Breve Introdução ao Pensamento Calculante II

A Era da Técnica, dois marcos históricos

Ana Lucia Tersariol
Revista Krinos
4 min readMay 23, 2016

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Nikolay Diulgheroff, O Homem Racional 1928

Este texto é a continuação do Artigo I (clique aqui para ler) sobre o desenvolvimento do Pensamento Calculante e a concretização da Idade da Técnica.

A Era da Técnica se caracteriza pela inversão da relação Homem/Técnica onde o homem moderno é o funcionário da técnica e não mais o sujeito da história; um instrumento, onde suas exigências estão subordinadas às exigências da estrutura técnica da qual ainda não se percebe a dimensão dessa inversão. Uma das características da Era da Técnica é que as atividades humanas passaram do “agir” a um simples “executar”.

“Agir” quer dizer que se faz uma ação em vista de um objetivo, “executar” quer dizer que se cumpre ações descritas e prescritas sem conhecer seu fim, e se conhecesse, não seria responsável por elas. Os escopos do aparato não nos diz respeito, devemos apenas executar o trabalho de forma eficaz.

Para Gunther Anders, filósofo alemão de origem judaica, aluno de Heidegger, o modelo da era da técnica e do pensamento que a governa, que é a razão instrumental, foi o nacional-socialismo. O filósofo diz que a experiência nazista provocou mudanças impressionantes na história, não só porque tenha causado a morte de 6 milhões de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, mas porque o experimento trágico do nazismo consistia no fato de que foi construído um aparato onde cada operador não respondia pelo escopo final, mas sim, respondia apenas pela sua boa execução. Porque, no nazismo, diz Anders, cada um era responsável pelo seu “trabalho”, mas não dos efeitos de suas ações. Quando no Processo de Nuremberg os comandantes nazistas respondiam com “obedeci a ordens”, a resposta do ponto de vista técnico era correta, então, a experiência nazista se constituirá no “teatrinho de província” do grande cenário que se configurará a Era Técnica, e isto seria apenas o prelúdio do que acontecia em todos os setores, em cada aparato técnico: seja na universidade, na escola, na fábrica, no banco. Ressalta-se a importância do uso de uma linguagem restrita ao aparato do qual se pertence, burocrática, e de clichês, a dimensão subjetiva deveria desaparecer.

No livro “Into That Darkness” (Naquelas Trevas), a jornalista Gitta Sereny editou suas entrevistas feitas com o diretor do campo de concentração de Treblinka, Franz Stangl, responsável pela morte de 900 mil pessoas e considerado pelo comando nazista como o “melhor comandante” de todos os campos de concentrações da Polônia. Delineia-se, assim, um perfil de um “homem da ordem”, obediente de uma ética do “trabalho bem feito”, envolvido diretamente no projeto “Programa de Eutanásia” no qual Hitler propôs eliminar os doentes mentais, portadores de deficiências físicas e mentais, e posteriormente, judeus. Não é só a “banalidade do mal” que caracteriza nossos tempos. Em seu uniforme branco cumpria seu “dever”; seu trabalho era de fazer funcionar, eficientemente, a máquina infernal do extermínio no campo de concentração. Depois de descrever suas atividades diárias dentro do campo de concentração, a jornalista perguntou-lhe o que ele sentia ao cometer tais atrocidades. Ele não compreendia, desviava da pergunta, ela insistiu, e ele respondeu então: “Mas, realmente, vamos ser claros: às 9 horas chegava uma carga de 5.000 pessoas. Geralmente eram necessário 2 ou 3 horas para esvaziar e sistemar os vagões. Até às 3 da tarde deveriam ser suprimidas, porque nessa hora chegava o segundo vagão. O método pelo qual procedia foi identificado por Wirt, e funcionava: esse era meu trabalho/ “meine arbeit” ”.

Planta do Campo de Concentração de Treblinka

Ainda Anders, escrevendo um livro sobre a era nuclear, perguntou ao piloto que lançou a bomba sobre Hiroshima acerca do que ele experimentou ou sentiu ao jogar aquela bomba numa população desconhecida. O aviador inicialmente não respondeu. Em seguida, o New York Times também lhe pediu para responder e sua resposta foi simples: “Nothing, that was my job”/ “Nada, era o meu trabalho “.

Piloto Paul Tibbets a bordo do Enola Gay

É preciso ter cuidado com essa palavra “trabalho”, porque o trabalho limita a responsabilidade de quem o faz ao bom desempenho da tarefa que foi atribuída. Mas o destino final, o que acontece em seguida, não é da minha responsabilidade. É um exemplo da tecnização da existência: o fato de que, indiretamente e inconscientemente, como as engrenagens de uma máquina podemos ser inseridos em ações das quais não prevemos as consequências.

Heidegger, que percebeu antecipadamente esse problema, diz com razão que “Aquilo que é verdadeiramente inquietante não é que o mundo se transforme num completo domínio da técnica. Muito mais inquietante é que o homem não está preparado para essa radical mudança do mundo. Mas ainda mais inquietante é que não somos capazes de formular um pensamento alternativo, meditativo, que contrasta adequadamente o pensamento calculante.” É necessário que o homem não rejeite aquilo que possui de mais próprio, o fato de ser um ser pensante, o pensamento meditativo é um dos antídotos contra a massificação e contra o conformismo que são formas modernas de barbárie.

Ana Lucia Tersariol faz parte do Coletivo Krinos e é editora e colaboradora da

. Formada em agronomia é apaixonada por Filosofia.

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