Bloods e Crips dividem uma mesa em um restaurante. Da esquerda para a direita: Shawn, Scooby, Goldie, Tragedy, Derek e Flex

“Não estamos deixando de escolher um lado; estamos escolhendo o nosso lado”

As gangues de Baltimore acreditam que podem policiar sua comunidade melhor do que a própria polícia

João Brizzi
Revista Poleiro
Published in
16 min readMay 8, 2015

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Por Amy K. Nelson
Tradução por João Brizzi

Faltam poucos minutos para a meia-noite de quarta e eu estou dividindo um cigarro com um blood e um crip em um restaurante a 20 minutos de Baltimore. Já se passaram duas horas desde que o toque de recolher imposto pelo governo sobre uma cidade em frangalhos foi dado e, fora de suas fronteiras, o mais inusitado dos encontros está acontecendo.

Dois dias atrás, a polícia de Baltimore — apenas algumas horas depois do funeral de Freddie Gray, morto aos 25 anos de idade — divulgou uma nota com uma versão bastante diferente sobre o encontro entre as gangues. Ela avisava que os grupos rivais estariam planejando um possível ataque a policiais.

O comunicado levou a cidade ao seu limite e, durante a tarde, enquanto casos de violência começavam a surgir e faziam com que jovens ficassem presos nas ruas, impedidos de voltar para casa, os gângsteres acompanhavam pela tevê os desdobramentos do que estava acontecendo. Os policiais não poderiam ter previsto isso — e quem poderia? — , mas em vez de ir para as ruas durante os momentos de revolta, os Bloods, os Crips e a BGF (Black Guerilla Family) preferiram não intervir. De maneira histórica. E agora, na rampa que leva até o restaurante onde estamos, o crip Scooby, de 27 anos, e o blood Flex, de 25, conversam sobre sua recém-formada união.

“Em que mundo, em que dimensão e em que tempo,” diz Scooby a Flex, “eu iria te encontrar e a gente estaria tranquilo desse jeito?”

Eu não sabia, quando passei pela Frederick Douglas High School na manhã de quarta-feira, que mais tarde estaria fumando com membros de gangue pouco antes de eles gravarem um quadro para um programa de tevê noturno. Eu só estava a procura de alguém para entrevistar e esperava conversar com adolescentes sobre o que tinha acontecido na segunda-feira, dia em que seus primeiros confrontos com policiais iniciaram uma violenta noite repleta de prédios incendiados, saques e imagens em loop da revolta.

Tragedy

O rapper Wale tinha acabado de conversar com os estudantes. Logo em seguida, reparei num homem mais velho o apresentando para dois bloods.

Derek Bowden trouxe Flex e seu irmão Tragedy, de 21 anos, para a escola. Tendo vivido a vida toda em Baltimore, Bowden é visto como um mentor para os homens e é uma espécie de conciliador para a entrada naquele mundo. Ele está tentando promover uma trégua entre as duas gangues, mas sabe que a população trata com ceticismo a possibilidade de grupos violentos e cruéis genuinamente tentarem manter a paz.

“Não estamos deixando de escolher um lado; estamos escolhendo o nosso lado”, diz Tragedy. “Nós só estamos protegendo a comunidade.”

No topo de uma colina em frente à escola fica o Mondawmin Mall, shopping cujo terminal de ônibus também é usado para atender os estudantes da escola. Naquela quarta-feira, no entanto, os veículos ali estacionados eram os da Guarda Nacional e da polícia. O potencial daquela situação gerar confrontos era enorme.

Foi bem ali, ao pé da colina, que jovens e policiais se confrontaram pela primeira vez, na segunda, fazendo com que as gangues começassem a aparecer pelas ruas. Seus membros me disseram que não houve um acordo oficial: tudo aconteceu de maneira orgânica porque, como a confusão era tão intensa — e a vontade de proteger as pessoas dos policiais e de impedir que construções fossem danificadas era tão desesperadora — , as cores que eles vestiam passaram a não ter importância em meio ao caos.

