V. Os ecos da Covid-19 no Mercosul

Princípio de incertezas em um ambiente já incerto

Bruno Machado
Revista Jabuticaba
7 min readMay 7, 2020

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Foto: FCesar/ O Fotógrafo/ Estadão Conteúdo

Os efeitos da Covid-19 na América Latina têm sido enérgicos e vêm mostrando ao mundo, em diferentes âmbitos, a fragilidade dos países pertencentes a uma região já marcada por problemas estruturais ao longo da história. Uma amostra disso é que a base do Mercado Comum do Sul (Mercosul), importante bloco econômico sul-americano, já começa a sentir os efeitos da pandemia causada pelo novo coronavírus.

Desde que a Covid-19 teve casos confirmados nas Américas, os países membros¹ do Mercosul se alinharam para tentar frear a disseminação da pandemia na região. Cerca de US$ 16 milhões foram aprovados para ajudar no combate a doença, de acordo com um fundo de emergência aprovado pelo Conselho máximo do bloco no início de abril. Desses US$16 milhões, US$ 10 milhões formariam uma espécie de fundo de reserva. Para a Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil, estaria destinado US$1,3 milhão para o combate da pandemia no país.

A situação dos membros ativos do Mercosul diante da crise do coronavírus envolve muitas variáveis, embora a certeza de um impacto econômico puxando o PIB para baixo seja certa para todos. Os números de casos e mortes confirmadas causadas pelo novo coronavírus de acordo com o portal coronastats.co até o fim da noite de ontem, 6 de maio, eram: Brasil – 126.611 casos confirmados e 8.588 mortes causadas pela doença; Argentina – 5.208 casos e 273 mortes; Uruguai – 673 casos e 17 mortes; e Paraguai — 440 casos e 10 mortes.

Fonte: Google Imagens — InfoEscola.com

No Paraguai, o presidente Mario Abdo, aliado de Jair Bolsonaro, tem gerado insatisfações populares por questões políticas e soma-se a isto a situação econômica ruim que se arrasta nos últimos anos, principalmente na agricultura. No que tange ao combate a Covid-19, o país tem sido, na medida do possível, eficiente, encontrando-se em quarentena desde 10 de março. Porém, membros do governo paraguaio já demonstram incômodo com a forma como o governo brasileiro vem guiando as políticas de combate à pandemia, principalmente pelas declarações polêmicas do presidente vindas do Palácio do Planalto.

Já no Uruguai o novo presidente eleito, Luis Lacalle Pou, com quem Jair Bolsonaro vislumbra parceria comercial e econômica, tem feito o possível para combater a pandemia. Um exemplo disso foi o anúncio presidencial de que os salários do presidente, ministros e parlamentares do governo uruguaio teriam uma redução de 20% e a verba seria destinada a formar um fundo de combate à Covid-19 no país. O atual governo se mostra atento as diferentes situações que ocorrem em seus vizinhos Brasil e Argentina, como as crises econômicas e políticas, e agora, a crise do coronavírus.

A Argentina decretou quarentena em 20 de março em todo seu território nacional. O país se mostrou desde cedo preocupado com o alastramento da Covid-19, e o rumo tomado pelo governo brasileiro para combater a doença inquietou o governo argentino, principalmente Alberto Fernández, presidente do país. O descompasso do Brasil em relação aos demais países da América do Sul tem gerado receio sobre quando a crise da pandemia dará uma trégua, principalmente nos países limítrofes com o Brasil.

Entretanto, na última sexta-feira de abril, 24, o bloco recebeu mais uma estremecida em suas estruturas com a notícia oficial de que a Argentina não faria mais parte das negociações comerciais em curso e nem das futuras em conjunto com os demais membros ativos do bloco. A justificativa dada pelo atual governo de Fernández se embasou na pandemia da Covid-19, que abalou ainda mais um país que luta contra mais uma crise econômica em seu histórico de recessões. De acordo com o presidente, a Argentina precisa voltar suas atenções para a situação interna do país.

O eixo Brasil – Argentina dentro do Mercosul é crucial para um bloco
econômico mais equilibrado já que são os principais países do mesmo. Porém, as diferenças ideológicas entre o presidente brasileiro, e o novo presidente argentino, amigo de Lula, dão um tom mais áspero à relação. Bolsonaro, no último encontro do Mercosul, em dezembro de 2019, deixou claro seu posicionamento em relação ao novo governo da Casa Rosada, após Mauricio Macri, para quem decretou apoio, perder as eleições para Fernández:

“A Argentina deu uma guinada para a esquerda. A gente vai para o pragmatismo. A gente brigando, a Argentina perde muito mais. Mas eu não quero perder um dedinho. E vamos continuar fazendo

negócios”.

