O que acontece quando você é preso durante um protesto em Nova Iorque

Um dia de detenção com a polícia estadunidense

João Brizzi
Revista Poleiro
Published in
10 min readMay 8, 2015

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Por Nora Levinson
Tradução por João Brizzi

Acabo de voltar de uma detenção de 12 horas no Departamento de Polícia de Nova Iorque. Se eu posso ser presa (com todo o meu privilégio por ser branca e ser percebida como uma presença não ameaçadora), então qualquer um pode ser. No total, mil pessoas protestaram ontem, dia 29, e cerca de 120 foram detidas. Aqui estão minhas percepções sobre o que aconteceu.

1 - Protesto

A passeata de protesto por Freddie Gray passou por meu escritório, marchando na Broadway. Eu decidi que deveria fazer valer minhas palavras e saí para me juntar a eles.

Vista da minha janela sobre os protestos antes de eu descer para participar.

2 - Prisões

Durante nossa marcha, a polícia sempre esteve presente ao longo da rua, mas logo nos deparamos com um bloqueio feito pelos oficiais. Eles começaram a selecionar pessoas aleatoriamente e a detê-las. Um policial apontou para mim, outro agarrou meus braços e me disse para não resistir. Minha detenção foi relativamente pouco emocionante — ninguém me derrubou no chão ou me jogou dentro de uma viatura, mas isso estava acontecendo com praticamente todos à exceção de mim.

3 - Camburão

Aqueles que foram presos foram algemados e colocados em enormes camburões blindados. Em nosso veículo, os homens ficavam juntos na parte traseira e as mulheres eram alocadas em celas individuais ou em duplas. Esperamos dentro do carro por mais de duas horas, imóveis, até que eles enchessem as celas como queriam (por fim, éramos doze). As últimas duas pessoas presas só estavam caminhando por perto e nem sequer faziam parte dos protestos. Muitos tinham sido tratados com rispidez e estavam sentindo tontura e fraqueza ou até mesmo tinham algemas tão apertadas que chegavam ao ponto de suas mãos incharem e mudarem de cor por terem a circulação interrompida.

Em paralelo, a tecnologia: meu telefone foi confiscado, mas foi guardado em um lugar próximo. Eu estava usando um Apple Watch para fazer um teste do produto e, por isso, consegui mandar uma mensagem de texto para Lian utilizando o relógio (durante todo o tempo que estive detida, não tive permissão para realizar uma ligação ou qualquer outro tipo de contato). Eu particularmente acredito que esse uso do aparelho não será promovido pela Apple, mas sem dúvida alguma foi o que mais me convenceu até agora…

Essa foi a imagem mais próxima do tipo de camburão que estávamos presos que consegui achar.

4 - Direção truculenta e Snapchat

Completamente escoltados, eles arrancaram com os camburões por toda a West Side Highway em direção ao 1 Police Plaza, a central de comando da polícia na cidade. Foram muitas viradas brucas e desnecessárias por todo o caminho. Nós não estávamos usando cinto de segurança e, com nossas mãos estavam algemadas, não podíamos nos segurar em nada. Os policiais no banco da frente tiravam selfies e gravavam a corrida maluca com o Snapchat para compartilhar o momento com seus colegas enquanto riam e se vangloriavam sem a menor cerimônia.

5 - Entrada

Conversando com o policial que me prendeu, descobri que eles tinham convocado oficiais de todas as regiões da cidade para cobrir os protestos e que todos os “perpetradores” (termo usado para se referir a nós) deveriam ser mantidos no 1 Police Plaza em vez de seus departamentos de origem. Esperamos no frio, enfileirados, para que eles preenchessem algum tipo de burocracia básica (nome, endereço e data de nascimento). Logo após, fomos levados para tirar as mais constrangedoras fotos que já vi — fizeram cada uma das pessoas presas serem fotografadas lado a lado com o oficial que as prendeu. Espero um dia ter acesso a uma cópia dessa foto. Foi uma verdadeira pérola.

Vista aérea do 1 Police Plaza. Embora não tenha certeza, acredito que tenhamos ficado detidos no prédio térreo à esquerda. Foto retirada do Civic Center Residents Coalition.