Desde então, eles têm se adicionado no Facebook e trocado números de celular. Foi assim que planejaram um encontro em uma estação de metrô, às duas da tarde, com o objetivo de proteger as crianças e evitar mais violência.

Tragedy, Flex e Bowden chegaram e, aos poucos, mais membros das gangues começavam a surgir. As aulas acabariam em poucos instantes e os policiais, completamente equipados para lidar com um possível tumulto, começavam a se alinhar para proteger a entrada do terminal. A polícia, de início, se mostrou confusa enquanto observava a cena bizarra de gângsteres, independentemente das diferentes cores que vestiam, se alinhando ao redor do perímetro.

No entanto, conforme as gangues começaram a advertir as crianças para que elas não fossem estúpidas, para que voltassem para casa e deixassem as ruas, os oficiais passaram a notar o quanto os gângsteres policiavam a si mesmos e se posicionavam inteligentemente para conseguir agir da melhor maneira possível. Dentro de uma hora, a polícia acabou concedendo espaço e recuou, uma conquista memorável para as gangues.

Rojos, à direita

Rojos, 27, é um dos primeiros membros de gangue a se posicionar no terminal. Ele permanece ao lado de um crip. Desde já, a polícia se mostra bastante apreensiva, sem saber o que fazer. Os gângsteres se agrupam em vários pequenos grupos. Enquanto converso com Rojos, um policial branco me diz que só posso ficar ali se estiver esperando um ônibus. Por conta disso, permaneço caminhando por cerca de uma hora, evitando parar em algum lugar por muito tempo.

“Estamos aqui para mostrar [aos policiais] que em vez de eles atirarem em nossos jovens, nós podemos controlá-los sendo líderes na vizinhança”, diz Rojo. “Não porque estamos em gangues, mas sim por sermos líderes no bairro de uma maneira positiva. Estamos fazendo algo legal. Nós só estamos apoiando uma causa.”

Isolada, vejo Tyshmia ouvindo música entre poucas outras pessoas. Ela tem 24 anos e vive no cruzamento entre a rua Penn e a Norte, onde tudo começou com uma farmácia foi incendiada. Toda vez que ela sai de casa, é cumprimentada por um policial. Ela tem dois filhos e os deixou com outra família.

Tyshmia

“Os bloods e os crips estão se unindo”, conta. “Nós estamos ocupando os espaços e só queremos ser cidadãos e ajudar.”

“Eu sinto que, até que isso tudo termine, sempre haverá alguém apontando o dedo para os outros. Eles querem apontá-lo para nós, eles querem nos culpar, então deixe que eles façam isso. Alguém deve ter o dedo apontado para si e talvez isso seja parte da solução.”

Ela entende como a maneira como são vistos leva políticos e pessoas comuns a rotulá-los.

“Eu não me sinto mal [quando as pessoas nos chamam de bandidos] porque eu vou olhar de volta para elas e dizer que não sou uma bandida. Tenho meu diploma do segundo grau, tenho meu GED*, fiz dois anos de faculdade. Eu vou para a escola de massagem de Baltimore para estudar estética. Quero ser uma dermatologista. Ainda que eu tenha decidido ser uma crip, ainda sou uma cidadã. Pago meus impostos, vivo corretamente — eu não invado lugares, não roubo. Muitos de nós não fazem coisas desse tipo. Muita gente nos coloca [nesse monte] e eu não ligo. Eu estou acostumada a ser [vista como] uma estatística mas, para mim, eu não estou nem perto de ser uma.”

Voltando à entrada da estação, vejo Brian, 25, gritando com algumas crianças, pedindo que elas deixem a estação e fiquem em casa. Seus olhos ficam marejados quando conta como as creches continuaram abertas mesmo quando as escolas fecharam, já que essa era a única forma de garantir que muitas crianças pudessem comer.

