2016: O ano em que faremos full contact
Por Tiago Ramos
Dizem por aí que as mais importantes expressões artísticas assim o são porque filtram a realidade por um prisma peculiar. E se há um adjetivo que serve como uma luva para o ano em curso — o qual mal chegou à sua metade! — é este: peculiar. Há décadas não se percebia, a nível global tanto quanto nacional, uma… inquietação social tão intensa, posicionando em córneres opostos aqueles que, ainda há pouco, se enxergavam como semelhantes.
Se definirmos arte como exposto acima e, simultaneamente, considerarmos a natureza conflituosa das relações humanas em 2016, os maiores filmes de super-heróis do ano são as telas de Picasso de nossos tempos. Repare: os principais lançamentos do gênero de três grandes estúdios de Hollywood — Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, Warner Bros. Pictures), Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, Walt Disney Studios) e X-Men: Apocalipse (X-Men: Apocalypse, 20th Century Fox) — não têm como atrativo a costumeira luta do bem contra o mal. A onda da vez é colocar personagens que tradicionalmente estão do mesmo lado para trocar sopapos. Mas o paralelo com a nossa realidade não pára por aí! Igualzinho ao que acontece do lado de cá das telas, todo mundo pensa ser o herói da história.
Tudo é, claro, resultado de uma enorme coincidência. Boa parte dos responsáveis por tais longas são incapazes de executar uma sequência de ação minimamente divertida, quem dirá realizar projeções político-sociais com anos de antecedência, no início do ciclo de produção dos filmes. Ainda assim, uma dose saudável de cinismo — na medida certa para nos permitir rir de nossa própria miséria — torna possível comparar os três arrasa-quarteirões em questão com os principais arranca-rabos do momento. Duvida? Então venha comigo:
Metrópolis/Gotham City, março: em Batman vs Superman: A Origem da Justiça, Lex Luthor, bilionário famoso por sua cabeleira (ou falta de), acirra a rivalidade entre os dois maiores heróis da DC Comics a ponto de levá-los às vias de fato. Dentre suas principais ferramentas, a boa e velha retórica do nós (humanos) contra eles (alienígenas, neste caso vindos de Krypton). No previsível final, um quebra-pau confuso e inexplicável deixa Metrópolis (bem, ao menos eu acho que é Metrópolis, e não há força no mundo que me faça assistir a essa bomba pela segunda vez para ter certeza) abalada pela violência de um conflito, repetindo o saldo de O Homem de Aço (Man of Steel, 2013).
San Jose, Califórnia, junho: Donald Trump, bilionário famoso por sua cabeleira (ou excesso de), acirra a rivalidade entre republicanos e democratas a ponto de levá-los às vias de fato. Dentre suas principais ferramentas, a boa e velha retórica do nós (norte-americanos) contra eles (imigrantes latinos e árabes). O quebra-pau confuso e inexplicável foi apenas o mais marcante dentre uma série de embates motivados pela ascensão do magnata como candidato à presidência dos EUA. O final — a esta altura, imprevisível — tem tudo para deixar o país abalado pela violência dos conflitos. A convenção republicana começa hoje — e as expectativas não são nada boas.
Egito, maio: em X-Men: Apocalipse, uma figura messiânica do passado de uma nação — que não mais existe da forma como ele a conhecia em seus dias de glória — volta à ativa. Aos seus acólitos, Apocalipse promete a tão almejada supremacia da raça mutante. Seduzidos pelas palavras e presença do personagem, os heróis Tempestade, Psylocke e Anjo passam a segui-lo cegamente. Do outro lado, o telepata Charles Xavier e seus devotos — os X-Men — antagonizam as ambições do ídolo ressuscitado. O resultado? Um devastador pega-pra-capar nas ruas do Cairo.
