lésbica e erotizando dominação e submissão, sobre relações entre mulheres serem valiosas e não poderem se deixar macular pela lógica patriarcal de compra de seres humanos. Precisamos falar contra pornografia lésbica. Contra BDSM. Contra toda lógica que admita que violência se torne parte de nossa sexualidade, com a desumanização de nossas parceiras sexuais a ponto de serem tratadas como objetos a serem comercializados. A vulnerabilidade social não pode mais ser motivo de excitação sexual.

E, torna-se necessário dizer, isso não é sobre moralismo. Um debate sobre desigualdade sexual não pode ser distorcido para uma questão de moral sexual. É sobre analisar criticamente nossa sociedade, a forma como ela constrói nossa sexualidade, e como reproduzimos práticas patriarcais de violência em nossas relações. A prostituição é apenas a exacerbação disso. Toby nos ensina que a prática de mulheres comprarem mulheres tem a ver com a falsa sensação de poder obtida ao acessar privilégios masculinos:

“Algumas mulheres parecem pensar que se elas podem fazer o que homens fazem, então ‘nós’ seremos iguais. A questão a ser perguntada é: se mulheres começarem a fazer o que homens fazem, e uma das coisas que os homens fazem é comprar mulheres, quem sobrará para alguém comprar?”

Gerda Lerner, em A Criação do Patriarcado (2019), aponta que, em sociedades assírias e mesopotâmicas, algumas mulheres compartilharam em alguma medida do poder dos homens, ainda que apenas em poucos aspectos da vida — tendo sido permitido a elas participar do processo de compra e venda de “concubinas” e mulheres escravizadas, que ocorre há milênios no patriarcado. As mulheres de classe alta, cujos marcadores sociais que não o sexo correspondem às classes detentoras de poder, aprenderam e utilizaram a linguagem da dominação dos homens com mulheres de menor posição social, segundo Lerner. Bom, se essas mulheres compram sexo de outras mulheres e sentem que exercem algum tipo de poder fazendo isso, as que “sobram para serem compradas” são mulheres negras e pobres, e também as lésbicas não feminilizadas, cujo acesso ao mercado de trabalho é muito dificultado.

Por isso são tão importantes relatos como os de Toby e Maria. Hoje fora da prostituição, Maria coloca que só conseguiu sair com o aval de um prostituinte, que a queria como exclusiva — considera que teve sorte. Após ter uma filha com ele, conseguiu sair da prostituição e andar com as próprias pernas. Aos 26, assumiu-se lésbica novamente, quando não dependia financeiramente de ninguém. Ela conta que se tornou uma pessoa sem preço: “Quando digo não é não e acabou”. Ela ressalta também que não é fácil sair da indústria: “Não existe nenhum tipo de política pública que ajude essas mulheres a terem uma alternativa, recomeçarem suas vidas, muito pelo contrário. A prostituição está muito próxima da criminalidade, muitas mulheres acabam envolvidas no tráfico de drogas. A minha militância sempre será pela abolição dessas mulheres [aqui, Maria diz “abolir mulheres” no sentido de desejar que não existam mais mulheres vivendo sob essas condições], porque a prostituição é marginalizada para o lado errado, para quem faz por sobrevivência, mas é um glamour para quem lucra com a exploração sexual dessas mulheres”. Maria e Toby, com décadas de diferença entre os relatos, nos surpreendem com suas semelhanças e clamam, conjuntamente, contra a exploração sexual de mulheres.

“Estou fazendo isso porque eu não suporto que lésbicas estejam comprando mulheres para sexo e chamando isso de progresso, liberdade, nossa sexualidade, políticas lésbicas. Não suporto pretensa consideração pelas mulheres compradas. Comprar um ser humano não é consideração. É outra mentira. Prostituição não é liberdade, não é apenas um outro trabalho. Isto é abuso de mulheres. É servidão sexual. Ponto.”

É nosso dever ouvi-las.

*Toby e Maria são nomes fictícios.

[1] Para ler mais sobre feminilidade: A feminilidade como sujeição à masculinidade, de Fêmea Brava. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2021.

[2] Para ler mais sobre heterossexualidade compulsória: Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, de Adrienne Rich. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2021.

[3] Para ler mais sobre prostituição: edição A indústria do sexo é uma máquina de moer mulheres: e são os homens que estão no controle, da QG Feminista. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio 2021.

[4] Para ler relatos de mulheres prostituídas, além da edição da QG Feminista, indicamos também o livro Um silêncio a cada esquina: representações sociais de prostitutas sobre a regulamentação da “profissão”, de Mariana Luciano Afonso.

[5] Essa estatística e muitas outras mais sobre mulheres na indústria do sexo podem ser encontradas, em inglês, aqui.

[6] Para ler mais sobre estupro corretivo: Brava, Fêmea. O estupro lesbofóbico “corretivo”. Disponível aqui. Acesso em: 03/05/2021.

Referências:

SUMMER, Toby. Women, lesbians and prostitution: A workingclass dyke speaks out against buying women for sex. Disponível em inglês aqui. Acesso em 01 maio 2021.

JEFFREYS, Sheila. The idea of prostitution.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado.

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