Neste sentido, a pandemia do coronavírus vem para acrescentar mais um ingrediente à crise que tem se arrastado entre os membros do Mercosul. A decisão argentina surge em um momento em que os demais países membros imaginavam acelerar as tratativas comerciais com alguns países como Canadá, Coréia do Sul e Cingapura, ainda mais em circunstâncias de incerteza econômica. A ideia de um livre mercado e abertura comercial parece não estar em sintonia de forma unânime no bloco econômico.

Em uma entrevista concedida ao Jornal GaúchaZH, o embaixador brasileiro Pedro Miguel da Costa e Silva, Coordenador Nacional e Secretário de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas, não demonstrou surpresa com a saída da Argentina das negociações comerciais do Mercosul. E foi além, ao dizer que esse acontecimento não dá margem para imaginar o fim do bloco, e sim o começo para novas ideias e novas negociações. Questionado sobre um possível fim do Mercosul, Pedro Miguel foi enfático:

“Eu posso assegurar que não é o fim do Mercosul. O Mercosul é um bicho muito resistente e que se adapta com facilidade e inclusive na adversidade. Uma das coisas boas é que o Mercosul é flexível e se adapta. Vamos trabalhar por isso. Estou trabalhando de forma pragmática e otimista para encontrar a melhor solução para o novo quadro. Na relação bilateral, o que me dizem meus colegas do Ministério da Agricultura é que estamos avançando muito bem, inclusive com a perspectiva de eliminar barreiras sanitárias e fitossanitárias de parte a parte”.

As questões internas dos membros do Mercosul, deste modo, acabam se alastrando para dentro do bloco econômico e minando as oportunidades que o mesmo poderia aproveitar no cenário regional e global diante da maior crise do século XXI. O aguardado acordo comercial com a União Europeia (UE) depois de 20 anos entre idas e vindas foi aprovado em meados de 2019, mas ainda há a necessidade de ratificação pelo Parlamento Europeu e pelos Parlamentos dos países membros do bloco. O acordo visa, dentre outras coisas, acabar com mais de 90% das tarifas entre os dois blocos econômicos. Todavia, as diferenças políticas entre os próprios membros do Mercosul e de atitudes controversas de políticos como o presidente do Brasil, tornam a relação comercial com a UE um campo minado. Um exemplo dos impactos das declarações polêmicas de Jair Bolsonaro é que não parece haver uma unanimidade dentro da cúpula da União Europeia em relação ao acordo. Países como França, Polônia e Bélgica se mostram receosos com as proporções do maior acordo já realizado pela UE.

Isto posto, a saída da Argentina das discussões de comércio com os demais membros do Mercosul abre precedentes para uma liberdade econômica ainda não vista neste século pelo bloco. Para membros do governo brasileiro, a saída declarada pelo presidente argentino, é vista como a chance de novas tentativas de acordos comerciais, sem contar que agora as negociações poderiam ser mais rápidas, sem empecilhos. Os demais governos do bloco reagiram de maneira mais comedida, embora vão ao encontro das ideias de um comércio mais aberto e livre com outros países das Américas e do Globo.

Por isso, a ideia de um Mercosul mais integrado e mais competitivo diante do comércio mundial se torna cada vez mais utópica. Se antes alguns interesses individuais pareciam prevalecer acima dos coletivos dentro do bloco, comprometendo a harmonia e a cooperação entre os membros, agora, com a saída da Argentina das negociações comerciais, a porta para se comercializar livremente com o mundo todo, sem restrições, como o Ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, transpareceu almejar em diferentes momentos, parece estar escancarada.

Alguém passará por ela? Uruguai e Paraguai aguentarão caminhar de mãos dadas com o Brasil diante de um quadro econômico não animador após a crise da Covid-19 dar uma trégua? A Argentina voltará à mesa de negociações do Mercosul com bons olhos? Aguardemos.

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¹ O Mercosul é composto atualmente pelos Estados Partes que são Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, além da Venezuela, mas este último está suspenso do bloco desde 2017. Os demais países da América do Sul são conhecidos como Estados Associados. A Bolívia está em estágio de adesão ao bloco para se tornar Estado Parte.

Este texto faz parte do projeto Revista Jabuticaba e dá continuidade a uma série especial de textos relacionados à pandemia do coronavírus.

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Bruno Machado
Revista Jabuticaba

Aspirante a pesquisador e doutorando. Economia Rural, UFV.