Brian, à direita

“[Os policiais] não têm ideia do que passamos diariamente”, diz ele. “Nós estamos aqui fora para pedir que as crianças não deem razão para que os policiais digam alguma coisa para elas. Eles deveriam ir para casa, nós não precisamos deles. Nós podemos policiar nossa própria comunidade.”

Somos interrompidos por um dos líderes dos Bloods, que faz Brian ir até o outro lado da rua. Ele provavelmente notou que Brian estava começando a se emocionar e preferiu acabar com aquilo. Mais tarde, eu o vejo dizendo para outro blood não cobrir todo o rosto com sua bandana.

Sin tem 15 anos e diz já ter cometido alguns erros, coisas que a levaram a se juntar aos Crips, há dois anos.

“Essa polícia, eles não estão brincando agora”, diz. “E isso é o que elas [as crianças] não estão entendendo. O que elas precisam entender é que haverá outros Freddie Grays. Serão muitos outros Freddies. Nós, Crips e Bloods, não deveríamos estar nos juntando, mas o fizemos para manter a paz, já que essa violência não vai provar nada a ninguém. Não vai servir pra nada. Nós não somos pessoas más e é isso que queremos mostrar à nação.”

Sin

Foi aqui onde encontrei Scooby, o crip com quem dividiria um cigarro, pela primeira vez. Ele não sai de seu bando, mas é implacável em seu desejo de educar o mundo lá fora sobre sua realidade, sua pobreza e sobre as dificuldades de Baltimore. Scooby tem atendido a mídia durante a semana e apareceu em uma conferência de imprensa com o presidente da Câmara Municipal, Jack Young, ao lado de outro blood. Eu o pergunto sobre como ele se sente por ser retratado como um bandido por seu prefeito, seu governador e seu presidente.

“Porra, o que é um bandido? Todo mundo quer chamar alguém de bandido, mas será que alguém já apareceu na tevê para dizer que caralho é um bandido? Talvez seja porque eles não sabem. Nesse momento, há alguma diferença entre nós e os policiais? Qual é essa diferença? Eu não vejo diferença e, então, se sou um bandido, eles são bandidos. A única diferença é que eles têm uma arma e tudo que tenho são minhas mãos e pés. Eles têm ordens diretas para que, caso as coisas saiam do controle, eles possam atirar e matar. Eu tenho ordens diretas para voltar para casa em segurança e garantir que todo mundo possa fazer o mesmo. Então sou eu quem não sabe quem é o bandido?”

“Eu só acho que, se você não entende alguma coisa, você não deveria falar sobre o assunto. Se você vier até aqui, nós não mostraremos nada além de amor e muito respeito. Você conversa com a gente. Se não estiver pronto para conversar, então não nos julgue.”

Chirac

Todos os gângsteres por ali são negros, com exceção de uma pequena garota branca, Chirac. Ela tem 23 anos, é da Flórida e está em Baltimore há alguns anos. Ela prefere não contar há quanto tempo está na gangue.

“Eu sou branca, estou aqui e acho que não é justo eles [os políticos e a polícia] classificarem um bandido”, diz ela. “Nós estamos tentando apresentar uma imagem positiva das gangues — não é por usar uma cor que você vai fazer coisas erradas e ser um bandido. Estamos todos aqui por um motivo: justiça por Freddie Gray e por todas as pessoas que foram agredidas e mortas pela polícia. Eu já vi o outro lado disso — sendo uma mulher branca que vive com os supostos bandidos — e não acho que seja justo.”