6 - A cadeia

Após darmos entrada na delegacia, fomos divididos em duas diferentes áreas. Os homens foram colocados em uma cela gigante com pelo menos 80 pessoas abarrotadas entre poucos assentos. Nós, mulheres, fomos divididas em grupos de 4 ou 5 numa uma fileira de pequenas celas de 1,5 por 2,5 metros com um banco de metal e um vaso sanitário. Vale notar que fomos divididos de acordo com o gênero marcado em nossa identidade e, por isso, havia pelo menos uma mulher transgênero na cela masculina e dois homens transgênero nas celas femininas. Antes de entrarmos nos espaços determinados, eles nos revistaram de maneira invasiva e fizeram com que tirássemos qualquer tipo de penduricalho de nossas roupas (incluindo cadarços e uma fita decorativa do meu casaco).

Essa é uma cela semelhante à que estávamos. A nossa era cerca de 20% maior e comportava 4 ou 5 pessoas. Não consegui achar nenhuma imagem das celas reais da polícia de Nova Iorque. Foto retirada da SDM.

7 - O jogo de espera

Até esse ponto, já haviam se passado mais de 3 horas desde a minha prisão. O policial que me deteve ainda não tinha aparecido para dar qualquer tipo de explicação e não o faria pelas próximas 7 horas. Ninguém leu meus direitos, me permitiu fazer uma ligação ou me disse pelo que eu estava sendo acusada. O mesmo acontecia para todas as outras pessoas no setor feminino. Por sorte, uma das mulheres em minha cela era uma observadora legal com muito conhecimento sobre o sistema, algo que nos deu algum entendimento sobre o que poderia acontecer (ainda que essa tenha sido a primeira vez que qualquer uma de nós tinha sido presa). Eventualmente nos ofereceram sanduíches com queijo estragado, leite e água. Ninguém conseguiu terminar os sanduíches, mas acabamos descobrindo que eles ficavam muito bem nas paredes da cela. Para matar o tempo, criamos um jogo para tentar adivinhar quanto tempo um pedaço de queijo ficaria grudado na parede antes de cair.

Também tentamos revezar turnos para dormir no banco, mas o plano não saiu muito bem já que o local era muito barulhento, frio, irritantemente iluminado e o banco fora construído para ser desconfortável. Havia muita gente cantando e tendo boas conversas, mas muitos estavam angustiados e até mesmo gritando. Decidimos manter contato nas mídias sociais com a hashtag #drycrustnypd (algo como #pãomofadonypd). Não acho que alguém tenha a usado até agora, mas vai saber quando as pessoas aqui vão receber seus pertences de volta e retornar para suas casas.

8 - Acusações

Todos estavam ali pelo mesmo motivo (tirados aleatoriamente do protesto), mas as acusações foram muito diferentes umas das outras. Começamos a perceber que ou você receberia uma convocação judicial por uma “violação”, ou você era acusado de um crime, registrado (cedendo suas impressões digitais e tirando uma foto 3x4) e levado para o Núcleo de Autuação. Obviamente, eu não sei o que ocorreu em cada uma das prisões, mas as acusações criminais foram feitas majoritariamente sobre pessoas de cor e com trejeitos mais significativos do gênero masculino. Se você é enviado ao Núcleo de Autuação, isso não só significa que você terá de esperar outras seis ou mais horas naquele mesmo dia, mas também que alguém dará entrada no sistema com todas as suas coisas e que você só poderá tê-las de volta em alguma data posterior. Isso foi bastante angustiante para muitas pessoas, já que seus pertences normalmente incluíam carteira, telefone e chaves. Depois que você era liberado da autuação, você basicamente não tinha nenhum meio de voltar para casa ou contatar alguém.

Entrada do Núcleo de Autuação, lugar para onde as pessoas que recebem acusações criminais são enviadas após a detenção provisória. Foto retirada do nychinatown.org

9 - Divisão surreal do trabalho

O que eu também havia percebido é que cada um dos policiais que nos prendeu tinha de permanecer na delegacia e pessoalmente providenciar nossa papelada. Então, basicamente, para cada um dos mais de 120 de nós esperando havia um policial na mesma situação, recebendo horas extras e tentando terminar de lidar com a burocracia para poder voltar para casa. Assim que percebi isso, comecei a ficar nervosa, já que um dos oficiais do escritório disse à policial que me prendeu que ela poderia ir embora quando eu ainda estava na cela e que, desde então, sete horas haviam se passado. Será que alguém na delegacia sabia que eu ainda estava lá?

