IV. Reforma da previdência em perspectiva: o caso chileno

Ao contrário dos chilenos em 1980, os brasileiros têm um exemplo concreto do modelo de capitalização. Vale a pena ir pelo mesmo caminho?

Felipe Carvalho
Revista Jabuticaba
4 min readJun 6, 2019

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Não há dúvidas de que um dos maiores debates da conjuntura atual é acerca da reforma da previdência. O modelo proposto pelo gabinete de Bolsonaro sob a promessa do fim de privilégios tem sido apresentado quase diariamente em veículos da grande mídia e, após o recente anúncio do contingenciamento de bolsas de pós-graduação, utilizado como barganha política que condiciona a liberação de recursos do Ministério da Educação à aprovação da proposta. Ao mesmo tempo, cidadãos chilenos protestam contra os efeitos de uma reforma semelhante conduzida há quase 40 anos.

Chilenos protestam contra o sistema atual de previdência. Fonte: CUTRS.

O caso da reforma da previdência do Chile é um dos mais emblemáticos no que diz respeito às mudanças de cunho neoliberal realizadas na América Latina. A ditadura de Augusto Pinochet, que se estendeu de 1973 a 1990, foi uma das mais repressivas do continente, o que facilitou a condução de profundas alterações de ordem social e econômica sem que houvesse possibilidade de uma forte resistência por parte da população. Assim, o país se tornou uma espécie de laboratório onde era testada a aplicação dos ideais neoliberais estadunidenses. Dentre eles, estava a introdução do sistema de capitalização.

Até 1980, o sistema de aposentadoria chileno era baseado no princípio da antiguidade, isto é, a contribuição realizada pelo trabalhador ao longo de sua vida profissional era utilizada para o cálculo do benefício. Em 1981, por meio de um decreto de lei, Pinochet alterou esta lógica para uma baseada na contribuição obrigatória em contas individuais.

A tese defendida pelos egressos da Universidade de Chicago era, à primeira vista, simples: o aumento populacional levaria, inevitavelmente, ao aumento exponencial de gastos com a previdência e causaria um déficit insustentável. Sendo assim, seria inegável a necessidade de um sistema que repassasse aos aposentados apenas a taxa que fosse paga durante os anos de contribuição.

Para que a implementação do modelo fosse bem-sucedida, foi necessária a criação das chamadas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), as quais são responsáveis por gerenciar e investir os fundos em aplicações financeiras. Neste contexto, os membros das Forças Armadas se opuseram à reforma e não foram incluídos no novo sistema. Em tese, os trabalhadores aposentados deveriam receber cerca de 80% do valor de seu último salário. Atualmente, este valor raramente ultrapassa os 30%.

Quando as primeiras gerações de chilenos começaram a se aposentar sob a vigência do sistema de capitalização, o impacto da mudança ficou mais evidente. De acordo com dados de fevereiro de 2019, quase 90% dos aposentados sobrevivem com menos de 147 mil pesos — cerca de 833 reais. Como referência, o salário mínimo atual é de 301 mil pesos, que equivalem a 1,7 mil reais. Mesmo assim, o sistema previdenciário chileno é divulgado mundialmente como um exemplo de sucesso.

Existe, ainda, um visível recorte de gênero nos problemas gerados pelo sistema de capitalização no Chile. Além de possuírem salários, em média, 30% menores que os dos homens, as mulheres têm menos tempo de contribuição pelo fato de ficarem por períodos mais longos fora do mercado de trabalho. Esta dinâmica culminou, em 2011, em uma denúncia por parte de sindicatos chilenos à Organização Internacional do Trabalho sob a alegação de que o sistema de aposentadorias seria discriminatório com as trabalhadoras.

Em termos sociais, os impactos são ainda mais alarmantes. Em 2015, entre os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Chile ocupou o segundo lugar no que diz respeito ao aumento das taxas de suicídio. Na faixa etária entre 70 e 79 anos, a taxa é visivelmente maior do que a média nacional: 15,4 a cada 100 mil habitantes em oposição a 10,7 a cada 100 mil habitantes. Entre pessoas com mais de 80 anos, o índice chega a 17,7/100 mil habitantes.

Do lado das AFPs, a história é outra: estima-se que o mercado seja completamente controlado por seis empresas, dentre as quais cinco são de origem estrangeira. Uma delas, gerenciada pela seguradora brasileira BTG Pactual, foi co-fundada pelo atual Ministro da Economia, Paulo Guedes. Na prática, existe pouca ou nenhuma diferença entre os planos de aposentadoria oferecidos pelas diferentes empresas dentro de um regime oligopolista.

Principais AFPs chilenas. Fonte: Asociación AFP Chile.

Na década de 1980, quando o sistema de capitalização foi unilateralmente instituído no Chile, não havia casos concretos que demonstrassem os perigos deste tipo de reforma. Em 2019, não são poucas as lições que podem ser extraídas da experiência chilena em sua tentativa de alcançar o equilíbrio econômico em detrimento da garantia de direitos básicos à população idosa.

Me chamo Felipe Carvalho, sou bacharel em Relações Internacionais e mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul . O texto, elaborado a partir de dados da OCDE e reportagens recentes, faz parte do projeto Revista Jabuticaba.

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Felipe Carvalho
Revista Jabuticaba

Rondoniense em terras gaúchas desde 2013. Internacionalista e mestrando em Ciências Sociais pela PUCRS.