Brasil, março: Lula, uma figura messiânica do passado de uma nação — que não mais existe da forma como ele a conhecia em seus dias de glória — volta à ativa. Aos seus acólitos, ele promete a tão almejada salvação de um governo em frangalhos no papel de Ministro-Chefe da Casa Civil. Seduzidos pelas palavras e presença do personagem, os Mortadelas passam a segui-lo cegamente. Do outro lado, a divulgação do conteúdo de grampos telefônicos envolvendo o ídolo ressuscitado leva o antagonismo borbulhante dos devotos do juiz federal Sérgio Moro — os CoXinhas — ao ponto de ebulição. O resultado? Devastadores pega-pra-capar nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Florianópolis, Nova Iorque (!), restaurantes, botecos, teatros e, claro, sua rede social favorita. E sem data para acabar!
EUA/Alemanha, abril: Passado algum tempo desde a formação dos Vingadores, os membros da equipe ponderam sua adesão aos termos dos Acordos de Sokovia em Capitão América: Guerra Civil. O inicial e pacífico debate dos prós e contras de super-heróis atuarem apenas sob sanção governamental, todavia, abre espaço para a belicosa atuação do Coronel Helmut Zemo. Logo, a equipe racha ao meio, liderada pelo Capitão América de um lado e pelo Homem de Ferro no outro. A manipulação de fatos engendrada por Zemo inflama os ânimos entre as duas posições, influenciados ainda pelo aparente assassinato do Rei T’Chaka pelo Soldado Invernal. O evento motivador do conflito, a esta altura, pode até ter ficado para trás, mas seu resultado não pode ser contornado: uma traumática divisão nos Vingadores, cujas consequências só serão plenamente conhecidas nos próximos anos (e filmes).
Reino Unido, junho: Passado algum tempo desde a formação da União Europeia como a conhecemos hoje, a população do Reino Unido pondera a manutenção de sua adesão ao grupo de países. O inicial e pacífico debate dos prós e contras de permanecer no bloco, todavia, abre espaço para a belicosa atuação de Nigel Farage, líder do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP, na sigla original). Logo, a Inglaterra racha ao meio, representada pelo então Primeiro-ministro David Cameron de um lado e o ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, do outro. A manipulação de fatos engendrada pelos líderes do “Leave” inflama os ânimos entre as duas posições, influenciados ainda pelo assassinato da deputada Jo Cox pelo simpatizante da extrema direita Tommy Mair. O evento motivador do conflito, a esta altura, pode até ter ficado para trás, mas seu resultado não pode ser contornado: uma (iminente) traumática divisão na Europa e no Reino Unido, cujas consequências só serão plenamente conhecidas nos próximos anos. Desde já, a multiplicação de ataques a e episódios de ódio contra imigrantes serve como um perigoso indicativo.
Seja no universo multicolorido dos super-heróis ou em nossa realidade em preto-e-branco, outro aspecto curioso dos casos acima é como a bicharada é parte essencial das narrativas. Nos filmes, encontramos referências a morcegos, falcões, gaviões, panteras, carcajus e até mesmo aranhas e formigas. Por aqui, os democratas são representados por um jumento, os republicanos por um elefante, a Inglaterra tem seu leão, nossa coxinha vem da galinha e, sério, a essa altura, alguém ainda aguenta falar do Lula?
Após anos caminhando no sentido de uma união entre os povos por meio da globalização, a humanidade parece ter dado uma guinada no sentido oposto. Nos EUA e no Reino Unido, respectivamente, a popularidade de Trump e a derrota do “Remain” são parcialmente explicadas por uma aversão aos imigrantes. O “nós contra eles” encontra espaço também no Brasil, só que de uma forma diferente: para parte dos opositores ao governo do PT, os escândalos de corrupção são apenas um pretexto para externar uma indignação mais profunda e antiga, direcionada aos recipientes e defensores de programas sociais de cunho assistencialista. Em todos os casos, não consigo deixar de lembrar de outro bicho, desta vez uma ave. Mais especificamente de uma frase na qual ela é protagonista, resumindo nossa rota atual com simplicidade e rima: “ema ema ema, cada um com o seu problema”.
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Originally published at revistasalsaparrilha.com on July 18, 2016.