Treach, membro do grupo de hip hop Naughty by Nature, à esquerda

Havia cerca de meia dúzia de outros membros da mídia circulando ao redor do terminal da mesma forma que eu. Lá pelas cinco da tarde, no entanto, muitos dos membros das gangues já haviam deixado o local e, junto deles, a maior parte dos profissionais também foi embora. Foi aí que Treach, do Naughty by Nature, aleatoriamente apareceu. Ele veio dirigindo de Nova Iorque com a intenção de acalmar os ânimos das pessoas. O rapper contou que os repórteres já haviam lhe perguntado sobre o porquê de ele estar apoiando os gângsteres.

“Já que os gângsteres controlam as ruas — se eles querem paz, se eles querem uma trégua — , por que [as pessoas] não conseguem ver o lado positivo disso? Eles estão escancarando a verdade por aqui.”

E esse pode ser o maior ponto de discussão: levar as pessoas a compreenderem que o real significado de poder nas ruas de Baltimore está aqui nesse terminal.

Derek me leva para comprarmos comida jamaicana no Druid Hill Park, um belo espaço ao ar livre que abriga o zoológico da cidade e fica a apenas algumas quadras da farmácia incendiada. Ele recebe uma ligação da produção do The Nightly Show com Larry Wilmore; alguém por lá o conhece e fala sobre receber os membros das gangues no programa. Nesse momento, tudo ainda está muito incerto e Derek nem ao menos tem certeza se aquele é mesmo o programa de tevê. “Talvez haja uma gravação essa noite”, diz ele antes de me convidar para um culto na igreja.

São sete da noite e o pastor Dr. Frank Reid é o anfitrião de um encontro da comunidade na Igreja Metodista Episcopal da Comunidade Betel Africana — e ele convidou as gangues. Houve muitas críticas sobre a aproximação do clero a esses grupos mas, dentro da igreja, a frustração sobre como oficiais e polícia têm retratado os gângsteres como estimuladores da revolta é universal, estando todos irritados com o uso da palavra thug (bandido). A vereadora Helen Huton, presente no encontro, me diz: “Eu não uso a palavra thug; são meus colegas que o fazem. Eu já disse especificamente ‘não usem a palavra thug’”.

Dr. Frank Reid puxa uma oração com membros das gangues e da igreja.

O pastor da juventude Melech Tomas, 27, opina: “Como me senti enquanto homem negro? Carl Stokes definiu bem: é quase como se eles me chamassem de nigger. De verdade. Acontece que eles queriam dizer nigger*, queriam nos chamar de animais, então thug acaba sendo um bom eufemismo político para nigger.”

Reid e as cerca de 50 pessoas presentes na igreja sabem o quão importante é o papel desempenhado pelas gangues nas ruas. Eles são a última linha de defesa, e ambos os lados dizem que estão desesperados para trabalhar juntos. Nathanial, 25, um dos membros de gangue por ali, se levanta. “Estou aqui para fazer tudo o que for possível. Qualquer coisa.” Ele transparece sinceridade e as pessoas respondem ao chamado. “Um monte de gente me julga, vê as tatuagens que tenho no rosto e automaticamente me julga mesmo antes de eu abrir minha boca”, desabafa. “Mas quando abro minha boca, o que falo tem valor.”

Promessas sobre trabalhar em conjunto são feitas e números são trocados, mas será que isso importa? A despeito do ceticismo e das críticas a respeito das intenções das gangues, o clero promoveu publicamente a parceria e até mesmo o gabinete do prefeito já se mostrou aberto à ideia. Flex, Tragedy e alguns outros gângsteres se sentam na fileira da frente e conversam com os vários pastores. Reid encerra o encontro pedindo que todos deem as mãos. “Demos as mãos enquanto nos unimos essa noite como uma Baltimore. Toda cor é a sua cor, todo símbolo é o seu símbolo e nós agora vivemos em uma cidade que o diabo quer dividir e destruir, mas declaramos que há poder na união.”