Esse medo foi acrescido da preocupação pelo fato de que um outro oficial apareceu para fazer uma contagem de pessoas, checando em uma enorme lista escrita à mão, e não conseguiu achar meu nome por alguns minutos — acabamos descobrindo que ela só estava pronunciando-o erroneamente. Eu por fim recebi alguma atenção para perguntar sobre a policial que me prendeu e, para o meu alívio, ela apareceu na cela uma hora mais tarde. Ela me disse que já tinha quase acabado de resolver a papelada, mas que durante todo o tempo que estivemos ali os policiais tinham permanecido tomando conta da documentação das mais de 100 pessoas que foram presas antes de mim. Ficar esperando no camburão por três horas não deve ter ajudado a conseguir um bom lugar na fila.

10 - Soltura

Após um total de 11 horas desde minha prisão, a policial responsável pelo meu caso retornou à cela para iniciar meu processo de soltura, que por sua vez durou mais uma hora entre mais papéis e espera em filas. Quase todos os homens que foram presos comigo ainda estavam na cela quando passei por eles; acredito que ainda teriam algumas horas mais de espera em relação às mulheres. Eu finalmente recebi um documento com o motivo pelo qual eles estavam me acusando — uma convocação judicial por obstrução de tráfego e, felizmente, nenhuma acusação criminal. A policial me levou até a porta e me acompanhou até o final da rua, depois do bloqueio, onde advogados voluntários da New York Lawyers Guild esperavam para oferecer algumas informações sobre os procedimentos legais e nos ofereciam café e donuts. 12 horas depois da minha prisão, eu finalmente estava fora do edifício. Em momento algum meus direitos foram lidos ou me foi dado acesso a qualquer tipo de comunicação para informar ao mundo lá fora onde eu estava. Tomei um táxi para casa.

Considerações finais

Passar por esse processo me mostrou o quão danoso tudo isso poderia ser para a vida de alguém sem a quantidade de privilégios que eu tenho. Por conta da discrição dos policiais no momento das prisões, as pessoas detidas não têm direito a comunicação externa ou uma explicação sobre os motivos pelos quais estão sendo presas e quais serão os próximos passos. Elas são mantidas em um ambiente que pode ser bastante degradante. Você é obrigado a usar o banheiro muito próximo a seus companheiros de cela e em frente a um corredor aberto. Não há forma confortável de se sentar ou ficar em pé por qualquer quantidade de tempo naquele pequeno espaço. Alguns oficiais fazem comentários depreciativos sobre a aparência física e gênero dos “perpetradores” ou simplesmente te ignoram e conversam entre si enquanto espalham pelas mídias sociais os registros das prisões que acabaram de fazer.

Se você tiver remédios em sua bolsa, não terá permissão para tomá-los — se quiser ter acesso a algum tipo de medicação, terá de ser levado a um hospital penitenciário, uma vez que eles não confiam na precisão dos rótulos da medicação que você leva consigo. Isso tudo sem entrar nas situações em que pessoas são interrogadas sem acesso a um advogado, algo que, até onde sei, felizmente não aconteceu com nenhum de nós. Aparentemente, deter pessoas dessa maneira (sem ter seus direitos lidos, acesso a um telefonema ou sem acusação alguma) é algo legal por até 24 horas.

Você pode imaginar ser aleatoriamente preso por um policial e sumir da face da terra por um dia inteiro sem ninguém saber o que está acontecendo? Quais consequências isso pode ter nos estudos, trabalho ou na procura por um emprego? Para crianças que precisam de cuidados ou outros dependentes? E se você é enviado à Central de Autuação com uma acusação criminal e, em meio à ansiedade crescente por conta de todo o processo, tenta negociar um acordo só para sair das amarras do sistema e voltar para casa? É assim que as pessoas acabam criando um histórico criminal por conta de episódios de negligência, tornando ainda mais difícil a tarefa de superar o ciclo de pobreza e prisões que prevalece em tantas comunidades.

Para alguém como eu, uma prisão como essa é uma noite de inconveniência e desconforto. Para as pessoas que normalmente são presas, isso pode destruir todo um progresso construído por meio de muito trabalho duro, assombrando-as com o estigma da criminalização. E uma vez que alguém é taxado de criminoso, fica muito mais fácil justificar tratá-los sem qualquer tipo de humanidade. A história e os eventos recorrentes deixam a situação alarmantemente clara.

Adaptado de um post no Facebook da autora feito imediatamente após sua soltura, no dia 30 de abril.

Originalmente publicada por Nora Levinson, essa tradução faz parte do Especial Outros Voos - A Revolta de Baltimore. Selecionamos os melhores textos da comunidade americana do Medium abordando os desdobramentos do assassinato de Freddie Gray com o intuito de construir um retrato mais diverso sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos em resposta ao trágico incidente.

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João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.