São dez da noite e eu estou em um táxi a caminho do restaurante com Derek e Flex. Ainda não tenho a menor ideia sobre para onde estamos indo e se haverá alguma gravação. É tudo muito misterioso. Tenho recebido informações moderadamente, mas Derek garante que, a essa altura, Flex e Tragedy estão tão confortáveis com a minha presença que posso acompanhá-los como sua fotógrafa oficial. Nós entramos e, após nos cumprimentar, Scooby chama Flex para falar sobre alguém ter sido esfaqueado no protesto de mais cedo. Há uma mesa cheia de produtores do programa de Larry Wilmore vindos de Nova Iorque, confirmando que tudo é bastante real. Além de Scooby, Goldie — outro crip — e Shawn, um amigo em comum de ambos que toma conta de uma organização artística sem fins lucrativos na cidade, também estão aqui.

Larry Wilmore, à esquerda, conversa com os garotos no restaurante

Nos fundos do Double-T, restaurante onde estamos em Catonsville, todos os seis de nós nos sentamos em um banco com formato de meia-lua. O lugar não está lotado, mas mesmo as poucas pessoas por ali não parecem notar uma mesa cheia de bloods e crips comendo saladas e tomando chá gelado sabor framboesa. Tudo está absolutamente tranquilo.

“Eu já vi de tudo essa semana”, diz Scooby enquanto se apoia no encosto do banco. “As únicas coisas que não vi são ETs e Jesus.”

Todos caem na risada. A conversa ao redor da mesa atira para todos os lados com diálogos sem sentido, piadas e momentos de introspecção.

Que tipo de molho de salada é esse … Qual o nome do molho? O molho alaranjado com manchas pretas? … Chame essa merda de molho amarelo, molho da vizinhança … Que tipo de bebida você quer? Eu quero a vermelha. … Se você quer suco? Sim, eu quero alguns socos … Tô com fome pra caralho … Eu tenho 35 tanques de estômago … Eu quero um um wrap de omelete. É a primeira coisa que vi. … Wraps são uma idiotice de gente branca.

Fui atingido por uma bomba de efeito moral. Eu tô jogando Call of Duty na vida real ou o quê? … O que faremos se não houver justiça? … O que é isso, uma azeitona? Eu tava tipo ‘isso é uma uva??’ … Eu tô comendo salada com um dedinho erguido, então isso pouco importa. … Eles deixaram seu próprio país ter um sistema de castas … Vocês sabem que encontramos David Blaine* hoje? … Meus sapatos são pisoteados o tempo todo. Uma semana atrás eu estaria tipo ‘Mano!’ … Todo mundo tá puto e eu tô tipo ‘Eu te amo mais do que amo esses sapatos’. Isso te faz pensar: e se você fizesse isso comigo três dias atrás? … É a melhor salada que eu já comi na vida. O McDonald’s não sabe de porra nenhuma. … Isso é lindo, galera. … Nós, irmãos. Nós conseguimos.

Depois de uma hora dentro do restaurante, Flex e Scooby saem para fumar aquele cigarro.

“Você sabe há quanto tempo eu tenho esperado por algo desse tipo?” Flex pergunta a Scooby. “Nós fizemos um acordo de paz muito tempo atrás, tipo nos anos 90. A polícia se infiltrou… Mas é mais forte agora, nosso grupo é mais forte. Eu esperei anos por algo assim. Eu nasci dentro da gangue e estou nas ruas há 25 anos. Então porra, mano, ver algo assim, como irmãos se encontrando? Eu não vou mentir. Eu chorei.”

“Eu chorei na noite passada”, conta Scooby. “Nós fizemos história.”

Eles dizem isso porque sua união fez com que gangues de Oakland, Chicago, da capital Washington e de outras cidades começassem a pensar tréguas. Ainda assim, por que alguém acreditaria que isso tudo terá alguma longevidade? Será que um punhado de arruaceiros de Baltimore pode mudar a configuração moderna das gangues neste país? Os que estão ali no Double-T estão convencidos de que sim e estão determinados a fazer vingar o fato de que eles agora são uma família.

“As crianças, pequenas crianças inocentes, não sabem de nada. Estão cegas para o mundo”, diz Scooby, mais tarde, a Wilmore. “Qual teria sido o benefício de ter gente mais velha — como nós — por aí fazendo o que fazemos agora? Teria sido algo grande. E é isso o que estamos fazendo por eles. Eu tenho filhos. Tenho dois filhos e estou fazendo isso por eles, pelos filhos deles, por seus filhos, pelos filhos de todo mundo. Estamos fazendo isso por eles. Então, desse jeito, em 15 ou 20 anos eles podem estar tipo ‘bom, nós estamos seguros porque nossos pais fizeram isso’.”

Flex e Scooby voltam para o restaurante e, pouco antes de uma da manhã, os cinco sentam-se em torno de uma mesa redonda para sua estreia na tevê. Eles pedem burritos e torta.

Goldie foi o primeiro que vi no cruzamento entre a rua Norte e a Penn na tarde de sexta, pouco mais de uma hora após as acusações contra seis oficiais serem anunciadas. Ele estava sorrindo enquanto dizia “Eu amo essa merda!” e contou que estava sentado próximo de nós, na escadaria em frente à sua casa, quando o boato chegou. Apenas duas noites antes, os gângsteres estavam sentados naquela mesa, naquele restaurante, esperando o pior e pensando se sua cidade iria pegar fogo.

“Temos que continuar nos empenhando”, diz Goldie com alguns crips, bloods e membros da BGF junto dele. “Temos que fazer isso porque, se não fizermos, toda essa merda terá sido em vão.”

Poucos minutos depois, quatro gângsteres das antigas— inclusive Goldie — de cada grupo se reúnem no meio do cruzamento, bloqueando o trânsito. Eles amarram suas bandanas pretas, azuis e vermelhas e as levantam para uma imensidão de câmeras.

“Daqui em diante, nós, Bloods, Crips e BGF, iremos controlar nossa vizinhança. Nós não precisamos da polícia”, diz Bigg Wolfe, um deles. “É o nosso trabalho desde o começo. Se nós vamos dormir ou fazer patrulha é problema nosso, e se você não tá com a gente isso é problema seu. Bloods, Crips e BGF, cara.”

Tragedy é um pouco mais cauteloso. Em parte por ele sempre ser assim quando está nas ruas, mas também por ser um pouco conservador em relação à ideia de levar a trégua adiante.

“Nós vamos tentar”, diz ele.” “Nós nos esforçaremos no sentido de realmente fazê-lo. Você não pode só falar que vai fazer e, depois, agir de um jeito diferente. É isso o que deixa as pessoas com raiva: se você não cumpre o que prometeu, é como se destruísse sonhos alheios ou algo assim.”

Flex estava no banho, ouvindo rádio, quando a notícia chegou. Ele saiu correndo para o Penn North. Um dos mais otimistas e nascido em uma gangue, ele é inequívoco.

“Estou mais do que confiante — eu sei que vai ficar assim”, diz.

Ele, então, me agradece dizendo que “você esteve aqui para nos ver como seres humanos e nós te amamos e respeitamos por isso. Pode não parecer grande coisa para muita gente que aparece na tevê ou para as pessoas que falam regularmente com repórteres. É grande pra gente. Nós realmente mudamos a história. Nós mudamos a história”.

Em meio a buzinas, celebrações eufóricas e um caos feliz, um repórter de tevê em meio à multidão pergunta aos gângsteres que estão de mãos dadas como eles chegaram a esse ponto. Eles não exitam. “Freddie Gray.”

Originalmente publicada na Matter, essa tradução faz parte do Especial Outros Voos — A Revolta de Baltimore. Selecionamos os melhores textos da comunidade americana do Medium abordando os desdobramentos do assassinato de Freddie Gray com o intuito de construir um retrato mais diverso sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos em resposta ao trágico incidente.

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João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.